Carpe Noctem escrita por Sullie K


Capítulo 1
Capítulo I


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem, e não deixem de deixar um comentário com suas opiniões! Críticas são sempre bem vindas.
Qualquer errinho é completamente meu, estava ansiosa para postar e revisei poucas vezes.



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Se tornar-se padre fosse tarefa fácil, Nathaniel, mero filho de camponeses ricos, não teria lutado tanto para isso.

Devoto à fé, genuína e crua, desde seus seis anos de idade, o jovem sempre saberia dizer, como resposta que habitava a ponta de sua língua, o que seria quando crescesse. “Padre, papai, serei padre.” E os adultos sorriam ao antes moleque levado que se entregara de corpo e alma ao Catolicismo.

Ia à igreja não apenas nos domingos, mas também em todos os outros dias, se não bastasse cuidar do leilão solidário. Nunca pusera o olho no dinheiro que recebiam, se continha com a recepção. O ouro, desprezava com louvor, e via esta como apenas mais uma das características que o bom Deus havia lhe dado para indicar seu indiscutível futuro: o de ser o homem que espalharia a grandiosa palavra divina que, nos sombrios tempos vividos, fora se perdendo pelos excessivos pecados humanos. Já a sua falta de fé pela humanidade, escondia em perigoso confim de seu cérebro; mas, afinal, Ele não cometia erros.

Passava as tardes lendo livros nos limites do bosque e da aldeia. Mesmo que fosse poesia ou romance, a Bíblia não deixaria de acompanha-lo no bolso da grande batina, branca e azul como jóias, que ganhara de seu instrutor. Naquela tarde, deliciava-se quase que clandestinamente com um conto sobre monstros.

Não irás para além dos bosques, Magda!” O cavalheiro genérico fruto de escrita mediana alertava a ousada heroína sobre os vampiros que viviam do outro lado da floresta.

Oh, Neal, mas sem eles, que propósito minha vida terá?” E ela ignorou-o, zarpando em seu cavalo, rumo à terra proibida.

Nathaniel divertia-se com as criaturas fantásticas que o ser humano produzia. Bruxas em longas vassouras, mortos que voltavam à vida, homens sem cabeça, fantasmas de parentes vingativos... e seus preferidos, é claro, os infames vampiros. Criaturas estas que, depois da transformação, se alimentavam estritamente de sangue humano. Arrepiava-se com o pensamento de que, talvez, na calada da noite, aberrações assim poderiam estar vagando pelas ruas, despreocupadas pela superioridade diabólica que exerciam sobre os pobres humanos. Depois de cada livro, é claro, preparava-se para uma oração. Ficção ou não, queria-os longe de si.

Passou os dedos sobre o crucifixo no peito e respirou fundo. O som suave e melódico do sino da igreja atingiu seus ouvidos. Dezoito badaladas e, agora, ele sabia que já era hora de retornar ao seu posto, por não haver pecado maior que deixar o padre esperando para dar-lhe aulas. E correu, inocente, mal percebendo que seu livro ficara para trás sob o sol que se punha. Neal, Magda e os tenebrosos vampiros dormiriam sós esta noite.

Só eles e o orvalho, as cigarras, a grama seca. Eram um conto, não viam o tempo passar. Mas mais badaladas do sino ecoavam a cada hora que passava, e era este o som mais indistinguível, até para meros personagens de livro. O tempo não parava para ninguém.

Exceto para aqueles que cometiam a proeza de esquecer-se dele como o jovem rapaz esquecera-se do livro. Só notaria a ausência para lá da hora de retiro, deitado sobre colchão duro de seu quarto pequeno. Três santinhos o acompanhavam na cabeceira da cama, quando desistiu, finalmente, da busca obstinada entre seus pertences. De repente, uma luz veio até si e então soube que não lhe faria mal ter de voltar ao bosque no dia seguinte para procurar pelo item perdido. Havia, e agora tinha certeza, de estar lá.

Só torcia para que o sereno não molhasse as frágeis páginas.

“Nathaniel?” Cinco toques sobre a porta de madeira eram o suficiente para despertá-lo. Ou seriam, se ele já não estivesse de pé.

“Estou acordado, pode entrar.” Uma noviça alta com os cabelos presos em presilha cor de safira abriu a porta com a sutileza que lhe era de costume. Era Melody, ele jamais confundiria aqueles enormes olhos de turquesa profundo.

Sua escrivaninha estava impecável como sempre. A futura freira questionava como ele conseguia, todos os dias, mesmo depois de estudo ininterrupto, mantê-la assim. Matematicamente perfeita. Nathaniel limitava-se a dizer que aprendera com o pai. Ele fechou seu caderno e encarou-a com curiosidade.

