Verão do amor escrita por Zack Tarantino


Capítulo 1
Verão do amor


Notas iniciais do capítulo

O Verão do Amor (em inglês: Summer of Love) foi um fenômeno social com manifestações em várias partes do mundo em meados de 1967 durante o verão. O movimento contou com a participação de romancistas premiados, astros do rock, professores rebeldes e principalmente hippies. A estória se passa neste período apesar de não ter nenhum protesto, e a protagonista é hippie.



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Estados Unidos, 1967

E foi então que, usando cinto de couro, calça jeans, blusa colorida, óculos redondos e brincos de argola, bateu a porta da casa dos Senhor e Senhora Hamptons. Ou era Hilstons? Nunca se lembrava.
O senhor Hampton abriu a porta. Era um homem de meia idade de cabelos escuros e curtos, barba rala e olhos verdes. Jenny preferiria que a mulher atendesse. Ele lhe dirigiu uma careta que estava entre uma expressão carrancuda e uma gentil. Afastou-se até a cozinha. O dono da casa não disse nada, então resolveu entrar.
–Eu não acho que é uma boa escolha.
–Bom, não era o que eu estava pensando mas...
Eles conversavam sem perceber que esta ouvia a conversa. Espreitou pelo corredor e viu a senhora Hampton cortando cebolas.
–Acho que você podia ser menos rígido.
–Rígido? Ninguém é louco o suficiente para contratar uma hippie.
–Mas é o que o dinheiro dá. Ninguém mais iria aceitar uma oferta de emprego com tão pouco. Especialmente nessas condições -Disse elevando a voz mais do que deveria. Ambos olharam para trás para ver uma Jenny boquiaberta.
Ela lançou um olhar ao marido e este pareceu concordar. Limpou as mãos na barra da saia e ajeitou os cachos loiros e curtos. Caminhou em direção a ela e a cumprimentou gentilmente.
–Sente-se, por favor.
Jenny jogou a bolsa no sofá e sentou-se nele.
–Você já me disse que trabalhou cuidando de alguém. Pelo telefone -Indagou enquanto ocupava o sofá da frente.
–Claro -Respondeu mentindo. Era mais fácil fazer aquilo se os óculos escuros ocultassem seu olhar.
–Continuando... Você completamente ciente das suas funções?
–Estou. E posso afirmar que estou preparada -Mas não soou confiante.
–Eu acho melhor te apresentar a ela logo. Quem sabe vocês não conversam? Mas eu preciso que decida ainda hoje se vai aceitar o emprego ou não. Antes que eu e John decidamos cancelar a viagem.
–Vocês vão visitar um parente. A mãe dele, eu acho...
–Minha mãe, na verdade.
–Porque ela também está doente. Certo?
O "também" pareceu desagrada-la. Comprimiu a boca e olhou para o chão tentando conter a sua agressividade.
Jenny achou melhor levantar-se e encerrar a conversa. A outra mulher andou em direção as escadas. Ela a seguiu.
Katy abriu a porta do quarto. Ela deixou que Jenny entrasse antes.
A filha de Katy estava sentada em uma cadeira de rodas com o rosto virado para uma pintura. Os braços estavam tão imóveis que assemelhava-se a um cadáver. Jenny observou o vestido um tanto quanto desgastado e o cabelo loiro curto, desgastado e liso.
–Olá. Tudo bem? Eu sou a Jenny. Vou cuidar de você...
A menina não reagiu ao ouvir sua voz. Era como se não houvesse ninguém lá.
–Ela é tímida. Dê um tempo a ela -A mãe tentou justificar tal comportamento. Katy tentou puxa-la para fora do quarto antes que hesitasse em aceitar o emprego. Jenny tentou olhar por mais alguns instantes. Tudo o que viu foi seu próprio reflexo no espelho, que mostrava uma mulher de cabelos castanhos e sardas no rosto.
Ambas desceram para a sala. John esperava impacientemente.
