Fora de Si escrita por dubstepbard


Capítulo 3
Aquele da dança




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Kei se lembrava com clareza do dia em que conhecera a noiva de seu irmão. Akiteru havia convidado-o a almoçar com eles num dos restaurantes do centro de Miyagi, quando Kei ainda estava no colegial. Era um dia quente e ensolarado, perfeito para passear.

Assim que os avistou, percebeu como ela era bonita. Seus cabelos pareciam fluir como água, iam de um lado para o outro em uma cascata castanha que lhe caía sobre os ombros e descia-lhe pelas costas. Suas sardas lhe davam um aspecto jovem.

Sorrindo, ela se apresentou como Karin, e o Tsukishima caçula fez uma pequena reverência ao se apresentar.

Fora uma tarde agradável.

Tsukki ficou sabendo algumas coisas sobre a vida dela - e até de Akiteru. Ela era professora e lecionava para crianças pequenas, o que explicava sua paciência sem fim para aguentar as bobagens do Tsukishima mais velho. Eles contaram como se conheceram, ainda que Kei nunca tenha perguntado: ela e Akiteru se conheceram em uma loja de discos antigos numa tarde chuvosa, brigando por um CD de hits do George Michael. Uma coisa levou a outra e agora eles iam morar juntos e se casar, e o apartamento de Akiteru ficaria para Kei.

Ver a família crescer assim dava um sentimento bom, uma esperança, um calor no peito.

Ao voltar para seu quarto naquela noite, Kei encarou o teto em busca de respostas, em busca de alguma memória que o trouxesse aquele sentimento de novo.

Tardes abafadas em Tóquio jogando num ginásio isolado e rodeado de gente que ele, num primeiro momento, preferia manter distância.

Pegou no sono lembrando do som da bola batendo na quadra, do grito de frustração de Bokuto e da mão de Kuroo lhe dando tapinhas no ombro.

—--

Era cedo demais para estar acordado num sábado, mas ele estava sentado num banquinho desconfortável, bebericando um café enquanto esperava seu irmão aparecer. Devia ser algo sério, muito sério, para Akiteru tirá-lo da cama tão cedo e do outro lado da cidade. Deu uma garfada no bolo de morango e examinou-o bem antes de colocá-lo desinteressadamente na boca, sentindo o sabor se espalhar e mal conseguindo manter a fachada sisuda que exibia.

A porta do pequeno café se abriu e Akiteru entrou. Kei quase não o reconheceu. Estava com olheiras enormes e a roupa amassada, uma expressão entre o desespero e a fúria. Ele estava certo: algo sério havia acontecido. Acenou para seu irmão, preocupado, e sentiu seu coração afundar um pouco ao constatar que, olhando de perto, ele parecia ainda pior.

Akiteru sentou-se de frente para ele e pediu um café duplo para o garçom que veio atendê-los. Virando-se para Kei, deu um sorriso pequeno e triste, parecendo finalmente relaxar. O caçula empurrou seu prato de bolo na direção dele, gesticulando para que ele comesse.

“Obrigado, Kei.” Akiteru pegou o garfo e comeu um pedaço, mastigando lentamente. Sorriu, “Está uma delícia, essa cafeteria é realmente a melhor…”

“O que houve?”

Akiteru o fitou por alguns segundos, surpreso pela interrupção.

Um suspiro.

“Não sei nem por onde começar.”

O mais velho fez menção de devolver o doce, mas Kei recusou, cruzando os braços e encarando-o com seriedade.

“Apenas comece. Você ta horrível.”

“Eu sei. Eu briguei com a Karin.”

Isso pegou Kei desprevenido, de certa forma. O relacionamento deles parecia perfeito, blindado. Mantendo-se calado, tomou mais um gole de seu café enquanto esperava pacientemente seu irmão continuar.

E ele continuou.

“Não sei Kei, às vezes eu tenho vontade de ir embora e não voltar mais. A Karin é… muito. Ela é muito pra mim. Muito intensa, muito mandona, eu não sei… Tenho medo de que um dia ela se canse de mim.”

—--

Tsukishima nunca havia se sentido tão sozinho.

Os últimos meses haviam sido uma correria maluca e cheia de altos e baixos, mas agora ele estava oficialmente formado, morando sozinho, começando uma nova fase. Tinha amigos, claro, Yamaguchi era uma constante em sua vida ainda que agora estivessem separados fisicamente, além de Hinata, Kageyama e Yachi, que também eram considerados como próximos por ele. Haviam alguns outros, havia seu irmão, sua família.

Porém, naquele momento, sentado na mesa destinada à família no casamento de Akiteru, ele estava muito solitário. As luzes piscavam freneticamente. A música era agradável, apesar de não ser algo que ele escutaria por conta própria. O paletó do

estava abandonado em cima de uma das cadeiras, a gravata jogada sobre a mesa. Sua família estava curtindo a festa, dançando ou bebendo ou, no caso de alguns, ambos. Podia ver Akiteru com sua esposa no meio da pista, sorrindo muito e dançando muito pouco. A felicidade do casal era palpável, e Tsukki sentiu como se estivesse invadindo a privacidade dos dois, ainda que eles estivessem no meio de um salão cheio de gente.

