Enquanto você dormia escrita por Any Marie Whitlock


Capítulo 1
Capítulo 1




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Não sou o tipo de pessoa sobre quem se contam histórias. Os que têm origem humilde sofrem suas mágoas e comemoram seus triunfos sem serem notados pelos contadores e não deixam vestígios nas fábulas de sua época.
Criada numa mísera fazenda com cinco irmãos homens, eu sabia que se esperava que me casasse aos 16 anos e trabalhasse num pedaço de terra igualmente pobre, com minha prole de filhos subnutridos. Era um caminho que eu teria seguido sem questionamento,se não fosse por minha mãe.
Devo iniciar minha história por ela, porque todos os acontecimentos que vieram depois, todas as maravilhas e todos os horrores que testemunhei em meus muitos anos de vida, começaram por uma semente que ela plantou em minha alma praticamente em meu nascimento: a certeza enraizada e inabalável de que eu estava destinada a ser mais do que a mulher de um camponês.
Toda vez que mamãe me corrigia a gramática ou me advertia para endireitar a postura, era de olho no meu futuro, como um lembrete de que, apesar de minhas roupas esfarrapadas, eu devia me comportar como meus superiores. Ela mesma era uma prova de que podia haver grandes mudanças na sorte de uma pessoa: nascida numa família pobre de serviçais e órfã desde tenra idade, ela se elevara à posição de costureira do castelo Sant' Eugene, a residência do rei que governava nossas terras.
O castelo! Como eu sonhava com ele, imaginando uma construção de torres altíssimas e mármore polido que pouca semelhança tinha com a fortaleza abrutalhada que eu viria a conhecer tão bem.
Minha fascinação de menina se estendia a conversas imaginárias com damas elegantes e cavaleiros galantes, fantasias que eu fazia o possível para reprimir, por conhecer muito bem os perigos que corria quem assumia ares superiores ao que se esperava de pessoas em sua posição social. Mamãe quase nunca falava de sua juventude, mas eu guardava as poucas histórias que ela me contava como um trapeiro que recolhe farrapos e me perguntava por que ela teria desistido de sua privilegiada posição de serva da realeza, trocando-a por uma vida de trabalho exaustivo.
Houvera um tempo em que seus dedos finos haviam acariciado fios de seda e suntuosos tecidos de veludo; depois as mesmas mãos passaram a ter as rachaduras e a vermelhidão de anos de tarefas braçais e o rosto exibia quase sempre uma expressão de resignação e cansaço.
As únicas ocasiões em que me lembro de tê-la visto sorrir foram os momentos de intimidade que roubávamos entre as mamadas do bebê e o plantio e a colheita, aquelas horas preciosas em que ela me ensinava a ler e escrever. Quase todos os meus exercícios eram feitos no chão de terra, ao lado da casa, usando um graveto para formar as linhas e as curvas das palavras. Quando via meu pai se aproximar, eu apagava depressa os rabiscos com os pés e corria em busca de uma tarefa com que me ocupar. Para ele, criança ociosa era criança perversa, e uma filha não tinha motivos para aprender a ler.

Mikael Morgam era conhecido em nossas paragens como um homem rude, o que realmente correspondia à realidade. Seus olhos tinham o frio azul-acinzentado de uma rocha, e as mãos eram calejadas e ásperas por conta de uma vida inteira de trabalho braçal; quando ele me dava um tapa, parecia que eu tinha levado uma paulada. Sua voz era rouca e ríspida, e ele usava as palavras com calma, como se a enunciação de cada uma lhe causasse um grande esforço físico. Embora eu não sentisse afeição por meu pai, tampouco o odiava; ele era um simples aspecto desagradável da minha existência, como a lama que grudava nos meus pés a cada primavera ou a dor da fome que me enchia o estômago no lugar da comida.
Eu via sua rigidez simplesmente como o ressentimento habitual de um homem pobre em relação à filha que lhe custaria um dote.
Só ao completar 10 anos foi que tomei conhecimento da verdadeira razão pela qual ele nunca tivera nem jamais teria amor por mim.