–Ela aceitou. Não é, Jenny?
–Aceito.
–Então vamos recapitular. O que você basicamente tem que fazer é ajudá-la a fazer as necessidades e tomar banho. Além de trazer a comida para ela. Natasha ainda está se recuperando do acidente de carro como eu havia dito.
–Entendo.
–E você não se preocupe com o comportamento dela. Quando eu disse "estranho" quis dizer que ela não fala com ninguém. Só isso. O acidente afetou sua cabeça.
–Eu sei o quanto deve ser difícil. Ainda mais pra uma garota da idade dela. Aliás, quantos anos ela tem?
–Onze.
–Achei que fosse um pouco mais velha. Ela é alta pra idade dela.
–Sim. Mas enfim, nós viajaremos amanhã como planejado. Se você precisar de algo ligue neste telefone -E anotou num pequeno pedaço de papel que foi colocado em cima da mesa. -Vou te dar metade do pagamento agora e a outra metade depois.
Jenny decidiu aceitar o emprego de uma vez por todas. Adormeceu naquela casa. No dia seguinte, o sol que se refletia na janela e o som de animais desconhecidos a acordou. Abriu a porta que dava direto para um corredor. Espiou por todos os lados para ver se havia alguém acordado. Andou silenciosamente até o quarto de Natasha. Girou a maçaneta calmamente.
A primeira visão que teve foi a menina deitada na cama, mas ela estava de costas. O cobertor xadrez cobria do ombro para baixo. Jenny aproximou-se em busca de uma imagem frontal da garota. Estava perto o suficiente da cabeceira para conseguir colocar suas mãos no objeto. Podia visualizar os contornos da boca e do nariz. Suspirou ao ver a cor dos olhos. Eram de um azul tão claro que possuíam um aspecto perturbador.
Natasha ergueu-se olhando para a frente, apenas para a direção onde estava o quadro, de forma que provavelmente nem havia percebido a presença de Jenny. Fez um gesto quase que robótico para a diagonal, onde se situava a cadeira de rodas. Agarrou-a com força e puxou-a para perto de si. E tudo isso sem sequer virar o rosto. Deixou as pernas meio atrofiadas expostas com a falta de um cobertor. Empurrou o corpo com as mãos até que estivesse sobre a cadeira de rodas. Jenny teve vontade de ajudar, mas estava um pouco assustada. A menina gesticulava como se alguma coisa estivesse sufocando-a.
Natasha moveu-se e Jenny foi logo atrás dela. Queria ver de perto que pintura era essa que tanto a interessava.
O quadro, de tamanho grande e formato quadricular, misturava os tons escuros e claros para representar o fim de uma tarde. O sol se escondia nas nuvens. O solo era seco e sem vida. A paisagem desértica era composta basicamente por cactos, erosões e um grupo de crianças, que estavam destacadas em primeiro plano sobre um pedaço de terra mais elevado. A primeira à esquerda, de barriga inchada, parecia estar em busca de algo e sua face dizia que estava prestes a chorar. A do meio estava mais confiante e andava com a coluna reta. A terceira estava meio inclinada, quase agachada, e parecia implorar por algo. Tinha uma expressão agressiva. A última estava com os olhos revirados e olhava para cima. Era como se sua mente estivesse em outro lugar. Todas estavam nuas. Todas tinham uma aparência desgastada e esfomeada. Todas eram do sexo masculino e com características africanas.
Jenny franziu as sobrancelhas e olhou para baixo. O título da obra era: Os filhos do diabo, o que ela achou meio racista. O nome do autor estava meio apagado. Conseguiu ver apenas um "J". Será que o pintor era o próprio pai da menina? Não teria coragem de perguntar. Não sabia como sairia dali sem que a menina percebesse (se ela já não tivesse percebido). Decidiu apenas caminhar normalmente até a saída. A única coisa que Natasha faria era ignorar.
Jenny desceu as escadas. O casal já estava quase de partida.
–Bom dia, Jenny. Estava preparando o café da manhã. O seu já está na mesa.