E mesmo estando no meio de um salão cheio de gente, era como se estivesse sozinho.

Seu irmão agora tinha uma nova família. Seu melhor amigo não estaria mais por perto. Sua família estaria em outra cidade. Os idiotas do colégio também seguiriam cada um por seu rumo. Ele ficaria só, teria que se virar só, teria que começar um novo círculo de amizades por conta própria.

Era assustador.

De repente, toda a festa parecia distante, seu som abafado por um vidro. Era como se Tsukishima estivesse numa caixa, observando tudo ao seu redor mas sabendo que nada daquilo poderia alcançá-lo.

Era triste.

Ele queria fazer parte da vida das pessoas que gostava, mas desde sua discussão com Kuroo após seu último jogo de vôlei ele sentia como se não conseguisse mais, como se socializar fosse um esforço sobre-humano que ele não estava mais disposto a fazer.

Afinal, não queria mais decepcionar os outros ou se decepcionar.

Talvez fosse melhor assim, afinal. Deixar tudo pra lá e começar de novo. Não teria ninguém para fazê-lo se esforçar, para fazer com que ele interagisse. Poderia viver seus anos da faculdade com calma, sem ninguém para encher o saco. Parecia uma boa solução.

Mas doía.

Agora, era como se o ar da sua caixa estivesse ficando rarefeito. Sua cabeça estava leve, a mente vazia, a escuridão de seus pensamentos tomando conta de todo o resto e desligando tudo lentamente. Era a apatia chegando mais uma vez, a falsa ideia de que nada valia a pena, de que não precisava se importar com nada porque no final das contas era tudo em vão. A mesma apatia que, anos antes, fora responsável por sua atitude indiferente quanto ao volêi. A mesma apatia que, anos antes, fora espantada por Yamaguchi, Bokuto e Kuroo.

Olhou de novo para seu irmão e cunhada. A felicidade deles parecia de mentira, de brinquedo, um enorme faz-de-conta. Inalcançável. Inatingível, quase etérea. Uma onda de raiva subiu por seu corpo, passando por cada membro e queimando como lava. Era perfeito demais, e coisas perfeitas não existem. Antes que continuasse com esse pensamento, porém, Kei se levantou e andou rapidamente em direção ao banheiro.

Retirou os óculos e os colocou sobre a pia, sem muito cuidado. Por sorte, estava sozinho, então tomou todo o tempo que julgou necessário para se recompor. Não. Ele não ia deixar seus pensamentos pessimistas agourarem o casamento de seu irmão. Jogou água fria no rosto, deixou-a escorrer por sua nuca e pescoço, ainda que acabasse molhando um pouco a gola de sua camisa escura. Tinha que esfriar a cabeça, parar de pensar no pior, aceitar as coisas e ir em frente, como havia feito após o jogo. Tinha que ser forte, a princípio pelos outros, mas no fim das contas tinha que ser forte por si mesmo. Foi a última coisa que aprendeu com Kuroo, e não ia esquecê-la tão facilmente.

Aquele olhar de decepção não o deixaria esquecer, estava estampado em seu cérebro.

Respirou fundo uma, duas, três vezes. Tudo bem. Ele tinha que curtir a festa, e não ficar pensando no passado ou ser pessimista ou lembrar da derrota ou pensar em Kuroo. Sentia falta dele, claro, mas já fazia muito tempo que não se falavam e tinha certeza absoluta que o outro o odiava desde aquele dia. Reuniu toda a coragem que ainda tinha e vestiu sua melhor cara de paisagem, abrindo a porta do banheiro e voltando para o salão.

Atravessou a massa de convidados e estava quase alcançando a mesa para se sentar novamente quando sentiu um toque sutil em seu antebraço. Surpreso, ele virou-se para dar de cara com Karin, a noiva de seu irmão. Esposa. Ela sorria e estendia a mão para ele.

“Kei, vamos dançar!”

Ele não queria dançar. Não gostava de dançar. Na verdade, nem sabia dançar. Não era uma coisa que ele se preocupara em toda sua vida, julgando que não seria uma habilidade necessária para sobreviver. Além disso, não sabia como se comportar perto da mulher de Akiteru. Ela era uma ótima pessoa, mas era tudo o que sabia sobre ela. Era praticamente uma estranha. Uma estranha o convidando para dançar no dia mais importante de sua vida.

Ela ainda sorria, mesmo diante da hesitação do Tsukishima mais novo.

“Vamos, vem se divertir.”

“Eu não sei dançar.”

Usou a falta de habilidade como desculpa, como muleta para tentar sair daquela situação. Era uma desculpa, mas uma desculpa sincera.

O sorriso dela, porém, não vacilou nem por um segundo.

“Não tem problema. Vem.”

Ele estava suando quando aceitou a mão da jovem e deixou-se guiar até a pista. Parecia uma eternidade, e Tsukishima tinha certeza que todos estavam olhando para eles, o que tornou a caminhada muito mais longa do que realmente fora. Passaram por Akiteru, que fez um sinal de positivo antes de ser arrastado por duas tias empolgadas para uma das mesas.

