Sob controle (Lucy, Livro 1) escrita por Natália Alonso


Capítulo 2
Capítulo 2 - Encontros




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" Uma vez tomada a decisão de não dar ouvidos mesmo aos melhores contra-argumentos: sinal do caráter forte. Também uma ocasional vontade de se ser estúpido.” - Friedrich Nietzsche

 

 

 

 

 New Orleans, 2016

 

O homem negro termina o cigarro, sente o gosto amargo do filtro queimado e joga irritado no chão a ponta pisando logo em seguida. O paletó sujo é puxado pela lapela nervosamente tentando se ajeitar, ele olha ao longe as luzes dos bares da cidade boêmia. Está estranhamente silencioso, normalmente tem mais barulho, mais sirenes, esse silêncio parece opressor e o afoga. Ele esfrega as unhas na barba por fazer e coça a parte de trás da cabeça fechando os olhos. Ele está no alto 31ºDistrito Policial, sua delegação, ele tem um bom trabalho, talvez. Ele gosta do trabalho, talvez. Não é por isso que ele subiu no telhado sozinho, não é por isso que fuma mais de dois maços de cigarros por dia, talvez.

O vento parece parar, é como se ele esperasse algo acontecer, algo que que ele não sabe o que quer que aconteça. Ele se aproxima do parapeito, sobe devagar com os sapatos marrons e olha para o telhado a sua frente. Fecha os olhos por um instante respirando fundo e o silêncio continua. Esse maldito silêncio. É estranho, ele sabia por que subiu, pensou nisso tantas vezes, pensou em simplesmente vir correndo como um louco. Agora ele olha para as luzes e nada... nada.

O vibrar do celular quase para seu coração em um susto.

— Caralho... agora? — ele murmura ao pegar o celular no paletó vendo que é seu parceiro na chamada.

— Fala, puto!

— Que foi?

— Tá perto da delegacia?

Manson olha para o letreiro da delegacia abaixo dos seus pés.

— Perto. Alguma coisa?

— Encontraram um presunto empacotado pra presente, já me adiantaram que deve ser o seu favorito, sabe aquele tipo...

— Ok, Cris, me manda o endereço ok?

— Já mandei, tô indo pra lá também.

Manson desliga o celular, coloca no bolso do paletó e sorri levemente antes de descer do parapeito.

 

 

Jasenovac – 1943 – no mesmo dia, algumas horas antes

 

Acordo. O gosto metálico na boca incomoda. Sinto a máscara que me amordaçaram, a peça metálica impede que eu abra a boca, as tiras de couro prendem em uma fivela atrás de minha cabeça. A dor de cabeça, forte, pulsante atravessa meus pensamentos, abro os olhos para toda aquela claridade. Vejo um dos homens de branco fechando o frasco, escrevendo na etiqueta algo que não consigo ler. No vidro, um pedaço de cérebro boia em um líquido turvo, é colocado na bancada metálica, junto de outros frascos etiquetados.

Nessa maca inclinada eles fazem os experimentos, parece que hoje é mais um daqueles dias, perdi a conta de quantos foram. Antes eu marcava a passagem de tempo pela janela na parte superior, pelo menos sabia se era dia ou noite. Já não aguento mais, não pela dor, aliás, não estou sentindo o meu braço direito. Não me deixam dormir, comer, ou saciar a sede, nem de água, nem do sangue. Consigo sentir o cheiro dele em suas veias, quase sinto o sabor férreo na minha boca. Quanto maior a sede, mais difícil é de se controlar, mas agora, talvez fosse o momento ideal. Eu vejo o pulsar de seus corpos e um deles, um moreno baixo, está sempre muito tenso. Ele não gosta de ter que trabalhar comigo, tem medo de mim. Os outros estão sempre muito tranquilos, de avental, luvas e máscaras brancas.