Jenny achou que a refeição tinha um gosto bom. A única coisa que não a agradou foi o clima do local. Era seco, seguido de uma ventania que ia embora tão rapidamente quanto surgia e trazia uma nuvem de poeira e pedaços de folhas com ela. Mas a pior parte para ela eram as portas e cortinas que abriam-se e fechavam-se.
–Tchau -Disse Katy ao entrar no carro, deixando uma nuvem de fumaça para trás. Jenny tossiu. Odiava poluição.
Virou-se para a casa para observar seu lado externo mais uma vez. Mas o que mais a interessava de fato era seu lado interno.
A janela do quarto de Natasha ainda estava aberta. Quase podia vê-la, olhando fixamente para o quadro e com a mente totalmente ausente em relação ao mundo a sua volta. Hesitou alguns momentos antes de entrar na residência.
Uma forte ventania quase a empurrou em rumo as escadas. Era como se quisesse puxa-la até o quarto e leva-la para dentro da pintura. Jenny segurou-se na ponta da mesa da cozinha até que aquilo passasse.
Sentou-se no sofá. Olhou ao seu redor. Ligou a tv esperando distrair a própria mente.
Permaneceu assistindo pelo que pareceram horas até resolver subir ao quarto para ver como Natasha estava. Tinha receio de vê-la. Andou aos poucos até as escadas e o próximo andar. Abriu a porta do cômodo virando a cara para o quadro.
–Você precisa de algo? -Indagou, mais por obrigação do que por gentileza.
Ela nem sequer moveu um músculo para demonstrar algum tipo de resposta. Jenny conseguia às vezes visualizar a saia se alongando quando Natasha respirava.
–Eu vou trazer o almoço -Disse fechando a porta. Nem havia totalmente entrado no quarto.
Preparava a refeição com certa dificuldade. Enrolava o máximo possível para fazer cada coisa.
Segurou a bandeja de comida com calma e fez seu trajeto de volta até o quarto. Entrou rapidamente e deixou o prato em uma escrivaninha que estava bem próxima a Natasha. Não conseguiu se conter e deu mais uma olhada no quadro. Tentava entender o que tanto despertara o interesse da menina.
Fazia a mesma coisa todos os dias. Entrava no quarto só quando realmente era necessário. A jogava na banheira e deixava que se limpasse sozinha. Natasha não tinha expressão. Apenas se esfregava com movimentos robóticos.
Jenny acordou com um bilhete em sua porta. Dizia:
"Preciso de materiais de colagem e recorte. E tinta."
Direta e objetiva. Ela duvidava que Natasha conseguiria recriar os filhos do Diabo. Optou por obedecer sem questionar.
Usou as finanças que o casal deixou para caso houvesse uma mínima chance de a menina querer passear. Segurou o colar refletindo se iria ou não se iria até a loja mais próxima. Uma rápida ida não faria mal. Tinha de comprar comida de qualquer jeito.
Acordou cedo enquanto Natasha ainda estava dormindo e voltou em menos de uma hora. Verificou rapidamente o quarto. Ela ainda estava lá.
Revirou a casa e achou uma mesa grande onde pudesse caber todos os materiais. Levou tudo para cima e os dispôs na mesa com certa preguiça, deixando a garota divertir-se com eles.
Ela não parecia mais feliz do que antes. Na verdade estava mais atenta em relação a realidade em sua volta. Começava a ganhar vida. Jenny fazia a mesma coisa de antes. Deixava a comida. Colocava-a na banheira. Deixava-a sozinha.
Jenny de vez em quando pegava alguns papéis para fazer desenhos. Os contornos formavam imagens de símbolos da paz até figuras um pouco mais complexas como rostos de humanos que ela achava ter visto rapidamente em uma festa enquanto estava sob o efeito de algum tipo de droga ou bebida. Fez até a caricatura da Natasha morta na cadeira de rodas passando para a menina quase viva que dedicava todo o seu tempo nesta terra para a criação de alguma arte que vinha de sua mente perturbada. A cada vez que verificava o quarto o trabalho artístico estava um por cento mais pronto. Tinha medo do que sairia naquelas folhas.
