Arte escrita por My Dark Side


Capítulo 1
Descolorirá


Notas iniciais do capítulo

Sentem-se, há muitos lugares vagos.
Para melhor apreciação do show recomendamos um cafezinho antes do início, gostariam de um acompanhamento?
Sintam-se a vontade e chamem em caso de desconforto, obrigada.

Oh, interessaram-se pelo fundo musical? É a música Aquarela, de Touquinho e Vinícius de Moraes, o parceiro do artista a está tocando. Agora despeço-me brevemente e desejo um ótimo show.

(link: https://www.youtube.com/watch?v=qw653i_-tto)



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Enfiou as mãos no balde de tinta, as cores fortes alcançando seu cotovelo. O sorriso em seus lábios deleitava os expectadores e trazia um coro de suspiros capaz de fazer música, o mesmo acontecia com elogios sussurrados, tão baixos que pareciam palavras sussurradas pelo próprio vento, alguns espirravam devido a alergia ao cheiro forte da tinta, incrementando a sinfonia. O próprio artista sorria apenas para si, tendo em seu coração descompassado apenas o prazer de trazer tão abstratas emoções aos observadores.

Quando suas mãos tocavam o papel tela, não se demorava para criar. Curvas, trações, borrões, imaginava-se, refletia-se, sua alma se tornaria aquele pedaço de obra, seu dever era mostrar que conseguiria suportar, que conseguiria desenvolver.

Ouviu as exclamações daqueles que vinham pela primeira vez, assustados pelo fogo que surgia de suas mãos, que viam simples toques espalharem pela parede tomando forma, não importava a posição em que se encontrasse, sempre aquarelava, mesmo sem água. Não demorava para que todo o papel estivesse coberto, quando chegou a este ponto, apenas se afastou com precisão, três passos para trás antes do giro que o faria dar de cara com o balde repleto de água.

Sentiu o cheiro da fumaça, dos aromas que queimaram junto de sua atração. Os confusos questionavam se o show chegara ao fim, mal sabiam que estava apenas começando. Esfregou as mãos retirando o excesso de tinta, sua pele frágil por tantos trabalhos em série reclamou e avermelhou. Sem alterar a expressão, levantou-se e encarou o trabalho realizado até o momento. De uma ponta a outra, manchas verdes e azuis misturavam-se, no centro — apesar de confuso — era possível identificar algo semelhante a uma árvore, desforme e difusa.

Para bom entendedor, meia palavra basta.

Seus olhos procuraram pelas próximas cores: grená e rosa. Era o momento certo para encantar e atordoar aqueles desacreditados, mostra-los que a beleza ainda existia, que a vida era bela e que o céu pode sim ter todas as cores.

Desta vez o limite foi o pulso, podendo deixar impressões de suas mãos como se fossem rosas e nuvens, espalhando-as aleatoriamente e iluminando as cores mais escuras num encantador entardecer. O excesso de tinta que usava fazia com que o relevo se tornasse presente, dando ainda mais vida a obra. Não algo que Van Gogh faria, usando tubos da mesma cor para uma única peça, mas no caminho disso. Extraía de seu ser todas a paixão e o amor pelas gaivotas que manchavam o céu e pelos aviões que o cortavam, parques de cidades longínquas que jamais visitara e flores de diversos países que exalavam os mais diversos aromas.

Cansou-se.

O tempo durante sua pintura era inexistente, poderia ter se passado apenas alguns minutos ou horas. Conteve o bocejo e deu os costumeiros passos cegos em direção ao balde de água. O cabelo caindo sobre o rosto confundia a visão do público e fazia as expressões de exaustão e dor passarem despercebidas, suas mãos começaram a avermelhar de tal maneira que a sensação da bucha passou de suave para agonizante em questão de segundos. Alongou os braços o mais longe que podia, tentando ter um efeito semelhante nas costas fatigadas, quando o pensamento mostrou-se mais claro pousou os dedos nas tintas mais claras, o amarelado e o amarronzado. Com apenas as digitais em cores, traçou os detalhes, como as paredes do castelo e o contorno das nuvens, o sol tímido e o avião escondido.

Tocava na parede como um pianista dedilhando as últimas notas, apreciando o último gole do champanhe na noite de ano novo, a visão do encontro do céu e mar, das pequenas pessoas vistas do céu, os acordes finais de um violinista retirante. Envolvido com e pela música, projetando-se no seu trabalho mais impecável, considerando todos os feitos de sua vida efêmera no mundo perene. Seus cabelos mancharam-se quando foram amarrados, as mechas sendo retiradas do rosto, exibindo feições turvas: uma miragem. Um rebuscado rodopio com a mão e uma reverência, seus últimos atos de bailarino.

Ovacionado pela última vez.

As pernas fracas desistiram quando percebeu a sombra do último convidado desaparecer pelas cortinas que levavam ao corredor, caiu contra potes, latas, tubos e bandejas, cercado das mais variadas ferramentas de seu mundo. A luz fosca e tremeluzente gingava no mesmo balançar do berço do bebê que queria adormecer; seus lábios tremeram e as lágrimas escorreram, a falta e a saudade cresceram em seu peito de tamanho arrebatador: a vela do navio, a partida, a bússola, as folhas, a chuva e o sol. Todos representados nos desenhos invisíveis aos participantes, rabiscados no teto de maneira confusa, como lembranças picadas de alguém sem memória.

As mãos se tornaram inúteis, imóveis sobre o peito. Sentiu moverem sua cabeça para um local mais macio, o que supôs ser as pernas de alguém. Lamentou, despediu-se, desfez-se.

A astronave acabara de pousar.

***

O artista conhecido como “Mãos de Psique” pereceu nesta quinta-feira após uma de suas apresentações, o último a deixar o local percebeu traços de fraqueza no artista durante os minutos finais de apresentação, por isso retornou rapidamente ao ouvir um baque. Surpreendeu-se por não ser o único a estar lá, encontrando-o nos braços de quem parecia ser um colega de longa data. Após uma breve conversa com as testemunhas desta perda o último compartilhou as palavras que incentivaram toda a vida artística de Mãos: “Colorimos em aquarela pois um dia tudo se descolorirá”.


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Notas finais do capítulo

Sentimos pelos imprevistos desta única apresentação, espero que a tenham apreciado.
Agradecemos a presença e desejamos uma boa semana a todos.