Svyazi escrita por Leona Devolk


Capítulo 2
Capítulo II - Filho da América




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 “Adam”. Assim The Boss o havia chamado. Uma versão menor e mais simples do nome a ele dado, por pessoas que não mais o comandavam.

 A sonoridade de “Adam” era bem diferente da que possuía seu nome original. Uma sonoridade americana, e o russo a apreciou. O nome Adamska possuía um ar frio, se remetendo a dores passadas; já Adam, possuía certo calor. Certa informalidade. Isso lhe era agradável.

 No campus, também havia árvores, não restringindo a venustidade delas apenas para a floresta que a tudo ladeava do lado externo. Árvores altas, imponentes e com enormes folhas, onde alguns alunos aproveitavam a sombra fresca por elas proporcionada. Ainda que todo o solo do lugar fosse pavimentado e perfeitamente retilíneo, ao redor das árvores havia gramados floridos envoltos por baixas cercas de ferro, meramente decorativas.

 Em torno dos edifícios, havia cercas vivas muito verdes e canteiros de flores brancas. Tudo inspirava beleza, paz, ordem... Alegria. Adam sentia-se alegre; sem mesmo saber o nome disso que pela primeira vez sentia, ele gostava. Era como conquistar a liberdade — o que era, de fato.

 Ele havia visto bastante do “mundo de fora”. O mundo que antes era utopia passou a ser sua realidade. E tudo era muito mais belo que em sua imaginação.

 Ahab permaneceu em silêncio por todo o caminho, com Adam o acompanhando. Não que ele estivesse incomodado em seguir uma ordem de Boss ou com a presença do jovem russo; pelo contrário: Ahab estava curioso para saber como aquele menino esfarrapado foi encontrado e pelo quê ele havia passado antes de sua chegada. Ahab, apenas, nunca foi muito falante.

 O edifício em que os dois entraram possuía um telhado pontiagudo e um grande relógio em seu topo, com ponteiros em números romanos. Tinha cerca de três andares, janelas coloniais e, na entrada, uma grande porta dupla com o símbolo de Cobra Unit talhado na madeira, em cada um dos lados. Para entrar, antes era preciso subir dez degraus de mármore claro.

 Ao entrarem juntos, a primeira coisa notada por Adam foi o intenso aroma de produtos de limpeza no ambiente. O térreo, onde estavam, era um largo e extenso corredor com paredes e portas igualmente brancas. Acima de cada porta, uma pequena placa verde oliva com uma letra. Ao lado delas, algumas cadeiras. Ao fim do corredor, havia uma escadaria que levava ao primeiro andar e um elevador para cargas. O piso era de mármore cinzento e frio, muito bem encerado, livre de qualquer sujeira. Nele, os garotos podiam enxergar seus reflexos.

 Adam jamais havia visto o próprio reflexo. Os cabelos longos e lisos, imundos, tornando marfins as suas madeixas louras. O rosto, manchado por sujeira. As roupas, tão largas que dentro caberia dois dele, terríveis. Pequenas bolsas escuras sob os olhos devido a noites mal dormidas. Bochechas fundas e ossos das clavículas destacados, exibindo seus anos alimentando-se mal. Não era magro a um estágio de doença mas, ainda assim...  

 — Esta é a ala da enfermaria. – Ahab cortou os pensamentos do órfão. – No primeiro andar, tem o achados e perdidos, o depósito e o arsenal. No último, é onde são fabricados e armazenados os uniformes do instituto.

— Oh... 

 Adam foi tomado por uma súbita timidez, não sendo capaz de dizer nada além. Sua aparência, que jamais o tinha incomodado, agora incomodava profundamente. Todos que havia conhecido até o momento em seu novo lar eram limpos e bem vestidos.

 Continuaram caminhando até alcançarem a porta com a letra F. Dali em diante, só havia portas até a letra J. Ahab bateu à porta calmamente, e uma voz feminina e jovial do lado de dentro os convidou a entrar.

 O quarto possuía três camas hospitalares vazias, cobertas com lençóis brancos bem arrumados. Equipamentos de ponta, armários e prateleiras com muitos medicamentos e o mesmo aroma de chão asseado. A janela foi deixada parcialmente aberta, para circulação de ar. E algo que surpreendeu Adam, mesmo que de todas as surpresas esta não fosse a mais importante: uma televisão em cores e um pequeno rádio estavam num canto, para ocasionalmente distrair pacientes que lá estivessem. Ele já ouviu falar de tais eletrônicos, mas jamais os tinha visto.

