Obscuro escrita por Benihime


Capítulo 3
Capítulo 2




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/721312/chapter/3

Nia foi a primeira a acordar, pouco depois do amanhecer. Inquieta demais para ficar parada, a morena vestiu-se rapidamente e saiu após deixar um bilhete para sua irmã explicando que iria até a cidade.

Na noite anterior, uma dupla de homens de uma empresa que Cassie havia contratado levaram o carro que a jovem havia solicitado. Era uma velha picape de um amarelo desbotado. Nia não entendia e nem se importava sobre carros o bastante para saber o modelo, apenas ficou satisfeita quando o motor barulhento ligou na primeira tentativa, sem maiores complicações.

Segundo os avisos que recebera na noite anterior, a estrada era perigosa, mas a morena tinha certeza que ficaria bem se dirigisse abaixo do limite de velocidade. Estendendo uma das mãos, Nia ajustou o mapa no banco do passageiro de modo a poder olhá-lo sem dificuldade mesmo enquanto dirigia, e só então pegou a estrada.

A primeira meia hora foi enervante. Por cautela, Nia se mantinha numa velocidade muito abaixo da recomendada, a velha picape quase se arrastando. A jovem trincou os dentes, controlando-se para não acelerar, e logo ficou feliz por sua prudência, pois foi nesse exato momento que um vulto passou correndo rapidamente pela estrada, bem na frente do carro.

— Merda! — A morena exclamou, pisando abruptamente no freio.

O carro deu um solavanco abrupto e Nia, desprevenida, bateu a cabeça no teto. Por sorte o antigo revestimento era macio e aliviou o impacto. A morena seguiu devagar para o acostamento, desligou o veículo e deixou-se relaxar no banco de couro.

— Caramba, Nia. — Ela murmurou para si mesma. — Se acalme. Foi um gato, só isso. A droga de um gato.

A jovem fechou os olhos por um momento, concentrando-se em sua respiração até que seu coração desacelerasse. Quando enfim recobrou o controle, desceu da picape e olhou em volta à procura do que a fizera frear. Não viu nada além de uma estrada vazia.

Provavelmente fugiu. Nia pensou consigo mesma. Sim. O maldito bicho provavelmente já está longe a essa altura.

Com um suspiro pesado de frustração, a jovem voltou a entrar na picape e deu a partida. Dessa vez, toda a sua atenção estava focada na estrada.

Enquanto isso, no antigo casarão de Lacey Cresswell, Cassie havia acabado de acordar. Não demorou muito para perceber que estava sozinha, depois de ter chamado por Nia sem resposta e procurado infrutiferamente no quarto do terceiro andar.

Ao descer de volta para o segundo andar, ouviu passos e uma pancada seca no corredor atrás de si. Seu sangue gelou nas veias enquanto a loira paralisava, sem ousar se virar para ver o que havia atrás de si.

— Nia. — Ela chamou baixinho. — Nia, é você?

Não houve resposta, e Cassie estremeceu. Sentia-se vulnerável ali no alto das escadas, extremamente exposta.

— Nia. — A loira chamou mais uma vez, agora mais alto. — Há-há, estou morrendo de rir. Pode sair de onde estiver, isso já não tem mais graça.

Mais uma vez, silêncio. Cassie revirou os olhos, imaginando sua irmã mais velha escondida em algum lugar, pronta para saltar e assustá-la assim que se distraísse. Seria uma pegadinha típica de Nia.

— Tá, que seja. — A mais nova murmurou, descendo as escadas a passos rápidos, pisando duro, irritada com aquela atitude infantil. — Cresça, Nia.

A loira voltou para seu quarto e viu um bilhete ao lado de seu travesseiro, algo que não havia reparado antes. Ela o pegou para ler e deixou-o cair logo em seguida, gelada de pavor:

 

Cass, fui à cidade comprar o que precisamos. Desculpe por não te convidar, mas você estava dormindo tão tranquila que não quis te acordar.

