Bohémienne escrita por Ananda Ayira


Capítulo 3
À la Cour des miracles


Notas iniciais do capítulo

Até que fui rápida com esse... Kkkkkkk
Bom, agora a história começa de verdade. Espero que vocês peguem o que deixei implícito, se não tudo bem fica pro próximo capítulo (rimei hahahaha).
O título desse significa "No Pátio dos milagres" é trecho da música "La Cour Des Miracles" do musical Notre-Dame de Paris (sim, de novo e pra sempre porque o amor da minha vida é um musical e é esse! ♥ ). Deixei o link da música pra vocês ouvirem, não coloquei a cena da música porque, legendada, seria um spoilerzinho pra quem nunca leu o livro ou assistiu à "Notre-Dame de Paris", mas, se não se importarem e quiserem, vou deixar o link da cena legendada nas notas finais.
Ah, vou dedicar esse capítulo ao meu amigo Eudes, ele não tem conta no Nyah, mas me incentiva via whatsapp. Brigada por ler, migo! o/
Sem mais delongas,
BOA LEITURA, MES AMOURS!



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A praça, não tão grande quanto a da catedral, mas ampla, apesar de mal cimentada como todas as praças e ruas de Paris, coloria-se quase por completo de vermelho, em tons que iam do vinho ao sangue. Nas tendas esticadas, com candeias acesas e mulheres de roupas coloridas. Era quase impossível de se ouvir alguma coisa. Todos falavam ao mesmo tempo, e nem todos a mesma língua.

Ao adentrarem no Pátio dos Milagres, Aimée insistiu que Gahel a deixasse ver se não havia se machucado mais do que sentia. Então entraram os dois na tenda que Luce e Aimée dividiam. Luce não entrou.

Pondo Malheur no chão e vendo-o correr entre as tendas para voltar depois. Ela ficou do lado de fora observando os demais proscritos refugiados naquele lugar uma pequena praça, encurralada contra a antiga muralha de Paris e protegida com a velha torre, ao pé dela, os aleijados esticavam as pernas, os cegos abriam os olhos e os miseráveis contavam moedas. Onde coxos andavam eretos e os caolhos recuperavam visão, sem a necessidade de um Salvador. O “Pátio dos Milagres”.

Luce não lembrava-se como, ou quando, chegara ao Pátio dos Milagres. Acreditava ter nascido ali, entre aquelas tendas e caravanas, como Aimée e como Gahel. Embora, algumas vezes, contestara com Clopin suas diferenças para com qualquer outro cigano.  Ele sempre lhe dissera que seus pais foram ciganos de outras caravanas e que provavelmente haviam sido mortos por soldados da Inquisição. Mas simplesmente não conseguia deixar de reparar, toda vez que olhava a pele morena ou os cachos escuros de Aimée, tão diferentes da sua pele alva e seus cabelos alaranjados.

Ouviu algumas vezes parisienses mais velhos, falarem de rumores sobre Clopin ou Rosalie terem-na roubado de alguma família, para alguma “bruxaria”, mas apiedando-se dela a criaram como cigana. Até mencionavam nomes, que por um momento Luce até pensara já ter ouvido, mas recusava-se a imaginar Clopin ou Rosalie esgueirando-se para tirar uma criança do lado dos pais enquanto dormiam. E apenas vivia o dia seguinte, sem indagar-se sobre o próprio passado e sem visualizar seu futuro.

Pouco depois, Gahel deixou a tenda. Apenas olhou de canto de olho para Luce, com o rosto encerrado numa expressão distante. Logo em seguida, Luce entrou na tenda.

— Ele está bem? – Perguntou Luce para Aimée que limpava num cântaro de água um trapo.

— Não se machucou muito. Apenas o corte na boca, mas já limpei. E podemos inventar para Clopin que ele se cortou na caneca de vinho. – Respondeu Aimée.

— Isso foi tudo minha culpa. – Disse revirando os olhos e caindo sentada sobre os trapos feitos em colchão que lhe serviam de cama.

— Não Luce. A culpa é daquele homem nojento que tentou te agarrar À força. – Disse torcendo o pano com as mãos.

— Ele não teria tentado me agarrar se eu tivesse olhado para o meu caminho. – Falou lembrando-se de como estava tão focada em ir até a criatura encapuzada que não enxergou mais ninguém naquela taverna.