O dia estava mais ensolarado do que qualquer outro. Amarrou seu cabelo em um coque. Vestiu uma calça boca de sino e uma blusa de manga bem curta. O calor vinha acompanhado de algumas ondas de vento, mas isso não iria atrapalhar seu bom humor. Cortava as fatias de tomate e colocava-as num canto da mesa.
A água borbulhava dentro da panela ao som do vapor. Jenny ouviu o primeiro grito após alguns instantes. De início, pensou que era algum tipo de animal ou seu cérebro tentando engana-la. O próximo grito ecoou pela casa. Jenny teve a impressão de ter escutado uma rajada super sônica que fez cada pedaço de planta estremecer. Um frio percorreu a sua espinha e foi até a sua cabeça, deixando-a zonza. Andou alguns passos para trás procurando se equilibrar. Aquilo parecia um sonho. Uma série de gritos consecutivos a fez ficar em sinal de alerta. Era como se tivesse adormecido e seu cérebro estivesse finalmente aceitando os fatos.
Correu até o andar de cima com o coração saindo pela boca. Nem ela mesmo existia naquele cenário. Nem os pássaros. Nem o mato. Apenas o grito, e tinha como único objetivo segui-lo.
Abriu a porta do quarto de Natasha. Era como se ela estivesse botando para fora cada palavra e emoção não expressada durante esse tempo. E só ali, naquele momento, quando Natasha gritava o mais alto possível para um ser humano e esperneava enquanto tentava segurar o próprio braço que contorcia-se e esguichava sangue para todo o lado, que ela realmente se assemelhou a uma pessoa viva. Apenas quando a cor de sua pele se substituía por um tom mais pálido e começava a morrer.
Jenny agachou-se no chão e tentou socorre-la. Olhou para os lados. Não achava que ligar para os pais da menina poderia ser útil.
A tesoura estava encravada em um local próximo ao cotovelo. O sangue que saia em vermelho vivo se alastrava pelas folhas de modo que não era mais possível ver a obra de arte que estava em andamento. Jenny, com alguns pingos de sangue nas mãos que tremiam juntamente com o corpo inteiro, tentou captar com o olhar arregalado de desespero qualquer coisa que pudesse salva-la. Observou o quadro que estava a sua frente e com a selvageria de um animal caçando sua presa arrancou a pintura de sua moldura deixando-a com os contornos rasgados. O sol do fim da tarde havia sumido e o rosto do primeiro e do quarto menino estavam despedaçados. Levou o papel até o ferimento, sem retirar a tesoura de dentro da pele. Se aquilo estancasse pelo menos um pouco já ficaria feliz.
Quando viu que o resto do que já foi uma pintura começava a se encharcar. Decidiu até o andar inferior. Agarrou o telefone com as mãos e começou a apertar os números.
–Atende!
Uma voz apareceu do outro lado da linha. Aquilo era como uma luz no fim do túnel.
Tudo passou muito rápido. As luzes na rodovia que anunciavam a chegada da ambulância. Natasha sendo levada para o hospital.
Quando os médicos perguntavam, dizia que eram irmãs e que os pais não atendiam o telefone, e realmente não atendiam. Indagavam também sobre o acidente. Sobre isso, Jenny era capaz de deduzir os fatos só de observar a cena. Natasha decidiu que seria melhor fazer a obra artística no chão, onde teria mais espaço. Havia um pequeno suporte para a tesoura que ela também deixou no solo e que por descuido havia o deixado de ponta para cima. Ela tentou levantar-se sozinha para pegar alguma coisa, mas como ainda não tinha força suficiente nas pernas acabou tropeçando e se ferindo com o objeto pontiagudo. E em relação ao fato de a menina não falar, Jenny afirmou que era causado pelo trauma do acidente com a tesoura.