Volto depois do almoço e prometo trazer alguma coisa boa para comer. Beijos!

 

Por um momento a jovem considerou a possibilidade de uma pegadinha, mas foi logo descartada. A letra no bilhete era sem dúvida de Nia, assim como o estilo da escrita.

Outra pancada seca soou no corredor, seguida pelo som quase imperceptível de passos, como se alguém estivesse andando na ponta dos pés. 

Cassie arquejou de susto e agarrou a primeira coisa que lhe pareceu afiada o bastante para ser uma arma: um pequeno canivete. Olhando apressadamente em volta, viu um vão entre o guarda-roupas e uma antiquada estante de madeira, onde as sombras a camuflariam. Escondeu-se ali sem pensar duas vezes e concentrou-se em controlar sua respiração, fazendo o máximo de silêncio possível e reunindo forças para uma investida conforme os passos se aproximavam.

Logo Cassie ouviu o ranger suave das dobradiças da porta, como se quem quer que fosse a tivesse empurrado com extremo cuidado para evitar anunciar a própria presença. A jovem retesou os músculos, pronta para saltar e atacar o intruso.

Os passos se aproximaram ainda mais, pareciam prestes a descobrir seu esconderijo. Se prestasse atenção, Cassie podia ouvir uma respiração suave, quase imperceptível. Seus dedos seguraram o canivete com mais força enquanto ela saltava para fora de seu esconderijo.

A loira arquejou audivelmente e deixou cair sua arma improvisada. Seus olhos arregalados de susto esquadrinharam cada centímetro do quarto, comprovando aquilo que já havia percebido: estava completamente sozinha.

 

Horas depois

 

Cassie ouviu a picape na estrada e logo Nia estacionava perto da varanda, cantarolando consigo mesma enquanto andava. Seu bom humor, porém, se desfez assim que viu a palidez de sua irmã.

— Cassie! — A morena exclamou, consternada. — O que aconteceu? Não me diga que está doente! Quer que eu ligue para o seu médico?

— Não, mana. Relaxe, eu estou bem. — A mais nova garantiu, esboçando o mais breve dos sorrisos. — Foi só um susto. Acho que me deixei levar.

Nia sentou-se ao lado de sua irmã mais nova, passando um braço por seus ombros. Cassie se deixou abraçar.

— Vamos lá, irmãzinha. — A jovem de cabelos escuros disse. — Me conte tudo.

— É bobagem. Sério. Não foi nada de mais. — Cassie respondeu. — Eu só ouvi passos. Sabia que estava sozinha, então procurei a primeira coisa que servisse de arma e me escondi. Fiquei ouvindo, e podia jurar que tinha alguém no quarto comigo mas … Quando fui olhar … Eu estava sozinha. Não vou mentir, foi bem assustador.

— Quando isso aconteceu?

— Hoje de manhã. — Foi a resposta. — Depois disso passei o resto do tempo caminhando por aí, pra tentar descobrir se existe alguma outra propriedade por perto. Sabe como é, moleques e suas pegadinhas.

— É, eu sei. — Nia concordou com uma careta de desgosto. — E aí?

— Nada, Nia. — A loira balançou a cabeça, uma sombra de medo aparecendo em seus olhos. — Somos as únicas em quilômetros.

— Aparentemente. — Nia disse com gentileza. — Não pire, Cass. Ainda não está excluído o fato de ter sido algum moleque.

— Não, duvido muito. — Cassie protestou. — Ninguém poderia ter fugido tão rápido. Eu teria visto alguém no corredor ou pelo menos … Sei lá, ouvido alguma coisa.

Nia fitou sua irmã com o cenho franzido, cada vez mais intrigada.

— Como assim?

— Essa é a parte mais estranha. Eu não ouvi ninguém descendo as escadas. Nenhum carro ou bicicleta na estrada. Nenhuma porta ou janela batendo. Nada. Simplesmente não tinha ninguém ali, como se eu tivesse estado sozinha o tempo todo. 