— Por que estou achando que você quer me contar alguma coisa? – A cigana sentou-se ao seu lado. Apesar de tudo que viviam, eram apenas duas garotas.   – O que aconteceu, Luce?

— Durante todos os dias que estivemos na Cité, houve essa criatura. – Confessou hesitante. – Eu não sei o que, ou quem é, mas me seguiu todos os dias e fica me olhando.

— E o que essa coisa tem a ver com o que aconteceu na taverna? – Indagou Aimée.

— Estava lá. – Respondeu secamente. – Eu estava tão centrada em ir até aquela criatura, e perguntar o porquê de estar me seguindo tanto, de desmascarar o que quer estivesse embaixo do capuz, que não vi aquele homem e, por isso, eu esbarrei nele.

Aimée ficou apreensiva, com preocupação estampada nos olhos de ressaca, Luce viu claramente: ela sabia alguma coisa.

— Aimée, você sabe alguma coisa? Me diga. O que, ou quem, é essa criatura que eu vi? – Indagou Luce.

— Não. – Respondeu a morena. – Não sei de nada.

— Aimée, por favor! Me diga. – Exigiu Luce.  

— Apenas me prometa uma coisa. – Pediu Aimée com rispidez.

— Qualquer coisa. – Disse Luce.                           

— Deixe Rosalie ler suas mãos. - Luce revirou os olhos. Não gostava da ideia de ser controlada pelos desenhos de suas linhas, pelo acaso de três cartas ou pelo dançar da chama de uma vela. – Eu sei que você prefere não saber o futuro, mas...

— Mas? – Interrompeu Luce. Cedendo de curiosidade sobre a criatura sob o capuz.

— É para o seu próprio bem. – Aimée fez uma pausa. Engolindo em seco. E pegou com sua mão, adornada de guizos, na de Luce.

— E outra coisa, - Luce apertou a mão de Aimée como sinal para que falasse. - Não saia mais sozinha. Leve sempre eu ou Gahel, ou qualquer outra pessoa, com você. Mas não fique sozinha.

— Mas por quê? Aimée, você sabe de alguma coisa. Algo importante e não está me contando. Por quê? Somos amigas! Por todos deuses do Egito e todos os santos das paredes de Notre-Dame, se você sabe de alguma coisa. Me diga! ... – Pediu Luce.

— Você está sendo seguida por alguém com um capuz. – Disse Aimée, aflita. – Já ouvi essa história antes. E ela não acaba bem...

Antes que Luce pudesse de pedir o resto da história à Aimée, Gahel as interrompeu puxando o tecido que fazia função de porta na tenda.

— Luce. Aimée. – Chamou-as, rindo. – Clopin voltou das ruas também. Está chamando todos pra festejar o dinheiro parisiense que ganharam.

Logo, ele desapareceu de trás do tecido. O alvoroço dos ciganos pelo retorno de Clopin, era audível de dentro da tenda.

— Isso não acabou. Você vai me contar tudo, exatamente e sem uma palavra a menos do que sabe. – Disse Luce se levantando e saindo à passos duros da tenda.

Quando empurrou o tecido uma voz lhe chamou pelo nome. Vinda do centro da praça, ao lado da fogueira.

— Luce! – Gritou novamente.

Era Clopin. O cigano de pesados e longos cabelos pretos que davam os primeiros indícios de gris intitulava-se “rei dos ciganos” e se portava com a soberania que, segundo ele mesmo, lhe cabia.

Luce correu da tenda até ele, sorrindo. O homem e a menina se entreolharam carinhosamente. Luce sorriu e beijou-lhe a mão áspera adornada de anéis falsos e, em seguida, abraçou o cigano.

— Eu senti sua falta. – Confessou Luce.

— Como Aimée e Gahel cuidaram de você durante esses dias nas ruas, petite? – Perguntou separando-se do abraço e olhando Luce de cima a baixo. Como quem procurava por algum machucado ou algo que lhe tivesse acontecido. - Você não tirou o amuleto, não é? – Perguntou-lhe com preocupação.

— Já estava demorando a ladainha de perguntas se fiz ou não fiz o que você acha certo. – Riu Luce. - Não se preocupe, não me desfiz do amuleto por um momento sequer. – Completou passando os dedos sobre a corda fina que lhe transpassava o pescoço com o pingente escondido sob a blusa.