A estreita sala é totalmente clara, o chão é de piso frio e nas paredes as inúmeras imagens em raio x estampam o interesse macabro dos “médicos” a minha volta. Minha camisa e a calça de linho branco é muito fino, não me protegem do frio da bancada. Não que eu ligue para isso. Ainda desnorteada escuto os homens falando em alemão:

— Pontos finalizados, sinais estáveis.

Ele vem com uma lanterna conferindo meus olhos.

— Reação normal, está acordada dessa vez. O próximo processo é de extração.

— De novo? Algum problema na amostra anterior?

— Não, apenas para verificação de tempo de regeneração. Faça as medidas.

O segundo homem pega uma fita métrica e passa a medir meu braço esquerdo, pulso, antebraço, comprimento dos dedos, anota em um caderno. Meu braço direito está formigando.

— Sem sinal de coágulo ou hipotermia. — diz o outro a minha direita.

Olho para o lado direito e vejo um grande tijolo de gelo tomando todo o meu braço até a altura do meu ombro. Ele examina a pele, mostra para o outro encarregado que também anota em um caderno. Tento ler, mas minha vista está turva, um pouco de enjoo e muita sede. Ouço o barulho do primeiro colocando instrumentos na bancada, uma serra chama minha atenção.

— Quanto tempo da outra vez?

O baixinho folheia o caderno.

— O primeiro esquerdo em doze horas, o segundo em 47 até atingir as mesmas proporções.

— Prepare a cauterização. É preciso verificar se há aceleramento com ou sem a interrupção de fluidez.

— Maçarico?

— Não, as brasas. Esse inverno está longo demais e mandaram diminuir os gastos com combustível.

O baixinho acena e pega o telefone fazendo o pedido. Ele fala baixo enquanto os outros discutem os procedimentos na sala. Um deles segura o meu braço esquerdo e começa a puxá-lo para a lateral. Eu puxo de volta.

— Chega disso! — aviso, falo em alemão para que o imbecil entenda. Ele olha para mim, rapidamente confere as fivelas que me prendem. Se acalma e volta a cometer um grande erro. Eu tento me mover puxando o meu outro braço que, congelado, não pode se mover. Faço muita força e escuto o estalar do tijolo de gelo sobre a bancada. Isso pode ser o suficiente.

Ouço os passos no corredor. Eu puxo meu braço. Um estalo baixo vem do cubo de gelo. Chegam mais dois homens em seus descorados aventais, eles empurram o carrinho com uma bacia de metal, o vermelho vivo das brasas reflete na parede interna da peça. O moreno está tenso, como sempre.

Todos agora me seguram, menos o baixinho, que se afasta assustado, encostando na parede, sua covardia me fascina. Puxo e sinto dor, assim como um estalo maior. Eles me seguram e um deles soca o meu rosto. O outro bate com uma barra de metal na minha barriga. Torno a puxar meu braço com mais força! Eu puxo mais! Mais forte!

A bancada congelada se quebra. Rapidamente, uso o pino da bancada para perfurar a têmpora do maldito que me socou. Ao puxar, pedaços acinzentados voam pelo ar. Viro o corpo e atinjo com força o rosto do homem, que me atingira com a barra de ferro. O gelo se quebra em pedaços no seu rosto, e ele voa até a pia do outro lado da sala. Minha mão está liberta, minhas garras cortam as cintas e dou um salto para trás. Chuto a bancada, que desliza até o homem à minha frente, e o prende na parede. O da barra de ferro retorna furioso, dessa vez, golpeia minha cabeça. Cambaleio para frente, o sangue ajuda a deslizar a cinta de couro que me amordaçava, tiro, e com o meu rosto ainda regenerando, meus olhos verdes agora exibem as íris fendadas tal como um felino. Minhas presas aparecem e ele olha para mim como um coelho vendo uma raposa. Uso as unhas para cortar a sua garganta, o sangue escapa em um forte pulsar que diminui aos poucos. Paralisado, ele cai de joelhos e seu corpo pende levemente para o lado. Três tiros rápidos; dois nas costas, um na nádega. Aquele filho da puta atrás de mim.... Viro-me para trás em um salto e rasgo seu pescoço com minhas presas. Bebo seu sangue com seu corpo ainda caindo ao chão, fazia tempo que não sugava alguém com tanto sabor. Estou cansada de ser civilizada, domesticada.