A morena fitou sua irmã mais nova com preocupação, um olhar que fez Cassie querer dar-lhe um tapa. Odiava quando Nia era condescendente. Na verdade, odiava isso em qualquer pessoa, mas quando se tratava de sua irmã a condescendência era especialmente irritante.

— Você me disse meses atrás que o acidente deixou sequelas. — A mais velha disse, hesitando um pouco, como se avaliasse o efeito de suas palavras.. — Alucinações leves, por exemplo. Esses passos que você ouviu podem ter sido só um truque.

— Eu não estou louca, Nia!

— Não disse que está. — Nia protestou. — Mas você não gosta daqui. Cansaço e auto sugestão podem ter feito todo o trabalho.

Apesar de sua irritação, a loira se forçou a admitir que sua irmã podia estar certa. A mente humana é, afinal, uma grande e complexa armadilha.

— O que houve? — A mais nova inquiriu, vendo a mancha roxa acima da sobrancelha de sua irmã. — Mal chegou na cidade e já arranjou briga com alguém? Quem foi o infeliz?

— Não foi nada. — Nia deu de ombros. — Um animal passou correndo na frente do carro. Deve ter sido um gato.

— “Deve ter sido”? Como assim?

— Foi muito rápido. Eu não consegui ver. — A morena explicou. — Bati a cabeça no teto quando freei, mas dei sorte de estar devagar. Não me machuquei.

As duas irmãs se entreolharam, intrigadas. Teriam ficado sentadas ali na varanda por horas, debatendo aqueles estranhos acontecimentos, mas o sopro de um vento gélido fez com que se apressassem a entrar no antigo casarão.

Meia hora depois, haviam descarregado os mantimentos que Nia trouxera e a morena olhava pela janela enquanto Cassie fazia chocolate quente.

— Espero que essa tempestade não seja tão ruim quanto parece. — A loira comentou, juntando-se à sua irmã para observar o céu cada vez mais cheio de nuvens pesadas de um cinza-chumbo ameaçador. — Não estou gostando disso.

Nia assentiu, pegando a caneca de chocolate quente que sua irmã lhe estendia e dando um pequeno gole.

— Não sei não, mana. Essa parece ser das grandes.

— Eu odeio tempestades.

— Eu sei. — A mais velha sorriu. — Por sorte fiquei sabendo da tempestade enquanto fazia compras e trouxe alguns extras: velas, isqueiros e lanternas de reserva.

— Vamos distribuir as velas, então.

Nia assentiu e pegou dois imensos pacotes de velas que deixara sobre um balcão da cozinha.

— Por mim tudo bem. — Ela disse. — Você coloca algumas lá em cima, eu cuido aqui de baixo. Pode ser?

Cassie concordou silenciosamente, e pouco depois havia velas espalhadas pela casa. Cada uma das irmãs também portava uma lanterna presa na cintura, apenas por precaução.

Nia se aproximou de uma das enormes janelas da sala de estar e apoiou-se contra o vidro, de onde observou o céu enegrecer cada vez mais até o mundo lá fora parecer ter sido engolido pela escuridão. As luzes de repente se apagaram, fazendo Cassie soltar um gritinho de susto.

— Qual é, Cass. — A morena provocou enquanto ligava sua lanterna. — Para uma militar, você não é muito durona.

— Ah, cale essa boca, Nia! — Foi a resposta.

As duas irmãs se puseram a acender as velas, e logo o ambiente estava agradavelmente iluminado pela luz alaranjada. 

— Ei, que tal uma sopa quente? — Nia sugeriu. — Acho que vai ser bom com esse tempo.

— Ah, com certeza. — Cassie concordou com um sorriso. — Vamos começar?

— Quando quiser, irmãzinha.

Nia começou a cortar os ingredientes enquanto Cassie preparava o restante. De repente um grito de sua irmã mais velha a fez pular de susto.