“Houve alguma coisa?” Perguntou, genuíno.

“O padre Faraize adoeceu esta madrugada.” Engoliu em seco, e prosseguiu. “Ele desmaiou e, quando despertou no hospital, disse que queria ver você.”

Teve de processar o que ouvira por alguns segundos, e só então levantou-se bruscamente da cadeira, como quem custava a acreditar na circunstância. Como o padre, homem sacro e de boa saúde, que no dia anterior estivera tão sadio poderia ter tido uma recaída tão súbita? Franziu o cenho, acima de sua preocupação, raiva.

“E por Deus, por que não me acordaram na hora?” Deixava o controle perdido escapar pela voz falha. Melody mal abria a boca para responder e ele já lhe interrompia, as mãos sobre seus ombros. “Droga, Melody, onde ele está agora?”

“Levaram-no de volta ao seu quarto.” Hesitou, culpada. Era tão raro ver o louro assim, que quando acontecia, qualquer um se sentia intimidado. Energia vizinha à monstruosidade. “Me perdoe, já era madrugada e...”

Nathaniel deixou-a para trás, plantada, movimentando-se com agilidade pelo corredor do convento. Tão distraído estava que nem sequer sua cruz levara consigo. Andava apenas em longa camisola que tornava sua figura diligente e cansada quase fantasmagórica.

Subiu as escadas para encontrar algumas pessoas à porta do quarto do padre. Poucas, e deu um jeito de afastá-las para entrar no recinto. Faraize deitava-se, moribundo, o olhar fixo num ponto inexistente no encontro da parede e do chão. O doutor não mais marcava presença na sala de atmosfera sufocante, mas alguns frascos de remédios já supriam a necessidade dele ali.

O jovem aproximou-se, curvando-se tanto em respeito quanto em necessidade à figura deprimente do sacerdote. Olheiras incomuns debaixo dos olhos e os cabelos desgrenhados. Ainda assim, parecia ter se recusado a despir-se das vestes de padre. Uma de suas mãos tremia, recostada sobre a gola alta. O rapaz pôs sua mão também sobre a do outro, que assustou-se com o choque do contato.

Nathaniel.” Virou sua cabeça fraca para encarar seu aprendiz; em seus olhos, o medo era estático, como se visse o próprio demônio cara a cara em cada um dos cantos do quarto. “É um alívio te ver bem.”

“O que aconteceu, senhor? Desculpe-me por só vir agora; a culpa é toda minha. Eu devia ter sentido que havia algo de errado ontem. Mas você parecia tão bem e...” Faraize sacudiu a cabeça em negação, interrompendo-o.

“Preciso falar com você em particular, meu filho.” E fez um gesto dispensando a empregada, que saiu junto dos outros dois sujeitos na porta. Só tomou força para continuar quando teve a certeza de que não havia absolutamente ninguém ao lado de fora. “Nathaniel... Se eu lhe pedisse, você saberia rezar-me uma oração, certo? Qualquer uma está de bom tamanho.”

Ele estranhou o pedido, porém assentiu e começou a balbuciar uma Ave Maria em Latim. Foi a primeira que passou-lhe pela mente bagunçada e, por erro que sequer sabia que poderia cometer, acabou trocando as palavras em uma das frases. “...Amem.

E os dois permaneceram em silêncio durante um tempo prolongado em que Nathaniel chegou a pensar que o homem pudesse ter falecido. Mas ele logo entreabriu os finos lábios e murmurou, baixo como um suspiro discreto:

“Meu jovem, eu fui maculado. Eu preciso... Eu preciso que você me mate, pelo amor de Deus.”

Encarou-o com os olhos arregalados, incrédulo da legitimidade do pedido. Teria o padre ficado louco com a doença?

“Céus, não diga uma coisa dessas! Você está se sentindo bem?” Pôs a mão na testa do mais velho, sentindo um fervor impar. “Você está ardendo em febre, deixe-me chamar um médico.”

Não.” Quando ele tentou levantar-se para chamar o doutor, o padre o segurou pela mão, com vigor que não antes se vira. A febre não parecia ser um empecilho para a força com a qual ele desejava que absolutamente ninguém entrasse ali. “Sente-se do meu lado.”

Um pouco apavorado, o pupilo obedeceu. E Faraize olhava com expressão nula para o teto. Tossiu e pegou fôlego algumas vezes, até que estivesse pronto para revelar qualquer que fosse a frase cerimoniosa que ele ansiava por falar e o outro por ouvir.