 — Olá, filho querido. — a doutora, de cabelos chanel e castanhos, encontrava-se de costas para os recém-chegados, procurando algo numa gaveta. — Joy pediu que trouxesse o rapaz novo para mim? Certamente ele precisa de um corte de cabelo novo, esses monstros soviéticos nunca...

 Ao virar-se rapidamente, Dra. Clark derrubou uma caixa com utensílios de corte capilar que enfim tinha encontrado, espalhando todo o seu conteúdo no chão brilhante. Adam assustou-se com a atitude inesperada, e Clark não conseguia tirar seus olhos dele. Parecia que tinha visto um fantasma, ou algo pior. Era um olhar semelhante a que Joy tinha tido por ele, mas sem os traços de afeição que a diretora tinha. Clark estava espantada, somente.

 — Bem... — Clark fez o possível para recuperar a compostura. — Obrigada, Ahab. Pode voltar para o intervalo, divirta-se com seus amigos. Caso eu precise, te chamarei.

 Ahab, impassível e em silêncio, se foi, fechando a porta ao sair. Sozinhos, Adam ainda podia enxergar o terror nos olhos da doutora.

 — Seu nome é Adamska, certo? — Clark sorriu o mais sinceramente que podia. — Quantos anos você tem?

 — Treze... Tenho treze anos. — Adam ficou indeciso entre olhar para o chão e ver seu reflexo terrível e olhar para a médica e sentir-se envergonhado.

 Mais alguns segundos de silêncio, onde Clark procurou não demonstrar nervosismo com a revelação, e começou a recolher tudo o que se espalhou no chão com a chegada do jovem. Adam caminhou até ela para ajudá-la a recolher, quando foi interrompido:

 — Há uma revista com exemplos de cortes de cabelo permitidos no instituto sobre aquela mesa. Pegue-a e escolha qual quiser, eu o farei. — ela sorriu, com mais tranquilidade. — A sorte de ter tanto cabelo é poder fazer o que bem quiser com ele. Garanto que ficará lindíssimo.

 

 

 

* * *

 

 

 

 Eram inúmeras as possibilidades de corte. A doutora o ofereceu uma cadeira para sentar-se e escolher calmamente. O cobriu com algo que se assemelhava a uma longa toalha de mesa, para que o cabelo cortado não caísse diretamente sobre ele.

 Adam não se importaria em ter todo o seu cabelo cortado, mediante seu desejo de não mais ver-se tão desagradável. Escolheu um estilo simples, extremamente curto, sem qualquer franja ou detalhe especial, sem hesitar. Clark o parabenizou pela escolha e pela coragem.

 O corte era feito apenas por tesoura. Adam sentia satisfação conforme a ferramenta passava ao redor de sua cabeça, gerando o cortante som da colisão de lâminas à medida que suas mechas louras caíam por todos os lados, como folhas secas. Um corte militar de padrão soviético, por coincidência ou não. Entretanto, sem necessidade de raspar um fio de cabelo sequer.

 Clark era caprichosa com o serviço e muito cuidadosa. Vez ou outra, contava histórias divertidas de alguns pacientes que precisaram ficar na enfermaria por motivos ridículos, como um rapaz que certa vez tentou roubar a noz de um esquilo, por pura maldade, e foi atacado. O esquilo venceu, é claro.

 Ao fim do processo, Clark tirou de Adam a toalha protetora. Molhou um pedaço de algodão com um produto perfumado e o passou no rosto do jovem lentamente, para limpar a sujeira e a poeira que nele havia. O líquido no algodão era gelado e criava uma boa sensação junto ao aroma de erva-doce que exalava.

 Com seu rosto limpo e brilhante, Adam viu-se muito diferente no reflexo do espelho mediano que a doutora pôs à frente de sua face. Ele estava novo.

 — Sinto que você gostou. — Clark sorriu junto a ele. — Ficou maravilhoso em você, Adamska. Nenhum outro ficaria tão perfeito.