Dormiu por alguns dias no hospital até que dissessem que ela estava suficientemente bem para voltar para casa. Com a ajuda de um táxi retornaram a residência. Jenny certificou-se de ir até lá um dia antes só para limpar a bagunça feita pela fatalidade.
Somente quando a cadeira de rodas atravessou a porta foi que Jenny realmente se deu conta de que teria de lidar com o fato de que os filhos do diabo não existiam mais. Essa preocupação havia passado por sua cabeça antes, mas tentou evita-la o máximo de tempo que pode. Não tinha ideia de como Natasha reagiria ao notar que o quadro que tanto a fascinara não estava mais lá.
A garota apoiou-se na mão de Jenny para conseguir se levantar. Subiram as escadas juntas. O percurso foi demorado devido as condições dela, mas Jenny gostaria que demorasse ainda mais. Não havia inventado uma explicação para o sumiço do quadro.
Abriram a porta do quarto. No mesmo instante os olhos de Natasha focaram diretamente para onde deveria estar o quadro. Ela arregalou-os numa expressão perturbadora, abrindo um pouco a boca. Soltou-se de Jenny e apoiou-se na parede enquanto esta foi correndo buscar a cadeira de rodas. As palpitações e tremores a acompanhavam enquanto levava o objeto para cima. Largou a cadeira lá e voltou quase que correndo para o seu quarto. Que Natasha se virasse. Tentou evita-la o dia inteiro.
A noite chegou e a casa se escurecia cada vez mais. Ela andou até o próprio quarto e fechou a porta. Enfiou-se debaixo dos lençóis como se isso fosse protege-la de algo.
–É só uma garota-Disse finalmente tomando coragem para adormecer.
Na manhã seguinte, foi a vez de Jenny ir ao hospital. Pelo menos foi o que achou quando as primeiras luzes atravessavam a janela. Sentiu uma dor lancinante entre os dedos. O quarto estava escuro o suficiente para não conseguir ver o que a atormentava. Algo estava de tesoura na mão enquanto cortava o espaço entre os dedos de Jenny.
–Sai daqui! –Disse gritando.
Escapou do cômodo rapidamente andando em passos barulhentos.
Em um ataque de fúria, Jenny seguiu o barulho. Andou com passos agressivos e apressados até o quarto de Natasha. Ela estava na cadeira de rodas. Ela avançou e pôs um dedo em sua cara.
–Escuta aqui. Eu não destruí aquele quadro de propósito, ouviu? Eu fiz aquilo pra salvar a sua vida. E você nunca, NUNCA mais tente fazer algo como isso de novo. E você pensa que eu não sei que você já está praticamente andando? Eu sou mais forte que você e se você tentar algo não vai gostar do que eu vou fazer, então é melhor ficar quieta. E onde está essa merda de tesoura? ONDE? –Perguntou agarrando o queixo de Natasha com força e levantando-a da cadeira. Balançava seu rosto com força. A menina permaneceu em silêncio sem demonstrar nenhuma emoção. Jogou-a na cadeira e afastou-se tentando se acalmar. Estava assustada consigo mesma.
Foi em direção ao quarto e vasculhou a bolsa na procura de uma fita cassete. Colocou-a em um rádio encostado em uma mesinha e respirou calmamente na procura de um pouco de tranquilidade ao som de All you need is love, dos Beatles. Encostou-se no chão enquanto chorava.
Para qualquer um que perguntasse, Jenny juraria que viu um mínimo de expressão no rosto de Natasha. Conseguiu ver raiva, mesmo que por um milésimo. Não era impressão sua.
Ela dormia sempre com algo bloqueando a porta. Constantemente ouvia passos no corredor e pequenas batidas.
Apenas deixava a comida em uma mesa encostada na parede do quarto e logo depois retirava-se. Quando retornava, a refeição estava praticamente intocada. Preferia não fazer comentários e dirigir-se para a cozinha.