Foi numa manhã de sábado em que eu havia acompanhado minha mãe à feira semanal da nossa aldeia, um aglomerado de algumas dezenas de casas a cerca de meia hora de caminhada de nosso casebre miserável de um cômodo só. Os lavradores e aldeões se reuniam para pechinchar um magro sortimento de mercadorias: alguns nabos ou cebolas, saquinhos de sal ou açúcar, talvez um porco ou um cordeiro. Era raro as moedas serem passadas da mão de uma pessoa para a de outra; o mais comum era a carne ou os ovos serem trocados por pedaços de tecido ou barris de cerveja. Os vendedores mais afortunados conseguiam um lugar em frente à igreja, onde podiam ficar nas lajes secas do pavimento; os outros simplesmente paravam suas carroças no meio da estrada lamacenta que passava pelo vilarejo. Alguns dos agricultores mais prósperos serviam-se de seus barris de cerveja e ficavam por ali durante a maior parte da manhã, dando risadas e tapinhas nas costas uns dos outros enquanto seu rosto ia se tornando mais vermelho. Meu pai nunca estava entre esses homens, posto que a embriaguez era uma das muitas fraquezas que desprezava nas pessoas.
A feira era um lugar não só de comércio, mas também de difusão de mexericos, por isso a maioria das mulheres se demorava por lá mais do que o tempo necessário para se abastecer de mantimentos. Minha mãe nunca parava depois que concluía suas tarefas; era como se levasse muito a sério o menosprezo de meu pai pela ociosidade dos aldeões. Eu me deslocava lentamente de carroça em carroça, na esperança de esticar a visita, mas ela passava por mim com agilidade e eficiência, cumprimentando os vizinhos com um meneio da cabeça, mas quase nunca parando para conversar. Em geral eu tinha que correr para segui-la, ignorada. Até que, um dia, fiquei imóvel diante da carroça do padeiro. O cheiro de pão fresco estava muito tentador; achei que poderia satisfazer o ronco no meu estômago sorvendo aquele aroma. Se o cheirasse por tempo suficiente, talvez eu pudesse tapear a fome e me sentir saciada.
Virei-me e constatei que minha mãe tinha ido embora. Sem querer ficar para trás, abri caminho pela aglomeração de pessoas diante dos produtos do padeiro e acabei pisando no pé de um menino. Ali não havia estranhos, pois todos frequentávamos a mesma igreja, mas não consegui lembrar o nome dele, apenas que sua família trabalhava numa fazenda substancialmente maior que a nossa, do outro lado da aldeia, onde a terra era mais fértil. Ele tinha as bochechas rosadas e redondas dos bem alimentados.
— Olhe por onde anda! – repreendeu-me, revirando os olhos para o amigo a seu lado.
Empenhada em achar minha mãe, não lhe dei atenção. E teria acabado aí, se o menino não tivesse dito mais uma coisa:
— Sua bastarda.
Creio que ele não pretendeu que eu ouvisse. A palavra foi mais cochichada que gritada, mas escapou de sua boca como um encantamento perigoso e potente.
Quando encontrei minha mãe, logo depois, procurando por mim nos degraus da igreja, perguntei-lhe o que significava aquilo. Ela prendeu a respiração e deu uma olhadela em volta, para ter certeza de que ninguém me escutara:
— Essa é uma palavra feia, e não admito que você a repita! – cochichou, em tom veemente.
— Foi um menino que disse isso para mim! – protestei.
— Por que ele me chamou disso?
Mamãe franziu os lábios. Puxou-me pelo pulso com uma das mãos, segurando a cesta embaixo do outro braço. Nós nos afastamos da igreja e seguimos pela estrada que levava de volta à fazenda, sem dizer nada por algum tempo. Quando já não podíamos ver a aldeia, atrás de uma colina ao longe, ela se virou para mim.
— Os filhos que nascem fora do casamento são chamados assim – explicou.
— A senhora não é casada, mãe? Ela deu um suspiro. Ainda me lembro da expressão de derrota que se instalou em seu rosto e da minha apreensão ao ver minha mãe, que era forte e decidida, quase reduzida às lágrimas.
— Eu esperava que você nunca viesse a saber – disse ela em voz baixa, desviando o olhar para os campos. Em seguida, recompondo-se, prosseguiu no seu tom enérgico e pragmático de sempre:
— Se a minha vida continua a ser motivo de mexericos na aldeia depois de tanto tempo, suponho que seja melhor você conhecer a verdade. Eu a trouxe ao mundo antes de conhecer o Sr. Morgan.

