Casualidades: Zero escrita por Kuronekoekoeko


Capítulo 1
Capítulo único.




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Naquele imisericordioso clima, era como se todos os seus movimentos gerassem verdadeiras tempestades: glaciais lâminas de ar, fatiando a rígida superfície da pele áspera do transumano, a medida que, simultaneamente, quantidades de punição centenas de milhares de vezes maior fustigavam-no, de todos os ângulos e direções concebíveis; incalculável celeridade e potência munindo cada novo golpe, cada nova saraivada de murros.

Assim titubeava o titã. Suas pernas, oscilando contra a sua vontade, premeditavam o iminente colapso. Seu corpo, comunicando-se com seu cérebro entre sutis trocas de sinais elétricos, inibiam-no de olvidar qualquer fração mínima de lancinante agonia que sucedia cada corte, lesão e hematoma sofrido.

Tudo, sangrento fruto de um colossal entrave...

... Que podia ser simplesmente resumido como um genuíno desperdício massivo de tempo e energia.

“ N ã o ! ”

O espírito por trás da carne, a alma por trás da dor, todavia, recusava-se a emudecer-se:

“Meu sacrifício não é inútil! Eu luto hoje para que a minha família possa lutar amanhã!”

E disparava seu braço direito adiante, movido por um ímpeto explosivo que enaltecia o peso de sua investida aos níveis de uma gigantesca bigorna de aço, retalhando o ar com fulminante e esmagador vigor...

... Um fútil contra-ataque, imediatamente respondido por um cruzado virtualmente decapitante. Pela primeira vez em cerca de oito minutos e meio de combate, o Suíno beijava o asfalto recheado de neve, sarapintando a prata sob suas botas com nódoas de um carmesim indescritivelmente repulsivo.

Foi ali que o vento uivou, com veemência significantemente maior do que o normal, sibilando em seus ouvidos, feito uma trombeta de guerra, proclamando a vitória do homem que havia restado de pé, o nobre guerreiro cujo peito trajava a insignia de estrelas.

Panóplia, Mulher-Mausoléu e Professor Ganância...”, seu tom era abastado de autoridade, firme e grave, como o de alguém que não diz, mas que sim decreta. “Eles podem ter fugido com o conteúdo do cofre do banco de Omega City em seus bolsos, mas não terão oportunidade de gastar sequer um centavo de seus espólios quando eu colocá-los atrás das grades.”

Tremelicantes e fragilizados, seus braços mal tinham a força requerida para soergue-lo do chão. No final das contas, contudo, eles cumpriam com a sua missão, numa louvável performance de perseverança. O Suíno arfava, por inteiro exausto, consciente até então apenas por alguma espécie de milagre, por uma intervenção sem dúvida divina.

“Seus companheiros o abandonaram. Mais do que isso, eles te traíram. Você não deve nada mais à eles”, o Marechal prosseguia. “Se renda, Billy. Esse é o fim.”

O desenlace daquele diálogo foi de uma natureza simplesmente medieval. Dos pulmões do vilão, explodia um bramido gutural, barbárico, o truculento urro de um perigoso animal, acoado e ferido pelas mãos de um predador superior. Tal qual o céu e a terra, os arranha-céus de Omega City haviam de sacudir.

Seus dedos, então, se entrelaçavam uns sobre os outros, assumindo a forma de uma improvisada marreta: os músculos de todo o seu corpo se expandiam, se transformavam, ganhavam cada vez mais massa e dimensões, uma cena monstruosa responsável por fazer com que a fantasia, a ficção e o impossível negassem a realidade e a ciência: nas mãos daquele neandertal moderno, um avassalador poder destrutivo havia sido reunido, um como aquela cidade jamais havia antes testemunhado.

De fato, aquele seria o fim.

...

...

...

Sua visão, uma vez turva, agora vagarosamente recobrava seu foco. O ensurdecedor apito mazelando seus tímpanos, com lentidão análoga, também ia se desfazendo. O transumano não mais sentia nada, além de uma debilitante enxaqueca, como se um caminhão preenchido com granadas e dinamites tivesse detonado bem ao seu lado, arrancando-lhe seus dois braços e pernas, e com eles, sua percepção e seus sentidos.

Rastejando para fora da astronômica cratera de pedra, canos de esgoto e entulhos (cortesia de seu último, e desesperado, ataque), aos poucos, o Suíno assimilava e constatava a genuína magnitude dos estragos: incontáveis fissuras sobre a faceta demolida das ruas, janelas inteiramente espatifadas, automóveis virados, se não por inteiro pulverizados, lojas e prédios arrasados além de qualquer reconhecimento...

... E, por fim, o Marechal Bravura em pessoa, com sua guarda baixa, absolutamente vulnerável, no meio do seu intrépido socorro das vítimas de um dos imóveis selvagemente arrebentados pela explosão.

Raios, quem, em seu lugar e em sã consciência, não decidiria instantaneamente tirar proveito daquelas vantajosíssimas circunstâncias? Apanhando do chão uma gigantesca viga retorcida de aço, o vilão marchou, cambaleando (certamente aturdido e desorientado), até às costas do Marechal; que se via, agora, como a última peça de sustento do edifício sobre os seus dois ombros, o único fator impeditivo de seu desmoronamento total e, consequentemente, a morte de dezenas.

Entre berros e lágrimas, as formigas patéticas escapavam da bruma de fumaça erigida pelos precipitantes escombros. Naquela posição, o herói dos heróis, objetivando defender-se, se veria sem outra escolha se não selar o destino daquele grupo inocente de vítimas do duelo entre o bem e o mal que ali suscitou-se... mas poderia o símbolo maior da paz em Omega City realizar tão medonho sacrifício?

Seria o mais lógico, não?

Afinal, se aquela estaca atravessasse seu coração, não iria o prédio desabar sobre a cabeça daqueles homens, mulheres e crianças, de qualquer jeito?

Havia o herói... falhado? Havia o mal... triunfado?

Inquietável, a neve valsava, indomável e formosa, entre a silhueta inexpressiva daquelas duas figuras, estáticas no âmago daquele desenfreado caos urbano: a nevasca, inexorável, estoica e, acima de tudo, neutra, nada mais do que uma vigilante sentinela invernal, inalcançável pelas escolhas absolutamente decisivas que, em instantes, seriam simultaneamente feitas não só pelo justiceiro, mas como também, pelo próprio mal-feitor.

Dizem que a linha que separa um do outro é, de fato, tênue, embora visível, se não até palpável...

... Já eu digo que, uma vez coberta pela neve, até mesmo esta linha tão bem delimitada pode tornar-se imperceptível, a ponto de, por um único instante, até mesmo, quem sabe, deixar de existir.

...

...

...

24/12/20XX.

Uma notória gangue criminosa, apelidada pelos tabloides e o público como ‘Os Bandidos Renegados’, assalta o banco nacional de Omega City, em plena véspera de Natal.

Três integrantes de uma quadrilha composta por transumanos escapam da policia.

Um, porém, fica, afim de proteger os demais da captura.

Um justiceiro e um mal-feitor se enfrentam.

Número de casualidades naquele dia...

. . . Z e r o .

 

 

Fim.


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Notas finais do capítulo

Presente de aniversário, Natal e Ano Novo (dois atrasados, um adiantado).



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