Dhyosis escrita por Bia Nascimento


Capítulo 6
Capítulo 5 - Alice


Notas iniciais do capítulo

Yo galera 0/
Desculpa pela demora, mas o importante é que o capítulo novo está ai ^-^



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A agitação da casa era quase palpável, mas pelo menos dessa vez a causa era boa: finalmente teríamos nosso Festival. A casa já havia acordado com rara animação graças ao café que tivemos a oportunidade de tomar, e ao que parece aquilo havia sido um presságio para as coisas boas que viriam então. Paulo havia acordado e estava tão bem quanto antes, motivo pelo qual Dona Zefa decidiu que deveríamos fazer nosso tradicional Festival naquela noite.

     Passei a manhã inteira na enfermaria, dando os últimos cuidados no paciente que se recusava a aceitar o precário tratamento com os restos de alguns remédios que ainda tínhamos. A cada nova recomendação que eu dava recebia uma nova ameaça de ganhar uma bengalada na cabeça. Apesar de tão carrancudo, não pude fazer nada além de sorrir quando Paulo finalmente saiu da enfermaria mais vivo do que eu, foi um verdadeiro alívio ver que o Anjo da Morte resolveu não levar ele dessa vez. Aliás, depois das horas que havia passado com ele passei a suspeitar que a longevidade dele era o Anjo da Morte se recusando a aguentar o senhor.

     Apesar da melhora do Paulo, a garota misteriosa ainda me preocupava e, principalmente, intrigava. Ficar sozinha no mesmo cômodo que ela era quase... assustador. Apesar da sensação ruim que a garota trazia ao lugar algumas vezes eu conversava com ela, ficar naquele estado durante todo o tempo devia ser assustadoramente monótono e terrível, achei que ela gostaria de ter alguma companhia de vez em quando.

     Aproveitando a ausência de Paulo me esgueirei para o leito improvisado onde a garota se encontrava. Dessa vez estava com os olhos fechados, portanto não me atrevi a iniciar uma conversa, segundo Doutor Juan ela dormia regularmente, como uma pessoa saudável. Ele também disse que o mais provável é que ela estivesse em estado vegetativo perpetuamente, provavelmente algo acontecera com ela antes dos garotos a encontrarem, talvez tenha tido um AVC, e o estado era sequela do ocorrido. Aguardaríamos mais um tempo para verificar algum progresso, mas se ela continuasse daquele modo, sem progresso algum, ele disse que deveria tomar medidas extremas. Infelizmente eu sabia o que isso significava.

     Fiquei algum tempo velando o sono da moça, sem entender ao certo o porquê, apenas senti que deveria ficar ali, como se fosse atraída a ela. Foi quando senti uma mão em meu ombro sem sequer ouvir passos adentrando a porta. Senti meu coração disparar mais forte, a adrenalina na minha corrente sanguínea,e inclusive um gritinho esganiçado sair pela minha garganta, parecia que minha pulsação tocava em um alto-falante, mas quando me virei para ver quem era, me deparei com os cabelos dourados de Mary Ann balançando e um sorriso gozador plantado em seu rosto.

     "Se eu quisesse te assustar com certeza não teria conseguido um resultado melhor" ela disse, sem se importar em omitir o quanto estava se divertindo com aquilo.

     "Céus Mary Ann, quando aprendeu a ser tão silenciosa? Quase meu coração saltou para fora e você trocaria esse sorriso por lágrimas no meu velório!" Respondi brincando com a garota. Ela chegara algum tempo depois de mim ao abrigo, tinha um temperamento forte e poucos realmente gostavam dela, mas os meses juntas nos fizeram amigas e eu aprendi a lidar com ela.

     "E quem disse que eu choraria no seu enterro? Eu ia era comemorar, era uma boca a menos para alimentar. Sem falar que a culpa não é minha se você estava vidrada nessa quase morta ai, minha intenção nem era te assustar, só queria mesmo te dar um oi, mas devo dizer que daria minha mão esquerda para ver sua reação novamente. Ainda assim, você parecia preocupada, algum problema?"