Karin ainda tinha um sorriso no rosto quando virou-se para Kei no meio do salão. Ele sentia-se extremamente inadequado, supérfluo. E mesmo assim, a esposa de seu irmão sorria para ele como se ele fosse a melhor pessoa da festa, como se ele fosse uma peça crucial para o relacionamento dos dois. Aproximou-se e ajeitou a forma de Kei para que ele a conduzisse, o ritmo da música mudando para uma balada valseada conforme eles se posicionavam.

Era estranho, aquela mulher acabara de se tornar sua cunhada e não era seu irmão quem estava dançando com ela. As mãos de Kei suavam e ele estava visivelmente nervoso, mas Karin apertou sua mão gentilmente e começou a dançar, guiando-o.

Kei estava perdido. O salão girava ao redor deles - na verdade, eram eles que giravam - e seus pés pareciam ter perdido o contato com o chão. Em dado momento, percebeu que era ele quem estava conduzindo agora, Karin apenas acompanhando seus passos desajeitados com graciosidade e leveza, sem nunca deixar de sorrir.

“Kei, obrigada por tudo! Sem você, não sei o que seria da gente. Você pode não perceber, mas fez muito por mim e pelo seu irmão.”

A voz dela era aveludada, mas também era imponente o bastante se fazer ouvir acima da música do ambiente. O jovem fitou a noiva, confuso, e até abriu a boca para perguntar o motivo de tudo aquilo, mas ela voltou a falar.

“Sei que a gente não se conhece muito bem, mas você é uma parte muito importante da vida do seu irmão e, agora, da minha. Sei que boa parte das vezes que brigamos, Akiteru foi buscar conforto e clarear a mente na sua companhia, e que encontrou esse conforto que buscava ao conversar com você. Ele gosta muito de você. Seu irmão te admira muito.”

Não sabia dizer se estava chocado ou aliviado com a afirmação dela. Na cabeça de Kei, não fazia sentido algum que Akiteru o admirasse.

Karin continuou falando.

“Ele sempre fala de você, e de como você cresceu como pessoa… Elogia sua perseverança. Enche o peito de orgulho pra falar que você foi o capitão do time da sua escola. Ele é seu maior fã.”

Aquilo era um pouco demais.

“Por que está fazendo isso?” a voz do Tsukishima caçula saiu abafada, mais do que pelo som ambiente, como se ele não quisesse que ela ouvisse.

“Porque você é jovem, mas tem cara de quem está se preocupando com coisas demais, coisas difíceis e mágoas. Você ta com a maior cara de bunda no casamento do seu irmão, quando você deveria estar se divertindo. Não desperdice sua juventude assim. Você vai ter muito tempo para se preocupar depois. Viva mais.”

Ele já tinha escutado aquele tipo de conselho antes.

Bufou.

Karin arregalou os olhos para ele.

“Ta vendo! Vai ficar todo enrugado.”

Tsukishima olhou para o lado, fugindo daquele olhar intenso.

“Deixe seus problemas do passado pra trás, e não sofra por antecedência. Vai ser mais fácil pra você e pra todos que convivem com você.”

Ele queria responder, mas algo lhe dizia que era melhor não. Ela estava certa, afinal. Sem responder, continuou guiando sua cunhada pelo salão, não se importando em seguir o ritmo da música ou em dançar de verdade. Deixou seu corpo os guiar para lá e depois para cá, e já nem sabia que música estava tocando quando ela resolveu parar.

Ainda estavam no meio do salão, mas, ao contrário do que ele imaginava, ninguém estava olhando para ele ou tampouco julgando-o.

Menos Karin, ela ainda estava o observando com aqueles olhos intensos demais.

Ela abriu a boca, mas acabou interrompida por um grito.

 

Ambos tomaram um susto, e ela caiu na gargalhada logo depois. Pegou as duas mãos de Kei e começou a dançar, fazendo-o balançar precariamente ao ritmo da música de James Brown.

Ver sua cunhada e familiares dançando desinibidamente era engraçado, ele tinha que admitir. Em algum ponto da música, Akiteru se juntara a eles e agora dançava com sua esposa, de um jeito desengonçado e hilário. Kei não pode suprimir um sorriso tímido enquanto olhava para eles, e agradeceu pelo ambiente escuro por não ser descoberto.

Ele podia acreditar naquilo.

Viu as tias que estavam querendo arrastar Akiteru de volta para a mesa da família se aproximando.

Aquela era sua chance de ser um herói para seu irmão e fazer por merecer todos os elogios que Karin havia lhe dado.

Respirou fundo e, num ato de coragem e auto flagelo, entrou no campo de visão das tias.

“KEI, QUERIDO! COMO VOCE ESTÁ? HÁ QUANTO TEMPO!”

“COMO VOCE CRESCEU!”

“E AS NAMORADINHAS? NÃO QUIS TRAZÊ-LAS PRO CASAMENTO DO SEU IRMÃO?”

Ele já estava começando a se arrepender de seu ato de solidariedade, e nem estavam perto da mesa ainda.


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