Enquanto ainda estou me alimentando, escuto um gemido baixo, semelhante a um cachorro ganindo. O baixinho está colado na parede. Saciada, levanto-me com a camisa tingida de vermelho. Olho fixamente para ele, sob a perna da calça direita vejo o filete de urina descendo em seu sapato. Por um instante tenho pena, que logo passa ao lembrar que ele sempre esteve nas sessões.

Escuto os passos pesados do lado de fora do corredor. A porta é aberta em um movimento rápido, e os homens atrás dela atiram contra mim. Em um chute, jogo a bacia de brasas na direção deles. Um deles atira várias vezes enquanto os outros gritam, para o meu azar ele é um bom atirador. Percebo a escotilha na parede do lado direito, lembro de vê-los jogarem muitos cadáveres por ela. Pulo, abro e mergulho pela rampa. Escorrego, caio, deslizo pelo escorregador de metal; está frio, está nevando. Rolo por um morro. O cheiro ocre fica cada vez mais intenso. Quando finalmente paro de rolar, vejo o levantar de soda cáustica, ela queima minha pele, vejo uma mão, seu rosto alvo sem vida. Seus olhos brancos como leite olhando diretamente para mim. Afasto o meu rosto e vejo os corpos empilhados, muitos deles. Droga, isso é uma vala coletiva.

Distraída por um instante dou tempo suficiente para atirarem em mim novamente. Corro para o alto da vala, escalando entre os cadáveres, em direção ao atirador na borda. Ele paralisa por um segundo e começa a recuar, apertando o gatilho da arma sem munição. Agarro-o e me alimento dele. A mordida ainda deixa um pouco do sangue escapar, também por minhas garras fincadas em suas costelas, o líquido quente rasga a neve muito branca a nossa volta. Vários soldados correm para mim, um deles atira e sinto que agora a bala se alojou no ombro. Olho e reparo no quanto ele está pálido, talvez não soubesse o que eu era.

Um cheiro me chama a atenção, com minhas presas ainda na jugular do soldado, levanto os olhos e vejo um galão de gasolina próximo ao jipe. Me solto dele, levanto, estendo o braço e atiro o galão na direção deles, um idiota o acerta com a bala provocando a explosão. Esses já foram. Eu viro na direção oposta e corro muito, escalo e pulo a cerca de arame farpado, deixo um pouco de meus tecidos presos para trás, os de algodão e os de minha pele. Mergulho para a mata, cada vez mais o som dos tiros e fogo ficam longe. A cada passo escuto apenas o gelo sendo esmagado sob meus pés. Está frio, está nevando. Eu vou voltar para buscá-la, ela deve estar em outro lugar daqui, não teria o porquê de fazerem o mesmo a ela. Escuto máquinas pesadas, parece uma fábrica no prédio ao lado. Mas agora eu preciso ficar viva, não posso ser pega novamente.

 

 

New Orleans, 2016

 

— Então você estava voltando para casa e simplesmente decidiu virar em um beco sem saída? — disse o Sargento Jones Manson, da 31ºDistrito Policial, Unidade de Vítimas Especiais, tirando o cigarro da boca. Alto, negro, em torno dos 35 anos, grande porte, um pouco acima do peso na verdade. É um rosto bem marcado, bonito apesar do que causou a sua pele pelo consumo intenso de cigarros vagabundos. Reparo que seu cabelo é bem curto na lateral, e um pouco mais alto acima. Corte típico dos militares, mas se ele foi militar, por que diabos viria para cá ser policial? Seus olhos grandes e pretos me questionam.

— Por que virou no beco?

— Eu pensei ter ouvido um cachorro ganindo.

Ele solta um grunhido, olha pela rua, solta o cigarro no chão e pisa enquanto tira um pequeno caderno e caneta do bolso.