    "Bem, nada além do normal, só estava um pouco preocupada com a garota, realmente não queria perder mais alguém aqui."

    "Argh, tão preocupadinha, perfeitinha e politicamente correta que irrita, nem sei como fomos nos tornar amigas. De qualquer modo, sejamos sinceros, essa garota não é problema nosso, só apareceu de paraquedas, estava assim antes de chegar até nós e muito provavelmente vai continuar assim, nunca foi uma das nossas, sequer a conhecemos, não deveria se preocupar demais com o que não deve. Além disso hoje não é dia para ficar triste, você salvou uma moribunda alma e vamos comemorá-la no Festival, se há uma pessoa que não me importaria se morresse nessa casa essa pessoa era o Paulo, ainda assim Festivais são os únicos dias que posso comer decentemente, então não me estrague isso com essa carinha de tristeza, enfia um sorriso nesse rosto, esqueça a morte e vamos comemorar a vida."

     "Bem, a cada 10 palavras que você diz, meia é aproveitável, mas agradeço por essa meia que tem razão, pelo menos hoje eu deveria sair daqui e comemorar a vida, afinal é o que todos estão fazendo."

     "Falou e disse, Smurf, agora me dê licença que tenho uma cozinha a liderar, se eu demorar demais para aparecer por lá pode ser que queiram se vingar pelo macarrão especial que fiz por esses dias, tenho que me apressar." Então ela saiu correndo, mas um segundo depois voltou e disse: "Ah, e não é por nada não, mas a última incursão conseguiu bastante ingredientes, vamos fazer algumas coisinhas que você não deve comer há décadas." E então se foi, dessa vez sem mais voltar.

     Apesar de querer comemorar a vida não sentia como se essa alegria toda que infestava a casa estava em mim, então resolvi sair da enfermaria, ficar em um lugar como aquele onde vários já perderam a vida com certeza não me faria bem nenhum para lembrar a vida. Foi quando me lembrei o motivo de termos conseguido curar a enfermidade de Paulo: A incursão que Samuel havia organizado. Se eu queria comemorar a vida, o primeiro que deveria fazer era agradecer àquele que cuidou para que ela fosse preservada.

     Saí andando pela casa enquanto recitava algumas orações aprendidas ao longo de anos na igreja, orações que diziam o quanto viver era magnífico, um verdadeiro Dom de Deus. A maioria do refugiados haviam abandonado a religião depois de tudo que acontecera, acreditavam que mesmo que houvesse um Deus, já não merecia ser adorado. Fui uma das poucas que continuou com a Fé, sabia que o Todo Poderoso tinha um plano maior que ainda não conseguíamos compreender, mas eventualmente faria sentido. Além da Fé ser quase tudo que restou da minha família, minha única verdadeira herança.

     Assim que terminei a oração do Santo Anjo, pedindo ao meu querido anjinho da guarda para que continuasse me protegendo, encontrei Samuel no dormitório dele, com a blusa levantada, observando o ferimento que a primeira incursão dele causara num espelho velho que estava pendurado lá. A visão fez com que sentisse meu rosto enrubescer

e quase fui embora, mas quando estava me virando ele me viu e me disse para entrar. Ao contrário do que eu estava esperando, quando entrei ele tirou a camisa por completo e todo o sangue do meu corpo resolveu ir parar nas minhas bochechas. Apesar de forte, Samuel não era diferente da maioria de nós, magro pela quase completa miséria que vivíamos a ponto de seu abdômen contornar perfeitamente suas costelas, mas isso não tornava a visão menos agradável e nem a mim menos culpada por pensar nisso.

    "Ally." Chamou ele, enquanto virava suas costas para mim. " Como está o machucado?"