“Ontem à noite, depois de nossa aula, eu saí para ver a senhora Agatha. Ela passou pela cidade, coisa rara de acontecer... Pensei que eu não poderia perder a oportunidade de conversar com ela.” Um pássaro negro voou rapidamente pela manhã nublosa, e por além do vidro da janela foi possível ver seu vulto instável. “Eu tive de passar pelo bosque, já era previsível; levei minha lamparina, mas era muito difícil de enxergar. Eu ouvia sons, as cigarras, corujas e... alguma criatura estranha que parecia até gente caminhando próxima a mim.”

“E você conseguiu vê-la?”

“Naquele momento, não. Só notei a presença dele quando seu corpo estava por cima do meu, branco como um cadáver, me agredindo.”

Nathaniel notou mais alguns machucados no rosto do outro. Sua testa estava roxa onde encontrava com o cabelo, seus lábios esbanjavam um corte tacanho. No outro lado da face, um avermelhado sutil que poderia ser tanto fruto da natureza quanto de um soco se demonstrava.

Faraize tremulou ao alcançar, novamente, sua gola com as duas mãos desta vez. Puxou, incrédulo, o tecido para baixo, revelando grande mancha de sangue seco em seu pescoço, circundando dois furos na lateral. Olhou para o mais jovem, esperando qualquer reação, mas uma expressão quase em branco era o máximo que conseguia lhe dar.

Ele simplesmente não entendia o que estava acontecendo. Claro, reconheceria aquela situação a quilômetros de distância. Em livros de ficção. E se tratava de ficção principalmente porque não era passível de acontecer na realidade.

“Senhor, o que é isso?” Perguntou, cético, em esperança de que nem ele e nem o padre estivessem loucos.

“Eu fui mordido por um vampiro, Nathaniel.”

Seguindo tudo que aprendera com os livros sobre as monstruosas criaturas, cada pequeno fato do que Faraize dissera parecia fazer sentido. Um ser de força anormal, pálido, alimentando-se do sangue humano na calada da noite. Até a marca de mordida condizia com as descrições que lera nos contos.

Ou estavam ambos delirando, ou algo muito sombrio havia se instalado no vilarejo.

“Pensei que fossem histórias para assustar criança; isso não é possível.” O rapaz proferiu, em um estado de choque e fé oscilante.

“Não crê no que está na sua frente? Eu pensei que você, de todos os outros, acreditaria em mim.”

“É difícil, padre. E mesmo que seja verdade, tudo o que precisamos fazer é cuidar desse machucado, você não vai se transformar só com uma mordida. Por favor, me deixe chamar o médico.”

“Ele me fez tomar o sangue dele, meu filho.” Nathaniel estremeceu, confuso e em conflito. Ele sabia o que isso significava. Se fosse real, não demoraria mais de um mês para que o padre saísse por aí com uma sede insaciável de sangue mordendo os camponeses. “Agora, por favor, me mate, antes que algo pior aconteça.”

Ele ajeitou-se na cama para conseguir olhar seu aprendiz nos olhos.

“Me sufoque. Eu não conseguirei sozinho.” Suspirou, aterrorizado, escondendo o pânico que aflorava pela água quase imperceptível que se formava em seus olhos. O jovem também não seria capaz. Nunca.

“Não.” Levantou-se da cama, dessa vez sem deixar que o outro segurasse sua mão ou impedisse-lhe. “Você está fora de si por causa da febre e eu vou chamar o doutor, você querendo ou não.”

“Se você não acredita em mim, vá até a floresta. Mate ele. E se não encontrar nada, te dou o direito de chamar-me de louco.” Foram estas as últimas palavras dele, antes que Nathaniel fosse embora, deixando a deplorável figura para trás, gritando “Espere!” sem nenhum retorno. Avisou à empregada que chamasse o médico, que era questão de urgência. E retornou ao seu quarto, tirando, afobado, o pijama, como se este houvesse sido também maculado de alguma forma. Vestiu sua batina e seu crucifixo e rezou mais uma vez pela melhora do padre. Agora, era hora de esquecer isto e ir procurar pelo seu livro. Só por via das dúvidas, colocou uma estaca de madeira no bolso da veste e saiu. Lá fora, um ameno raio de sol que só agora se mostrava, concebia luz em sua face combalida e ele torcia para que o dia fosse assim. Ensolarado.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado e, novamente, não deixem de comentar suas críticas ou opiniões. Já já tem capítulo novo. Obrigada por lerem!



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