— É uma boa caminhada.

— Sim, era uma noite agradável.

Ele pensa um pouco em como estava silencioso no alto do telhado da delegacia, sim, estava fresco e agradável. Então ele olha para os pés da mulher.

— É um salto bem alto para uma caminhada.

— Sou acostumada com salto.

— Você disse que estava em uma festa antes disso, quanto tempo ficou lá?

— Duas, talvez três horas, não fiquei em pé o tempo todo e não é do tipo dançante... por que a pergunta, queria um convite?

Ele levanta as sobrancelhas olhando as calçadas desalinhadas, anota alguma coisa em sua caderneta

— Desculpe se isso pareceu... Não foi o que eu quis dizer.

— Então sua casa é bem próxima daqui, viu algo incomum nos últimos dias?

— Incomum como outros cadáveres? Não. Esse é o primeiro que encontro.

Ele fica olhando para mim, como se me analisasse.

— E você não a conhecia? — disse ele, apontando para o corpo no chão com a caneta Bic.

— Não, não me lembro de seu rosto. — Olho a legista terminando de examinar o corpo, a perícia inicial. Ele a cobre com o plástico branco que a envolve.

— Entendo. — A voz dele revela alguns resquícios de desconfiança. — Por enquanto, isso é tudo. Você será liberada assim que registrar suas digitais com nosso biometricista.

— Minhas digitais? Isso é realmente necessário?

— Você tocou no plástico, temos que desconsiderar suas digitais na investigação. Isso é um problema?

— Não. É claro, eu tinha esquecido desse detalhe. Não é problema.

— Ótimo. — Encerra de forma seca enquanto acena para outro homem com uma maleta.

Antes que eu perceba, rapidamente, o biometricista ataca com seu ágil rolinho de tinta. Segura minha mão, dedo-rolo-papel, dedo-rolo-papel... e em menos de um minuto, ele me deixa com todos os dedos manchados. Entrega-me um punhado de papel higiênico para limpar as mãos, que se esfarela ao invés de limpar.

Irritada com os questionamentos, com a tinta pegajosa em meus dedos, com a luz frenética da sirene eu fico pensando apenas em voltar para casa, para o silêncio de meu quarto. Pego minha bolsa, manchando de tinta o fecho dourado, e saio. Deixo os policiais, a mulher morta, o beco, e aquele cheiro ocre de morte. Caminho durante o amanhecer frio de New Orleans para casa.

Manson ainda carrega o caderno de notas enquanto se aproxima do colega, ele fala com a legista que está guardando uma haste flexível em um frasco plástico.

— Acharam alguma coisa dessa vez?

— Só indicativos de tempo. — responde seu parceiro. Cristian usa uma jaqueta de couro falsificado marrom escuro. A camisa está um pouco justa, mas a abertura revela uma corrente dourada. Louro, um pouco mais baixo que Manson, parece mais um cafetão do que policial. — Dessa vez ele cobriu com um plástico extra, mas a parte interna está seca. Ele deve ter colocado depois da chuva, mas quis garantir que não molhasse o corpo.

A legista acena e os dois se aproximam.

— Peguei uma amostra da água das poças e uma do plástico, provavelmente é só a chuva.

— Mais alguma coisa? — Cris fala ansioso.

— Vou ver na bancada os detalhes, mas tem uma que tá bem na cara. — A legista aponta com a pinça.

— Ele mudou o cordão?

— Sim. Esse é mais flexível, deu até lacinho na parte de cima. E a dobra no plástico foi feita mesmo.

— Como assim, dobra?

— A não ser que a mulher que chamou tenha mexido mais do que falou, sim. Ela foi colocada dessa maneira mesmo, com cara e torso de fora.

— Não ficavam sempre cobertas? — comenta Cris — É uma mudança de padrão?

— Viu o rosto? — questiona Manson.

— Está virado.

— É como se olhasse pra nós.

— Ele está debochando?