Clopin riu em resposta.

— Posso roubar sua pequena, por instante, Clopin? – Rompeu uma voz doce e suave. Como a mulher a quem pertencia.

— Rosalie! – Exclamou Luce. 

— Minha menina. – Suspirou a egípcia quando Luce atirou-se em seus braços como uma criança.

Rosalie tinha fartos cachos negros que exalavam forte cheiro de canela e, talvez para fazer jus ao nome, vestia-se sempre como uma rosa, cheia e desabrochada. E sempre de vermelho.

— Dançou como eu lhe ensinei em La Cité? Você terá que me contar cada passo que deram naquela praça. – Falou animadamente.

— Eu vou. – Respondeu Luce. Rindo nervosamente. Ponderando se esconderia certas coisas, como a Criatura Encapuzada, de Rosalie. Embora prometera à Aimée que diria.

— Celebremos essa noite! – Gritou Clopin à todos os párias da praça. E todos responderam com gritos eufóricos e palmas.

As mulheres, junto de Rosalie, gritaram em zaghareet*. Dando início a movimentação de festejos, os sons dos instrumentos, das palmas e dos risos ciganos.  Os mais velhos, sentados, cantavam. As ciganas, tanto adultas quanto as mais novas, dançavam olhando umas às outras, girando, agitando as saias e rindo toda vez que erravam algum movimento.

Enquanto batia palmas, Luce virou-se para onde havia estado com Clopin. Ele não estava mais ali. Durante algum tempo, continuou a dançar na roda, sempre desviando o olhar para procurá-lo. Sem sucesso.

Rosalie puxou Luce e Aimée para ao meio da roda, onde começou a dançar. As duas mais novas imitando os movimentos de Rosalie. Todas tinham roupas coloridas. Todos batiam palma no ritmo da música e as outras ciganas continuavam a dançar ao redor.

De repente, a cantoria e as palmas foram interrompidas por gritos e palavras violentas. Três homens, entre eles Clopin, que ia à frente dos outros dois ciganos que arrastavam alguém pelas vestes. Um manto escuro, negro, e um capuz cobria o rosto.

— É a Criatura, Aimée. – Luce agarrou o braço de Aimée ao seu lado e correu perto da cena.

O rei cigano subiu em cima de um barril, apanhou o boullaye**, sentou-se como se fosse seu trono e ordenou aos homens que erguessem o gadjê***. Eles obedeceram e o despiram do capuz. Revelando-lhe o rosto alvo e de traços jovens, porém, enrijecidos pela dor que lhe infligia o modo que os ciganos o mantinham de pé, com os braços para trás e projetando-se para frente.

— Quem é você? E o que faz aqui? E seja bem específico. – Ralhou Clopin. – Eu lhe ordeno que fale.

— Um desvalido que também não pertence à esse lugar. – Respondeu o rapaz. Ele arfava cada palavra. - Vim pedir asilo. 

— E algum de nós parece-lhe um beato de Notre-Dame para dar asilo à o desvalido que vem bater à nossas portas. – Rebateu o cigano. Sua expressão firme e solene era imóvel e ele olhava o rapaz fixamente, como uma serpente que prepara o bote.

 O rapaz silenciou e baixou o olhar. Erguendo-o no canto dos olhos para corrê-los pelos rostos ao redor. Parando-os por um instante sobre o rosto de Luce e um brilho zombeteiro cruzou seus olhos.

— Rosalie. – Chamou a garota cigana virando-se para ela, parada logo atrás de Luce e Aimée, e depois voltando-se para ele. Não omitia seu nervosismo assistindo àquilo.  – O que Clopin vai fazer com ele?

Ela deu um suspiro pesaroso antes de responder:

— Nesses casos, só há duas coisas que Clopin costuma fazer...

Antes de Rosalie terminar de dizer a Luce, mas Clopin ergueu o cabo do chicote à altura do queixo do rapaz e deu sua sentença.

— Vou dar-lhe uma chance de despertar minha misericórdia e não mandar que o enforquem. Como eu disse, não somos beatos. Asilo no Pátio dos Milagres não é algo que damos, mas que é conquistado por mérito. Cada um de nós já provou com suas vidas que merece nosso profano santuário. Mas como não quero ouvir você falar da sua vida, - Ele girou o açoite na mão e abaixou-o. – você vai ter que passar por uma prova.