    "Bem..." Eu disse, tocando timidamente. "Parece que está cicatrizando normalmente, não está inflamada, os pontos caíram e daqui a alguns dias nada além de uma cicatriz vai estar aí." Eu que havia costurado a pele dele, a sangue frio, não era a primeira vez que o via sem camisa, mas quando estava a serviço parecia ser algo completamente diferente.

    "Acho que tenho um sonho de infância realizado agora." Ele brincou, enquanto colocava a camisa novamente e eu agradecia aos Céus por isso.

    "Qual? Ficar em baixo de um armário e se machucar?"

    "Claro que não, esse sonho era mais recente, diria que um sonho de puberdade." Disse, rindo. "Me referi a cicatriz. Sempre sonhei em ter uma cicatriz, pensava que faria de mim um guerreiro."

     "E o que acha disso agora?"

     "Bem, talvez não seja um guerreiro, mas consegui ela salvando alguém, o que me deixa feliz em tê-la. A minha vontade é andar por aí sem camisa para ficar exibindo a cicatriz, estou me sentindo uma criança que ganhou um brinquedo que a maioria dos amigos não tem."

     "Por favor, nos poupe da visão de te ver sem camisa todos os dias." Tentei responder na voz mais casual possível, mas tinha certeza que meu irritante hábito de corar havia me traído. "E tome cuidado para não morrer enquanto salva alguém, você precisa se lembrar que sua vida também é importante."

     "Bem, não me importaria de morrer se minha vida significasse salvar outra."

     "Sam... Você sabe que eu não quero perder mais ninguém, já perdi muita gente naquela enfermaria, já perdi minha família, perdi pessoas que até hoje não sei se conseguiram escapar, não vou suportar perder mais ninguém, nem você, nem Mary Ann, nem Leo, nem ninguém que entrar naquela enfermaria!". Disse a última frase quase gritando e lágrimas desceram pelo meu rosto quase sem que eu percebesse. "Então, Samuel, por favor, não se arrisque tanto!"

     Subitamente senti os braços do mais velho me envolvendo e por alguns segundos senti como se aqueles braços pudessem me proteger de tudo, como sempre sentia quando Sam me abraçava. Ele era o único a quem eu confiava minhas lágrimas e naquele momento percebi o quanto eu precisava chorar. Toda a situação estava me deixando assustada, depois de tanto tempo sem incidentes fatais entre nós a doença de Paulo e a garota me fizeram lembrar do quão frágeis éramos e de como eu não suportava mais perder ninguém. Mas dentro do abraço de Samuel, nada iria acontecer, aqueles braços me protegiam do mundo.

    "Ally, você não vai me perder, assim como não vai perder nossos amigos. Não se preocupe com a morte, vamos celebrar a vida, a morte é uma fatalidade, mas a vida tem tantas possibilidades que você não deveria deixar que pensamentos como esse a impeçam de vivê-la!"

    "Obrigada, Sam." Foi tudo o que consegui dizer enquanto lágrimas jorraram de meus olhos, e então me deixei continuar naquele abraço, mesmo depois que as lágrimas secaram e eu me senti melhor. Foi então que Júnior, uma das crianças, apareceu junto com André, e apesar de novos, aquela cena foi o suficiente para que os dois saíssem pela casa gritando coisas como "SAMUEL E ALICE ESTÃO NAMORANDO!!!"

     Bastou uma troca de olhares entre eu e o mais velho para sabermos a coisa certa a fazer: correr atrás dos dois. Durante vários minutos corremos atrás dos mais novos gritando ameaças enquanto os dois se divertiam e gritavam ainda mais alto. Algumas vezes esbarrávamos em pessoas que protestavam, xingavam e mesmo nos ameaçavam, mas aquele era um dos momentos em que nada além de nós quatro importava, nem mesmo os infectados lá fora ou a garota lá dentro. Finalmente alcançamos eles no primeiro andar, na sala onde estocavam comida, os prendemos e o atacamos com cócegas até que implorassem por clemência, e tudo acabou com os quatro deitados no chão da dispensa, rindo como não fazíamos haviam meses. Infelizmente tudo isso acabou com algumas das pessoas da cozinha indo pegar suprimentos quando nos viram lá e nos expulsaram. Mas felizmente recomeçou com o pedido de Júnior para que lesse uma história para eles.