— Talvez.

— Um imitador?

— Muito perto para um imitador, só se tivesse informações de dentro da polícia.

 

 

***

 

Em casa, coloco os sapatos no canto do quarto e deito na cama, levando minhas mãos à cabeça.

— Tá dando tudo errado. O que eu faço, pensa Lucy, pensa droga. Eles podem verificar suas digitais, e se cruzarem com os dados de Nova York? Ou pior, de Roma? Rússia! Acabou!

Levanto-me, vou até a cozinha, a gata tricolor fica observando a movimentação ainda deitada no sofá. Pego uma taça, sirvo o vinho rosé, volto para o quarto.

— Eu terei que deixar essa identidade, logo agora que estou na idade ideal? Fazer outra custa caro, sempre é, fora toda a história de vida que se precisa criar... merda! Droga! Eu devia ter feito uma ligação anônima, para que fui esperar a polícia?

Sorvendo um gole do vinho percebo que a taça tem uma mancha preta da tinta. Olho para o espelho e percebo as marcas pretas em meu rosto, vou no banheiro lavar o rosto, esfrego com força, não tira tudo, ainda mancha a toalha azul. Volto ao quarto olho ao longe tentando me acalmar, quando sinto a presença dele em meu quarto.

— Situação complicada? — diz a voz suave no fundo de meu quarto. O cheiro de alecrim e um toque de defumado invade meu quarto. — Quer uma ajuda?

— Vá embora. Sua ajuda nunca é boa, já te disse isso.

Sinto ele se aproximar do meu ouvido e sussurrar por cima de meu ombro.

— Se você quiser, sabe como me encontrar, meu amor.

— Vá pro inferno!

Me viro e atiro a taça em sua direção acertando na parede, pois dele, só sobrara sua névoa esverdeada.

Estou sozinha novamente, ele sempre desaparece rápido demais.

 

 

*********

 

Hipátia me acorda lambendo meu dedão do pé com sua língua áspera.

— Tô indo, gata esfomeada.

Cambaleante, vou até a cozinha, abro a geladeira, puxo uma coxa de galinha e jogo no seu pote. Ela imediatamente começa a destroçar a coxa, ronronando de forma meiga. É uma tricolor muito peluda e vira lata.

Detesto dormir de roupa, ou maquiada. Droga, tô um caco. No chuveiro, fico pensando no que devo fazer afinal. Eu sei que isso pode atrapalhar de alguma forma a investigação, mas eu não posso deixar minhas digitais lá. Tenho que fazer alguma coisa para tirar pelo menos as isso de lá. Antes que verifiquem com outros dados, vejam as datas, registros de outros lugares. Como uma mulher poderia ter a mesma idade em locais e datas diferentes. Se souberem o que sou será uma caça às bruxas, de novo, estou cansada de fugir.

À noite, procuro algo discreto que eu possa usar. Visto botas militares, que há tempos eu não usava. Uma calça cinza escura e camisa preta, de seda, é claro. Pego um par de luvas de couro e saio com a moto até a delegacia. No site oficial da delegacia, conferi os turnos dos policiais do 31ºPD SVU. Manson deve sair em poucos minutos, então fico esperando no prédio ao lado.

A noite está clara, iluminada pela lua cheia, por esse mesmo motivo não se vê estrelas. As luzes coloridas da cidade do Jazz competem com a lua. Branco em cima, vermelho e azul embaixo, forma uma bela mistura luminosa. Vejo que ele saiu, fechou o seu escritório, está indo embora as 11:30 p.m. Ele costuma fazer serão pelo jeito, deveria ter saído as 10 p.m. Ao seu lado, Cris fala de forma agitada, eles conversam caminhando para o mesmo carro velho que estavam na noite anterior, é a minha hora.