Ao ver Clopin quase sorrir de satisfação. Luce voltou-se novamente para Rosalie.

— Eu não acredito que ele vai fazer isso. – Retrucava a boêmia.

— Fazer o que? – Indagou Luce.

— Esse rapaz vai ser enforcado de qualquer maneira. Não há como ele passar essa prova. – Rosalie falou com uma estranha nostalgia.

Clopin fez um sinal. Homens saíram do tumulto e voltaram, após um momento. Trouxeram dois postes terminados na parte inferior por estrados que os sustentavam de pé e na extremidade oposta havia uma viga transversal adaptada. O todo formava um palanque e uma forca.

Luce arregalou os olhos, vivera no Pátio dos Milagres por todos os seus anos e jamais vira coisa parecida. Seu susto aliviou-se ao ouvir um som de guizos e ver que traziam também um tipo de espantalho, vestido com roupas vermelhas e enfeitado com inúmeros guizos, sinos e tudo que tilintasse.

Os homens subiram no palanque e na corda, já amarrada com nó de forca, penduraram o manequim. Logo em seguida desceram e Clopin ordenou ao rapaz:

— Sobe.

Os dois ciganos que seguravam-lhe os braços, soltaram-no. E o rapaz subiu ao palanque.

Nesse momento, Luce soltou-se de Aimée, que de tão absorta na cena mal reparou. Andou por entre os demais que viam o alvoroço até a lateral do palanque. De onde via Clopin com o canto do olho e o rapaz e o manequim, virados de lado, à sua frente.

— Vou lhe dizer o que vais fazer: - Disse Clopin enrolando as pontas de couro do boullaye em volta da mão. – Você vai alcançar o bolso do manequim; procure ali dentro uma bolsa. Faz isso sem soar um guizo que seja e será um dos nossos.

— E se um dos sinos soar? – Indagou o rapaz arqueando uma das sobrancelhas.

— Nesse caso, - Clopin deu um falsos suspiro pesaroso - teremos que enforcá-lo. Compreendeu?

— Sim. - Respondeu ele.

— Agora, apressa-te que ninguém de nós quer perder a noite toda com isso. – Bradou Clopin em meio a uma risada ébria.

O rapaz escondeu o rosto atrás do manequim e sua expressão de inquieta angústia de repente transformou-se na mais petulante confiança. Um simples gesto no ar e os pêndulos de cada guizo e sino pôs-se na palma de sua mão. Assim, começou a apalpar o espantalho em procura do bolso.

Ninguém parecia ter visto a façanha do rapaz, exceto por Luce. E quando ele enfiou a mão no bolso do manequim e tirou dali a bolsa, Luce arquejou por denunciar a trapaça. Mas calou-se ao lembrar de que, se o fizesse, ele seria pendurado na forca no lugar do boneco.

— Não percam a noite por mim, então! – Exclamou ele quando ergueu na mão a bolsa.

— És um dos nossos. – Disse Clopin, com certo desagrado, desmontando sua cena enquanto punha-se de pé novamente e entregava o chicote à um dos ciganos que confiava.

Os festejos recomeçaram, como se não tivessem sido interrompidos. Os gritos alegres e a cantoria das ciganas, a música dos instrumentos e as danças. Todos retornavam ao antigo ânimo. Exceto Luce, que enquanto dançava e cantava com Aimée e Rosalie, sentia os olhos daquele rapaz sobre ela. E quando virava-se podia vê-lo a fitar fixamente seu rosto.


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Notas finais do capítulo

* Zaghareet: "grito" que faz parte dos costumes egípcios de expressar emoções. Também chamado de "Salguta" ou "Called" (pra quem nunca ouviu essa coisa linda: https://www.youtube.com/watch?v=IRThxMVI6oE)
** Boullaye: chicote de couro branco, geralmente usado por sargentos, para controlar multidões.
*** Gadjê: palavra usada para designar os não-pertencentes à cultura cigana. (Nós)
Cena "La Cour des Miracles" em Notre-Dame de Paris (Legendada): https://www.youtube.com/watch?v=grVmLlD_caA
E AÍ? GOSTOU? NÃO? ME DEIXE SABER!!... PRETTY PLEEEEASE...
COMENTE!
Um grande beijo e até o próximo. ♥



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