 Adam passava as mãos queimadas no topo da cabeça, onde o cabelo estava ligeiramente maior que no restante, e sentia a textura macia dos cabelos curtos. A sensação seria de como tocar os pelos de um gato, caso ele já tivesse tocado em um.

 — Adamska... — Clark principiou, guardando o espelho logo que Adam estava farto de ver-se. — Preciso coletar um pouco do seu sangue. Para fins médicos... Tudo bem?

— Tudo bem. — olhava para o cabelo cortado que maculava o piso luzidio.

 — Será rápido. Eu prometo.

 Foi amarrado um torniquete num dos braços. Havia sido fácil encontrar a veia para a coleta, devido à pele clara e braços finos do russo. Clark, munida de uma seringa, recolheu o sangue de coloração escura com muita facilidade, e Adam nem mesmo poderia dizer que sentiu dor. No máximo, um leve incômodo. Não era como se essa fosse uma má sensação, ao comparar com outras que experimentou durante a vida.

 Assim que Clark removeu a seringa, limpou o local e fez um curativo, Joy abriu parcialmente a porta, para espiar o que acontecia. Viu Clark segurando a amostra de sangue e entrou no quarto por impulso. A doutora a olhou fixamente, e Joy assentiu com a cabeça, compreendendo a situação.

 Quando Joy olhou para Adam, sentiu seus olhos marejarem. Ele estava contente. Radiante.

 — Lindo. — Joy acariciou os cabelos dele mais uma vez, sem deixar de sorrir e o olhar nos olhos. — Ficou ótimo, Clark. Melhor impossível.

 — Eu disse. — Clark deu dois tapinhas delicados no ombro do menino.

 Ao notar a maneira que estava agindo para com o rapaz, Joy tornou ao seu habitual tom de seriedade.

 — Adam, preciso que me responda uma pergunta. As pessoas que comandavam as crianças na fábrica... Falavam em russo ou inglês?

 — Inglês... De vez em quando, alguns deles falavam em russo, e eu não conseguia entender nada. Mas todos falavam inglês, e fui ensinado a ler em inglês.

 — Desertores que distribuem armamentos no território inimigo? — Clark falou diretamente para Boss.

 — Pior. Distribuem armamentos no padrão dos nossos. Passaram a trabalhar a serviço da Rússia vendendo equipamentos patenteados pela América. Todas as armas coletadas são idênticas às produzidas aqui.

 As mulheres entraram numa intensa conversa, mas Adam distraiu-se completamente. Desertores... Ele não estava cumprindo uma missão, como foi doutrinado. “Eu era um escravo, e fui resgatado por pessoas realmente boas. Eu estava preso, e não estou mais.”

— ...isso explica o exemplar de Red Western encontrado nos porões da fábrica. — dizia Joy. — Livros americanos não são bem vindos em território soviético, e esse estava velho e esquecido.

 — Meu livro — Adam pronunciou em alto tom, inesperado, que assustou a ele mesmo. Rapidamente diminuiu a entoação, tornando-a quase um sussurro. — Meu... O livro que eu costumava ler.

 — Não se preocupe. — Joy não pôde evitar um sorriso. — Ele está guardado no depósito, para ser renovado e posto na biblioteca com todos os outros.

 — Aqui tem uma biblioteca?! E com mais livros como aquele?

 — Sim! — Joy o acompanhou em sua empolgação — E quantos outros gêneros quiser, e você poder ler todos!

 Clark demonstrou seus sentimentos num meio sorriso, sem nada dizer, encantada com a relação estabelecida naquele momento por Boss e o rapaz. Ao perceber, Joy tossiu para contornar a situação, e estendeu para ele uma bolsa transversal verde escura repleta de coisas dentro, que carregava em seu ombro desde sua chegada.

 — Tomei liberdade de pegar seu uniforme e guardar nesta bolsa, para facilitar para você. Há duas camisas idênticas para usar durante a semana, a calça e a jaqueta camufladas e uma boina, caso queira usá-la. Também há um par de botas pretas, cuecas limpas e dois pares de meias. Um pijama leve para usar durante a noite... — Joy olhava dentro da bolsa, para checar se não havia esquecido nada. — Escova de dentes, toalha limpa e um sabonete. A bolsa também é sua. Conforme for sujando as roupas, há uma lavanderia para limpá-las. Mas as cuecas e as meias você sempre vai precisar lavar sozinho, porque se perdem nas máquinas. Não se preocupe se alguma das suas roupas sumir, você pode pedir outra peça no segundo andar desse mesmo prédio em que estamos. Exceto se rasgar... Nesse caso, você vai precisar aprender a costurar.