— Nia! — A loira exclamou, alarmada. — Nia, o que foi?

A morena, que até então estivera encarando uma das janelas, virou-se, e Cassie sentiu um arrepio. Aqueles mal pareciam os olhos de sua irmã. Eram mais escuros, mais frios. Então, de repente, Nia piscou e a sensação desapareceu. Era simplesmente sua irmã mais velha, encarando-a com assombro em seus enormes olhos azuis.

— Tinha … — A mais velha balbuciou baixinho, sua voz tremendo. — Tinha alguém aqui, na janela.

— Talvez seja alguém perdido.

— Você mesmo disse, Cass, estamos quilômetros longe de qualquer um. — Nia rebateu, recobrando um pouco o controle. — Além do mais, quem viria até aqui com esse tempo?

Com um arrepio, Cassie admitiu que sua irmã tinha razão. Ela aproximou-se da janela, mas não viu nada além de sujeira acumulada e água que escorria pelo vidro.

— Bem … — A loira deu de ombros e tentou sorrir. — Seja lá o que tenha sido, parece que já foi embora.

— Sim, sumiu quando percebeu que eu o vi. — Nia informou. — Tem uma câmera logo ali, em cima daquela bancada. Vamos ver se conseguimos gravar alguma coisa.

O notebook de Nia estava sobre a mesa da cozinha. A morena o ligou e acessou o programa especial que sincronizava com suas câmeras, escolhendo o arquivo de vídeo de que precisava para poder ver os últimos minutos de filmagem. Assistiu ao vídeo em um loop cerca de cinco vezes antes de soltar um longo suspiro.

— Nia. — Cassie disse gentilmente. — É sério, está tudo bem. Provavelmente foi só um truque da luz.

— É, acho que sim. — A morena concordou, apontando para si mesma na gravação e depois para a janela. — Foi exatamente aqui que eu o vi. Quem ou o que quer que fosse, devia aparecer bem aqui, no canto. Não teria como fugir tão rápido.

— Esqueça isso. — A loira massageou carinhosamente os ombros de sua irmã mais velha. — É como você mesma disse: às vezes a mente nos prega peças. Pode facilmente ter sido um arbusto ou algo assim batendo na janela.

— É, você tem razão. — Nia fechou seu notebook e esboçou um sorriso. — Acho que nós duas estamos nos deixando levar por esse lugar. Desculpe. Vamos terminar a sopa.

As duas irmãs terminaram de cozinhar em silêncio e comeram em igual quietude, cada qual perdida nos próprios pensamentos. Após o jantar arrumaram a cozinha e seguiram para seus respectivos quartos. O sono não veio fácil para nenhuma das duas.

De madrugada, Cassie foi acordada de súbito pelo estrondo de um trovão. A loira sentou-se e afastou o cabelo dos olhos, percebendo que havia adormecido sem querer enquanto lia. Isso acontecia desde o acidente, o cansaço a afetava mais do que o normal.

Inquieta, a jovem se pôs de pé e foi até sua mala, tateando entre as roupas até encontrar sua fiel Glock, parceira de várias missões. Cassie correu os dedos pela superfície fria da pistola, ponderando, antes de enfim concluir que estava paranóica.

Outro trovão ribombou e o clarão inesperado de um raio desenhou estranhas formas sombrias nas paredes. Cassie estremeceu, ativou a trava de segurança e colocou a Glock debaixo de seu travesseiro, encaixada entre a cama e a parede. Ali não atrapalharia seu sono nem seria difícil de alcançar em caso de necessidade. E o melhor: Nia jamais descobriria.

Enquanto isso, Nia ainda estava acordada. Fitava intensamente uma faca de cabo de osso que pegara na cozinha. Algo no modo como o brilho da tempestade se refletia na lâmina a agradava. Algum tempo depois ela finalmente adormeceu, seus dedos ainda firmes ao redor do cabo da faca.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Obscuro" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.