Eu salto para o outro prédio, prendo-me à parede, e desço tal como um lagarto até a sacada à frente da janela do escritório de Manson. Nessas horas é vantajoso conseguir andar nas paredes e teto, ainda que por pouco tempo. Tiro a luva para usar minhas garras na beirada do vidro, soltando uma das madeiras, desencaixo o vidro e entro pela janela ainda trancada. O escritório é pequeno, apenas duas janelas simples. A mesa cheia de papéis acumulados é de frente a porta com um vidro fosco. A minha frente tem uma parede inteiramente coberta dos gaveteiros para armazenar os arquivos oficiais. A fraca porta de madeira, e janelas antigas, se eu quisesse seria fácil arrombar, mas não quero que percebam que estive aqui. Começo a procurar na mesa e, entre pilhas de papéis, encontro uma ficha.

 

 

Caso 093.468 – Homem do pacote - Serial homicida

Modus Operandi – asfixia/ degola, tortura severa, confinamento de cinco a oito dias cada vítima. Todas as vítimas mulheres entre 17 a 32 anos, etnia e aparência diversificada.

Todas esquartejadas, sem um dos membros e órgãos internos. Sangue drenado, encontradas envoltas em plástico branco leitoso de uso industrial, amplamente comercializado para papelarias, restaurantes, construtoras e funilarias.

* Posicionamento padronizado.

* Passou a secar todas as partes a partir de Sabrina Tompson.

 

Vejo as fotos; tão jovens.

 

Seis corpos identificados como o mesmo Modus Operandi. Primeira vítima a quatro anos, posição semelhante salvo as partes que foram levadas. As duas primeiras não apresentavam sangue drenado, a partir da terceira a separação de ossos das articulações é limpa, incluindo tendões e divisão muscular. Possível uso de bisturi ou navalha para a precisão.

 

Encontro a vítima de ontem à noite.

 

Rebeca Garibaldi. Americana, pai italiano e mãe americana, estudante do curso de matemática. 19 anos, 1,65m, olhos castanhos, cabelos castanhos, 65 quilos. Solteira, costumava sair em festas da universidade. Foi encontrada sem a coxa direita, assim como outras, os ossos foram totalmente separados com grande precisão. Apresenta poucas marcas de raspagem. 

* Uso de fio de silicone substituindo a fita plástica.

 

Quem fez isso sabia o que estava fazendo. Encontro a aba da ficha de minhas digitais quando escuto o girar da chave na porta.

— Eu disse a ele que ele não devia ter entrado lá sem esperar reforços. — Manson fala enquanto entra com o outro policial. — Rick tem mania de querer bancar o herói e qualquer hora, vai acabar em uma valeta desse jeito.

Me encolho embaixo da mesa, e vejo uma pistola semiautomática presa na parte de baixo do seu tampo. O botão vermelho próximo à beirada, deve ser um tipo de alarme. Ele faz a volta na mesa, fico olhando para suas pernas a minha frente, sapatos puídos. Ele joga as chaves sobre as pilhas de papéis se apoia na mesa e olha para a ficha aberta.

— Estranho — Manson fala enquanto olha para a mesa, a ficha que deixei aberta. Enquanto isso, rezo para ele não olhar para baixo, ele não pode me ver. —, não consigo entender como um homem é capaz de fazer algo assim.

— Manson, estranho seria se você entendesse. Lembra o que o Capitão disse? Nunca se acostume, se você se acostumar é porque não serve mais para isso. — diz seu colega.

— Não é como Jonatahn pensa, aquele filho da puta. Soube o que ele fez? — Manson parece perturbado —  Ele aceitou por fora para coagir a testemunha do caso 305, aquele que pegava os meninos da escola no furgão, aquele desgraçado — Ele coloca a mão no puxador da primeira gaveta e puxa com força —, onde está...?