 — Sei costurar. Foi nos ensinado para que sempre que uma roupa rasgasse ou crescêssemos demais, não precisassem gastar com roupas novas.

 — Oh... — fez o possível para não transparecer sua tristeza. — Isso é bom de certa forma, Adam. Os alunos desastrados daqui precisaram aprender rapidamente. Isso se não se incomodassem em andar por aí de pijama furado. — enfiou a mão no bolso esquerdo e retirou um papel dobrado. — Viu os prédios lá fora, certo?

— Sim...

 — O que estamos é o prédio utilitário, representado pela letra U. Os prédios A, B e C são para aulas: o A é para o Fundamental Inicial, o C é para o Ensino Médio e o B é para o Fundamental Final, e é nesse em que você estará. No grande galpão, fica o refeitório, onde terá seu café da manhã, almoço, refeição da tarde e jantar. No prédio D, além da biblioteca de que falei, é onde fica o auditório, a sala dos professores e a diretoria. Dois prédios idênticos, que ficam lado a lado, são os dormitórios feminino e masculino. O masculino possui uma placa com um M e o feminino com um F, é claro. No térreo do seu dormitório é onde fica a lavandeira exclusiva de vocês e os banheiros, e é lá onde estão os chuveiros. Agora, você deverá ir até os chuveiros, limpar-se e vestir-se a caráter da instituição.

 Adam manteve-se atento a cada palavra dita por Joy, mas perdeu-se e não foi capaz memorizar tudo. Ela não precisava ter explicado sobre o campus, mas seu ser possuía uma estranha necessidade de dar todos esses avisos.

 — Desculpe. É muito mais fácil te entregar o mapa daqui. — Joy entregou o papel e estendeu novamente a bolsa, e Adam os pegou. — No verso, anotei o número da sala em que você estudará, do quarto em que você dormirá, do armário que você usará para guardar seus materiais e da senha para abri-lo. Passe na biblioteca ainda hoje para buscar materiais e os guarde com você no dormitório. Os armários estão nos corredores de lá para que não fique sobrecarregado. Lembre-se de pegar seu cronograma de aulas na biblioteca, também... Gostaria de ter providenciado isso, mas ainda não está pronto.

 Adam nada conseguia pronunciar. Sentia uma mistura de plena felicidade e confusão, que não passava despercebida por Boss.

 Estava recebendo atenção e cuidados impensados. Sentia-se amado como jamais sentiu. O pequeno mundo em que vivia na Rússia era infeliz, consternado, e ele não fazia ideia. Não sabia sentir tristeza ou alegria, pois não sabia diferenciá-los, justamente por nunca ter provado o segundo. Ver pessoas tão boas o fez enxergar enfim o quão monstruosos eram seus donos. Maldosos e com atitudes cruéis, que foi ensinado a aceitar e achar correto.

 Para Adam, todos aqueles que contribuíram para sua vida de trevas poderia morrer. Isso se já não estivessem todos mortos. Toda a Rússia poderia explodir com a guerra, e ele não se importaria.

 — Obrigado, Boss...

 — Joy. — demonstrou um meio sorriso.

 — Obrigado, Joy. — Adam sorriu com mais intensidade. — Espero poder retribuir tudo isso um dia, servindo a América. A Rússia jamais foi meu país.

 — Esse é o espírito. — Joy bagunçou os cabelos curtos do menino. — Agora, vá. Mostre a todos o bonitão que se esconde sob esses trapos.

 Quando Adam se foi, com a bolsa atravessada em seu tronco, Joy sentou-se silenciosamente na cadeira onde ele estava anteriormente para que, desta vez, o sangue dela mesma fosse coletado. Algo que Clark disse após a retirada foi algo quase inegável: “Mesmo sem o exame, é nítido tanto para mim quanto para você: Adamska é seu filho roubado”.

 

 

 

 

* * *


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Notas finais do capítulo

~ Clark é a Para-Medic do Snake Eater
~ Sim. Aqui, Ahab é filho dela :B



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