Em poucos dias, Natasha começava a secar. As pernas ficavam tão finas que quem olhasse achava que estavam sumindo. Os ossos ficavam cada vez mais visíveis sobre a pele. Jenny tentava fazer ligações de forma desesperada para os pais da menina, mas estes nunca atendiam. Não havia jeito, tinha de procurar ajuda fora da casa. Só de pensar no que a garota pudesse fazer consigo mesma se estivesse sozinha lhe dava calafrios.
Situações desesperadas requerem medidas desesperadas. Entrou no quarto com a refeição em suas mãos. Natasha olhava para ela fixamente.
–Você vai comer. Vai comer agora!
Jenny aproximou-se e Natasha virou o rosto. Ela segurou seu queixo e tentou colocar a colher em sua boca. A menina estava muito fraca e não reagiu, só fez uma careta irritada enquanto olhava para sua cuidadora com os olhos cheios de olheiras.
Conseguiu que uma boa quantidade de comida entrasse no estômago dela. Deu-se por satisfeita. Agora estava mais tranquila. Desceu as escadas e depois voltou para ver como Natasha estava. Encontrou-a deitada no chão no banheiro. Em sua boca havia um resto de vômito.
–Não, não, não.
Observou o resto da refeição preparada no vaso. Acolheu a garota em seus braços e levou até a cadeira de rodas. Ela apenas continuou sentada enquanto olhava para o local onde havia o quadro. Era como se quisesse se unir aos filhos do diabo. Ficar igual a eles.
Afastou-se para chorar em algum canto da casa.
O dia ia escurecendo e Jenny iniciava seu ritual de bloquear a porta. Não foi capaz de achar a chave. Enquanto arrastava a cadeira, uma forte batida foi ouvida contra a entrada. Ela achou que a frágil madeira iria rachar. Cogitou em pular da janela.
Sentou-se na cama e ficou olhando diretamente para a entrada. Algum barulho estranho, quase animalesco, pareceu atravessar a parede. Ela tomou sua decisão.
Retirou a cadeira com força e bateu na porta com o ombro. Algum ser que estava atrás da porta foi jogado alguns centímetros para trás. Jenny não teve tempo de vê-lo e saiu correndo em direção ao matagal. Não era a coisa mais inteligente a se fazer, mas serviria.
O matagal alto ameaçava prendê-la naquele local. Continuou sua caminhada, mesmo que o terreno fizesse com que quase tropeçasse, mesmo que sentisse as folhas pinicando e os insetos mordendo a sua carne.
Parou bruscamente. Continue, disse para si mesma. Os pés começavam a ir para trás.
Aquela menina vai morrer. Não deixe ela lá.
Parecia um sonho irreal. Se ainda estivesse viva no dia seguinte, não acreditaria que tudo aquilo aconteceu.
Voltou para a casa. Um silêncio inesperado invadiu seus sentidos. De alguma forma, aquilo lhe dava ainda mais calafrios do que as batidas na porta ou a pintura macabra. Fingiu que tinha coragem e subiu as escadas.
A cadeira de rodas estava vazia. Ela já sabia que deveria ir até o próprio quarto se quisesse saber o paradeiro da menina.
Conseguiu ver uma sombra no chão através da porta escancarada. Prosseguiu para que tivesse uma visão ampla do que estava acontecendo.
Natasha estava sentada em uma cadeira. Sua coluna estava inclinada para frente. Estava segurando algo que Jenny não foi capaz de ver inicialmente. Sua boca abriu-se. Natasha segurava um rolo de notas de dinheiro. Uma parte dele estava encaixada em seu nariz que inspirava a substância que estava sobre a mesa. Jenny puxou a cabeça da garota para trás, mas era tarde demais. Em poucos segundos a droga iniciava seu efeito.
Era pior do que esperava. Natasha revirou tanto os olhos que as pupilas quase sumiram. Ela apenas tremia como se estivesse tendo uma convulsão. Sangue escorreu pelo nariz e vômito saiu da sua boca. A menina estava prestes a cair, mas Jenny a segurou.