Na época, eu sabia o bastante para compreender como um homem e uma mulher geravam um filho; as meninas lavradoras que veem animais cruzando no campo não ficam inocentes por muito tempo.
O choque se misturou ao entusiasmo, quando me dei conta de que minha mãe tinha se deitado com outro homem que não aquele a quem eu chamava de pai. Quem? E por que ele não havia me reconhecido como filha? Minha mente girava, com uma pergunta levando a outra, enquanto eu tentava juntar os pedaços do pouco que conhecia da juventude de minha mãe, à luz dessa revelação.
— Foi por isso que a senhora saiu do castelo? – indaguei. – Por minha causa?
— Foi – disse ela.
Não houve amargor em sua voz, tampouco censura. Apenas um misto de aceitação e cansaço.

Ela me deu as costas e recomeçou a andar pela estrada como se nada houvesse mudado. Para mim, porém, tudo se modificara. Foi aquele momento, percebo agora, que me fez iniciar o caminho fatídico para o castelo, para o rei, a rainha e Bella, e para os poderes sinistros de Athenodora.
Eu poderia ter aceitado o desejo de minha mãe de isolar o passado, acompanhando-a para casa em silêncio. Poderia ter conseguido o que se consideraria um bom casamento, com o filho de algum lavrador próspero ou com um comerciante da aldeia, e passado o resto da vida a poucos quilômetros do lugar em que tinha crescido.
Em vez disso, corri para junto de mamãe, ansiosa por ampliar o breve vislumbre que ela me dera de sua vida antes da fazenda.
— A senhora não quis me criar lá?
Ela não afrouxou o passo, mas me olhou de relance com desaprovação, contraindo os lábios. Preparei-me para uma reprimenda, mas, em vez disso, ela respondeu à minha pergunta com inesperada franqueza:
— Não foi escolha minha. O castelo era o lugar mais maravilhoso que eu já tinha visto. Teria ficado lá para sempre, se pudesse. Mas seu pai não quis fazer de mim uma mulher honrada e, assim, caí em desgraça e fui expulsa de lá. Fui enganada, como acontece com muitas mulheres tolas, e paguei um preço alto.