     Sempre gostei de ler na minha infância, e quando cheguei na casa e descobriram a voracidade de leitura que tinha me doaram alguns livros. Fui ao dormitório com os meninos, peguei um que ainda não havia lido e comecei a ler para os 3. Estavam tão concentrados na história que sequer pareciam as crianças agitadas de meia hora atrás, mesmo Samuel não desgrudava os olhos de mim enquanto contava a história. Estávamos no ápice do livro, quando tudo parecia perdido mas o mocinho tivera a ideia salvadora quando vieram nos chamar para a sala comum para que participássemos do Festival.

     Relutantes, marcamos a página do livro para outro momento e fomos para a sala, onde a maior parte da casa já estava reunida em roda. Apesar da relutância inicial eu estava feliz por termos um Festival, sempre animava o espírito da casa, além de nos tirar o tédio e termos algumas comidas que não comíamos desde a calamidade.

     Começou como sempre começava, Dona Zefa agradeceu a todos, lembrou dos que perdemos e o quão bem tinham colaborado com a casa e agradeceu pela vida. O resto foi a bagunça de sempre, jogos em que os vencedores ganhavam uma porção extra de alguma comida em especial, brincadeiras onde todos participávamos e nos divertíamos e, é claro, o famigerado "banquete", que nada mais era do que algumas guloseimas como beijinhos, brigadeiros, a até mesmo havia um pudim, coisa que não comia mesmo antes do caos ter se espalhado. Todos estávamos nos divertindo, até mesmo Paulo parecia sorrir de vez em quando, e então todos nos esquecemos dos problemas, o que importava era realmente a vida e estarmos juntos. Não demorou para que Mary Ann e Leo se juntassem a nós, Mary Ann se gabando dos doces que fizera e Leo concordando com tudo o que ela dizia, o que entre os dois era absolutamente normal.

     Quando todos ficaram mais calmos, João pegou seu violão e começou a dedilhar uma música antiga, nostálgica, que fez lembrar a todos nós as coisas que havíamos perdido. Enquanto ele tocava ouvia murmúrios de pessoas cantando baixinho e vi algumas lágrimas que caíam, mas dessa vez não eram de desespero, eram de uma saudade boa, eram lágrimas daquelas que você solta quando tem uma lembrança gostosa de algo que já foi. Mas de repente, de sopetão, a melodia mudou e se tornou uma canção agitada que todos conhecíamos, e em pouco tempo palmas a acompanhavam e a casa toda formou um coro que cantava a letra. Eu me juntei a casa, cantando e batendo palmas alegremente, até mesmo dançando com alguns dos moradores que tinham me convidado a ir para o centro da roda. Estava inebriada de alegria e emoção a tal ponto que, quando dei por mim, a casa inteira tinha parado de cantar e a única voz que restava era a minha. Corei e parei de cantar imediatamente, mas assim que o fiz uma enxurrada de vozes me incentivavam a continuar, inclusive a de meus amigos. E então, continuei. Cantei com todo meu coração e alma não só aquela música como tantas outras, e nunca me sentira tanto parte da casa como estava me sentindo naquele momento, tudo estava indo maravilhosamente bem, mas apesar de todos os que conhecia estarem presentes ali comigo, com o canto de olho percebi um vulto. Instintivamente me virei na mesma direção em que o vira ela estava lá, em pé, me observando e havia algo nos seus olhos que me fazia estremecer.


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Notas finais do capítulo

Aposto que já sabem quem apareceu, hehehe



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