Ela largou-a no chão em desespero e foi correndo para a sala. Agarrou o telefone e digitou alguns números.
Natasha era levada na cadeira de rodas pelo meio do matagal. Avistou o carro na estrada.
–Aqui!
Ele desceu e foi em direção até as ambas.
–Quer merda você fez Jenny?
Não sabia o que responder. Observou sua jaqueta de couro, o colar com símbolo da paz, a calça marrom, as botas e a barba espessa.
–Me ajude a leva-la –Disse apenas.
Só despertou quando já estavam no carro levando-a.
–Primeiro: aonde nós vamos? Segundo: o que aconteceu?
–Eu não sei para onde nós vamos. Só sei que eu cheguei no quarto e ela estava inalando heroína. Deve ter pensando que era cocaína. Então era tarde demais e ela estava tendo uma overdose.
–E como ela descobriu como se usa heroína. Ou cocaína? Enfim.
Ele a olhou com os olhos arregalados.
–Não é isso que você está pensando. Eu não usei nenhuma droga na frente da menina. Muito menos a incentivei a usar. Eu estava ausente. Ela foi até o meu quarto e vasculhou nos meus objetos até achar a heroína na minha bolsa.
–Então como...?
–Sei lá. Ela deve ter visto na TV ou no colégio. Só sei que eu não posso ir ao hospital. Podem me prender e eu vou ser odiada pra sempre pela cidade inteira por fazer uma criança usar drogas. Vão me espancar. Os médicos não vão acreditar na minha história. Foi difícil acreditarem em mim quando Natasha se acidentou com uma tesoura. Quase chamaram a polícia.
Jenny virou a cabeça em direção a parte traseira do carro.
–Caralho! Se ela vomitar mais vai morrer. Ela não come nada.
–Ela está morta? Ela não se move desde que coloquei as mãos no volante.
–Espero que não. Você tem alguma ideia? Por favor diga que tem Garry.
–Tem uma... seita que faz vários rituais e cultos. Eles também curam pessoas. Meus amigos já falaram muito dessa comunidade. Eu passei em frente a casa deles, mas não cheguei a ver o que tinha lá dentro. Não tive coragem.
–Então nos leve lá. Qualquer coisa que salve a garota.
–Tem certeza?
–Tenho. Por favor, dirija o mais rápido que puder –Disse entre lágrimas.
Jenny fechou os olhos. Não conseguia olhar para trás e ver Natasha morrendo, se já não estivesse morta. Tentou pensar em momentos felizes. O tempo passaria mais rápido se ficasse distraída. E passou.
O veículo parou. Os faróis iluminavam a grande moradia. Era antiga, mais que a casa dos Hamptons. Jenny observou vultos andando pelas janelas. A morbidez da casa a distraiu por alguns momentos.
Antes que pudesse chama-los, um estranho abriu a porta e foi em direção a eles. Garry abriu a porta e foi conversar com a pessoa que estava ali. Jenny amedrontou-se diante daquela figura. Usava um véu preto que cobria o corpo do ombro até os pés. O rosto tinha feições masculinas, mas possuía uma maquiagem mal feita estampada na cara e uma peruca preta.
–E aonde ela está? –Pronunciou em voz alta. Garry foi até em direção a traseira do carro. Jenny o ajudou carregando-a.
–Você é a líder?
A líder acena com a cabeça. Ela gesticula alguma coisa estranha com a mão e dois homens fortes saem da casa para carregar Natasha, que é levada tão rapidamente que não tem tempo de dizer nada.
Jenny conteu a ansiedade segurando as mãos nas calças. Sua entrada não foi permitida. O choro caia e rolava pelo vento através dos campos.
Quando os pés dela imploravam por um descanso e o sol já raiava, a entrada da casa foi aberta. Caminhava perfeitamente e com a cabeça erguida. A aura parecia mais leve e contagiante. Jenny sentiu-se obrigada a sorrir, mas logo retomou a expressão preocupada. A menina estava com algo estranho na cabeça. Tratava-se uma coroa feita de espinhos.