 

Ele balbucia, fecha a gaveta, vai na segunda. Senta na cadeira, abre a segunda gaveta e se curva para ver. Olha diretamente para mim... Eu atiro no meio de seu pescoço. Seu tronco enverga-se para trás encostando na cadeira. O outro policial tenta puxar a arma mas eu atiro em seus colhões ainda protegida pela mesa, saio do nicho e atiro em sua cabeça. Pego a ficha inteira, a coloco debaixo do braço e salto pela janela, caindo direto no chão. O silêncio da rua destaca o estalar de meu joelho quebrado no asfalto. Eu corro, torta, mas ainda corro muito. Quando estou virando a esquina ouço os tiros de outros policiais de dentro do escritório de Manson eles tentam atirar no vulto fugitivo. Subo na moto e vou até... até onde? Vou ter que fugir, não vou resolver nada assim, droga. Que merda vai ser essa? Tenho que planejar algo melhor do que isso. Tenho que pensar numa forma de sair daqui sem deixar mais cadáveres para a polícia.

 

Não, não vou fazer dessa forma.

— Manson, é essa desculpa que você vai usar para quebrar sua meta de novo?

Manson para, puxa um maço de cigarros e fecha a primeira gaveta. Olha para o colega e suspira. 

— Eu sei... mas é difícil parar assim.

— Anda cara, eu sei que é ruim. O Jonatahn, esse caso 468, a saída da Diane. Mas ontem você fumou três, tenta pelo menos segurar esse número por enquanto. Quer o quê, um cilindro nas costas para correr atrás de bandido?

Manson suspira. Ele não está sendo sincero na contagem de cigarros para o amigo.

— Vamos tomar uma.

— Eu to dirigindo. — Ele joga o maço na gaveta.

— E desde quando isso te impediu?

Ele balbucia algo incompreensível, pega o casaco, as chaves, fecha a pasta na mesa, e ambos vão embora. Eu suspiro aliviada ao ouvir se afastarem da porta.

Solto minha mão da pistola presa ao tampo, espero o total silêncio e saio debaixo da mesa. Abro novamente a pasta e pego a minha ficha de digitais. Penso finalmente com alguma sensatez. Não tem por que eu levar isso, eles terão digitais a mais no plástico, gerando possibilidades diferentes para a perícia. Só atrapalharia a investigação do caso. Eles não vão investigar o meu caso, não vão cruzar nada. Isso não é como as séries de TV em que os policiais têm um banco de dados gigante para cruzar. Não, são apenas pilhas embaralhadas de papel, e um computador velho com mouse gorduroso. Eu não precisava fazer esse papelão. Coloco a fcha novamente na pasta, saio pela janela, encaixo o vidro e desço a parede pelas sombras.

 

 

*******

 

O carro que dirigia mais rápido do que deveria grita ao frear abruptamente na calçada. Manson sai, ainda que atrapalhado com o cinto de segurança, vai direto para o beco onde encontraram o corpo na noite anterior. Anda e volta novamente até a calçada, olha em torno. Cris sai cambaleante, joga uma garrafa na lixeira e passa a mão molhada de cerveja na calça.

— Você já pensou em tomar um daqueles tarja-preta? Minha ex tomava um pequenininho que fazia dormir, ficava calminha sabe.

Manson não responde. Segura Cris pelo ombro.

— Vai até lá?

— Que?

— Deixa, eu vou, fica aqui e olha.

Cris fica entre as calçadas da avenida para o beco. Ouve Manson falando do fundo da rua sem saída.

— Consegue ver?

— Ver o que?

— Eu, tá me vendo?

— Não.

Passos.

— E agora?

— Nada.

Manson se aproxima.

— Que é isso?

— Ela falou que estava andando aqui, nessa calçada e veio de lá — Aponta para a avenida —, aí quando virou, viu o plástico e se aproximou.

— Mas eu não to vendo nada. — fala Cris, finalmente mais concentrado.

— Exatamente. A caçamba tá na frente, a luz é uma merda.

— Então como ela viu antes de se aproximar?

— Ela disse que ouviu um cachorro, daí virou o rosto...

— E você não acreditou. — completa Cris.

— Tá ouvindo algum cachorro por aqui?

Cris olha em torno.

— Só mendigo mesmo. Acha que ela tá envolvida?

Manson balança o rosto, pensativo.


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