Não compreendi inteiramente; a natureza das relações entre homens e mulheres era obscura para as meninas da minha idade. Mas ainda escuto a rispidez das palavras dela. Mamãe se culpava pelo que havia acontecido, talvez mais ainda do que o homem que a abandonara.
Como eu gostaria de fazer retroceder o tempo e aliviá-la do peso que tanto a sobrecarregava! Se eu fosse mais velha e mais compassiva, ela poderia ter me contado tudo e encontrado um pouco de paz nessa confissão.
Mas talvez tenha sido melhor esse segredo ter permanecido guardado. O que faria uma garota da minha idade com uma informação tão perigosa?
— Então eu não nasci no castelo? – perguntei, ainda uma criança bastante interessada em seu lugar na história. Mamãe balançou a cabeça.
— Não, você nasceu na cidade, em St.Eugene.
— Na casa da sua irmã?
Minha tia Esme era esposa de um comerciante de tecidos, uma figura misteriosa que todo Natal nos mandava rolos de lã, o que nos possibilitava fazer roupas novas quando as velhas ficavam esfarrapadas pelo uso.
Mas eu nunca a havia conhecido. Tendo subido na vida, ela preferia manter distância da pobreza de nossa família. – A Esme fez tudo o que pôde – disse mamãe. – Me deu dinheiro e alguns cueiros. Mas não quis que eu ficasse na casa dela. Era uma senhora casada e respeitável, que tinha os próprios filhos. Eu não quis que a reputação dela fosse arranhada por causa do meu erro.
— O que a senhora fez?
— Encontrei uma casa de cômodos gerenciada por uma mulher que um dia estivera na mesma situação que eu. Ela era bondosa, lá à sua maneira, e ajudou a trazer você ao mundo. Sem ela, talvez você não tivesse vivido mais do que alguns dias. Foi lá que conheci seu pai.
— O Sr. Morgan?
— Pai – sibilou ela. – Você vai chamá-lo de pai, mocinha. Ele nos salvou da fome, nunca se esqueça disso. Toda vez que você morder uma casca de pão, deve agradecer a ele. – Sim, mãe.
Temi que ela tivesse ficado zangada a ponto de percorrer em silêncio o resto do caminho para casa, por isso foi um alívio quando voltou a falar:
— Você estava com 2 anos. Eu tinha costurado uns vestidos para minha senhoria, para pagar por meu sustento, mas depois de algum tempo não havia mais nada que eu pudesse trocar. Ela nos deixou dormir na cozinha, desde que eu a ajudasse a cozinhar.O Sr. Morgan foi à cidade comprar um cavalo novo e soube que minha senhoria tinha uma hospedaria limpa. Viu-me servindo o jantar, fez perguntas a meu respeito, e imagino que tenha achado que poderia voltar para casa com uma esposa. A primeira vez que falou comigo foi para me perguntar se eu me casaria com ele.
Eu disse sim na mesma hora e com gratidão. Não eram muitos os homens que se disporiam a ficar com uma moça sem um centavo e com uma filha bastarda. E ele tinha uma fazenda, uma terra própria. Eu havia me preparado para aceitar propostas muito menos promissoras.
Talvez o Sr. Morgan fosse alguém mais gentil naquela época, menos endurecido pelas decepções. Mas eu não conseguia imaginar que algum dia pudesse ter sido uma boa escolha para se casar. Mamãe devia estar mesmo desesperada, para aceitá-lo.
— Trabalhei muito para mostrar que ele tinha feito a escolha certa – continuou mamãe. – Quando lhe contei que estava esperando um filho, menos de quatro meses depois do casamento, foi a primeira vez que o vi sorrir.
Ele me disse: “Eu sabia que você era boa parideira.” Sempre me lembrarei disso, pois, de tudo o que ouvi dele até hoje, foi o que chegou mais próximo de uma palavra gentil.
Ele havia escolhido minha mãe como quem escolhe uma vaca. Mamãe já tinha provado que era capaz de dar à luz uma criança sadia, e o Sr. Morgan confiou em que produziria um bando de filhos para cuidar da lavoura. E mamãe cumprira sua parte da promessa.
Será que algum dia tinha se arrependido da escolha feita?
— Esse homem, o meu pai de verdade... – comecei. Mamãe se virou e me esbofeteou com força.
— Você nunca mais vai falar dele. Ele não a chamaria de filha. Cuspiria em você.
A crueldade de suas palavras me trouxe lágrimas aos olhos, mais do que a bofetada. Se fosse meu pai, me bateria de novo por chorar, mas mamãe se abrandou ao ver meu sofrimento. Envolveu-me nos braços e encostou meu rosto em seu peito, o que não fazia desde que eu era pequena.
— Passou, passou... – falou, baixinho. – Você deve manter a cabeça erguida. Ainda vou ver você vencer, não importam as circunstâncias do seu nascimento.
— A senhora acha que eu poderia ser aceita entre os servos? No castelo?
Eu não conseguia imaginar realização maior, por isso fiquei surpresa ao ver minha mãe hesitar, o rosto tenso de preocupação. Ela não quer que eu vá, pensei, interpretando sua reação como a inclinação materna natural de querer manter os filhos perto de casa.
Agora, passados tantos anos, me pergunto se ela estaria pensando em me alertar. Dada a sua triste história, ela sabia muito bem das intrigas que se escondiam por trás dos modos corteses. Se não houvesse aparecido uma carroça chacoalhando atrás de nós, o que fez mamãe me soltar e oferecer um breve cumprimento com a cabeça ao lavrador que passava, o que ela teria dito?
— Venha – apressou-me, ajeitando as mangas, sem graça, enquanto a carroça seguia seu caminho.
— Seu pai está esperando para almoçar.
Senti um aperto no peito ao imaginar as ríspidas reclamações dele caso nos atrasássemos. Mamãe deslizou delicadamente um dedo por meu rosto:
— Sua pele está muito queimada da colheita – observou. – É hora de seus irmãos assumirem uma parte maior do trabalho na lavoura. Não quero que você cresça com pele de camponesa.
— Então a senhora concorda? – perguntei, hesitante.
— Acha que eu posso arranjar um trabalho na corte, um dia? Senti um frio na barriga com a expectativa.
— Agora não é hora de termos essa discussão – respondeu ela.
— Vamos ver quando você for mais velha.
Aos 10 anos, eu via meu futuro abrir-se diante de mim como um horizonte interminável, e o início da minha vida adulta encontrava-se a uma distância intransponível. Haveria tempo suficiente para ponderar sobre as minhas perspectivas e planejar o rumo da minha vida.
Mas, sempre que eu tentava conversar sobre o trabalho das servas, mamãe mudava de assunto e, com o tempo, parei de perguntar. Não voltamos a falar do castelo até o dia em que ela morreu.



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