–O que é isso?! -Exclamou franzindo as sobrancelhas e apontando.
–Não pergunte, Jenny -Disse Garry atrás dela. -E não olhe pra mim que eu também não sei.
Jenny agradeceu rapidamente e puxou Natasha para dentro do carro. Não queria passar mais nenhum minuto ali.
–Você não pode leva-la.
A voz da líder era tão estranha que arrepiou cada centímetro do corpo de Jenny. Aproximou-se do carro e bateu na janela agressivamente enquanto falava uma língua estranha.
–Acelera! -Disse Jenny em total estado de pânico.
Um aglomerado de pessoas saiam de todos os cantos, algumas com túnicas cobrindo o corpo. Garry acelerou e quase acertou um deles.
–Eu acho que era pra você só observa-la. Não leva-la junto com você.
–Eu não ia deixar a menina lá.
–Eu sei. Só estou explicando. Enfim... Para onde vamos? Agora tem uma seita tentando nos matar.
Ela encostou-se na janela. Natasha sorriu no banco de trás.
–Muito obrigado, Garry. Sério. Eu sei que não somos tão próximos. Na verdade colegas. Espero de verdade que você tenha para onde ir. Eu e Natasha vamos...
Ela hesitou.
–Eu não sei pra onde vamos. Só nos leve pra qualquer lugar que tenha um telefone. Vou tentar ligar pros pais dela.
Não conseguiu ter nenhum contato com os pais dela no início. Após pararem em vários lugares com receio da seita e de ver Natasha surpreendentemente passar de muda para tagarela, finalmente conseguiu ter informações sobre seus paradeiros. Através de uma tia, que teve a localização revelada por Natasha com relutância, descobriram que os Hamptons sofreram um acidente de carro. Jenny percebeu que aquela família não tinha muita sorte. A avó não estava muito bem mentalmente falando, e por isso nem notou a ausência. Não era uma família muito cheia. Ela achou que a tia estava tentando esconder o fato de que não se importava com os parentes, assim como o resto da família muito provavelmente também não.
–Eles não tem amigos. Não tem família. Pelo menos uma que se importa. Muito estranho -Afirmou Garry. -Mais eu tenho que admitir que parece um pouco a minha.
O dia do reencontro chegou. O carro quebrado dos Hamptons estava estacionado em um parque. Eles pareciam mais quebrados ainda. Tentaram disfarçar e manter a dignidade com roupas largas.
–Então vamos.
Antes de abrir a porta do carro, Jenny recolheu rapidamente a coroa de espinhos da cabeça da menina. Ela achou que Natasha não havia percebido. Pelo menos era o que parecia. A garota começou a ficar indisposta e caminhou até os pais como um robô. Jenny pegou o bolo de dinheiro jogado. Nem sequer despediram-se.
–Já estava me dando agonia essa coroa. Ela não tirava nunca.
–Ela parece triste por causa disso -Disse Jenny enquanto olhava para o rosto dela através do vidro do veículo dos Hamptons. Ela estava com a coluna inclinada para frente e com os olhos arregalados com uma face de desespero, quase chorando.
–Que nada. Ela só está com uma saudade ‘’instantânea’’ de você.
O rosto dela dizia algo parecido com socorro e logo depois com o sentimento de luto. Jenny teve o instinto de salva-la, mas não fez nada. O veículo partiu.
–Ainda bem que eles se mudaram. Acho que o problema era o lugar. Anda mais com aquela seita.
Assim que ela ia embora, a primeira coisa que Jenny sentiu foi alívio. Aquela menina só atraia mais e mais problemas e a levava até lugares mais obscuros do mundo que ela não gostaria de conhecer. Viu, no último segundo antes da partida, o rosto da garota formar uma espécie de careta macabra meio encoberta pela franja e pelo reflexo do espelho. Mas deve ter sido só impressão sua.


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