Bells of Notre-Dame escrita por Elvish Song


Capítulo 6
A Armadilha


Notas iniciais do capítulo

Pois é, pessoal: agora as coisas vão ficar tensas. Nem vou falar muito, só desejar boa leitura!



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A cigana pegou com um sorriso a criança que a meretriz lhe mostrava; apesar de todos os protestos e advertências de Clopin, a jovem fora aos subúrbios da cidade para levar ao menos um pouco de comida aos que mais precisavam. Clarisse, a prostituta com quem falava agora, fora uma das pessoas ajudadas pela moça quando, ao dar à luz, ficara doente e incapaz de se sustentar. Graças aos alimentos que Esmeralda lhe levara regularmente, ela e o bebê – um lindo garotinho de cabelos escuros e olhos castanhos – haviam sobrevivido.

— Nem sei o que faríamos sem você, menina – disse a mulher mais velha, de cabelos louro-arruivados, o rosto precocemente envelhecido por sofrimento e dificuldades, aparentando muito mais do que seus vinte e três anos – Eu não acreditava em Deus, ou em anjos, até conhecê-la.

Corando, a morena devolveu o bebê à mãe e pegou o avental do qual ainda havia comida guardada. Foi até Croix, um mendigo que perdera as pernas após ser atropelado por uma carruagem, e entregou a ele pão e carne, recebendo com felicidade o sorriso de dentes faltantes que ele lhe deu.

— Obrigado, Esmeralda.

— Não me agradeça, Croix. Se queremos que o mundo seja melhor, temos de fazer nossa parte, não é? – ela se ergueu e terminou de distribuir os alimentos entre os que mais fome tinham. Seu coração se partia por não poder compartilhar com todos, mas o alimento de que dispunha era pouco, e precisava ser distribuído aos mais necessitados. Finalmente ela voltou para junto de Clarisse, com o avental já vazio, e lamentou – queria poder fazer mais...

— Eu sei, Esme, eu sei... – a mulher mais velha passou o braço pelos ombros da outra – mas acredite: o que você faz é muito mais do que pessoas com muito mais recursos do que você.

— Isso não me serve de consolo. – havia um sorriso amargo no rosto da adolescente – só me faz ver que o mundo é ainda mais difícil de consertar do que pensamos.

— Você não vai consertar o mundo sozinha... Mas faz toda a diferença para aqueles a quem ajuda. – Clarisse acariciou a face da amiga – sabe que adoro te ajudar, mas preciso ir para casa, agora. Quer ir comigo?

— Não, obrigada, minha amiga. O Sol vai nascer logo, e vou caminhar um pouco.

— Está armada?

— E quando não estou? – riu-se a cigana – fique tranquila.

As duas mulheres se despediram e Esmeralda enveredou pelas vielas e becos; se tinha algum medo de caminhar por ali? Decididamente não. Seus medos eram relativos aos homens da lei e da Igreja; dos proscritos ela sabia muito bem se defender. Afinal, o que poderiam lhe fazer? Tentar violá-la? Assaltá-la (como se ela tivesse algo a ser roubado)? Se tentassem, encontrariam o gume do punhal que carregava preso à coxa!

O Sol estava prestes a raiar, e ela amava aquele horário: quase sempre acordava antes da aurora e assistia enquanto o céu se tingia de róseo, os primeiros raios dourados surgindo por detrás das colinas ao longe... De dentro da cidade não era tão bonito de se ver, mas ela não cruzaria os portões àquela hora – em que ocorria a troca da guarda. Assim, preferiu continuar seu deambular pelas vielas estreitas, perdida em pensamentos: sonhava com o dia em que retomaria as viagens em seu carroção restaurado, e também se preocupava... Pois quem cuidaria dos pobres e desvalidos pelos quais ela velava, quando houvesse partido? Mendigos, aleijados, doentes... Para ela não havia distinção entre pessoas, apenas seres humanos que precisavam de ajuda.

De repente, porém, ela parou onde estava: vislumbrara uma sombra atrás de si; tensa, tateou a faca pelo corte da saia e a desembainhou discretamente. Com voz firme, perguntou:

— Quem está aí? – e ante o silêncio – eu sei que está aí! Apareça!

Uma sombra se destacou das demais, lançando o próprio capuz para trás: uma máscara branca brilhou na escuridão, mas nem tanto quanto os olhos dourados por trás dela. Pega de surpresa, a cigana exclamou – sem guardar sua arma:

— Aaron! – ao ver que ele nada dizia, mas se aproximava, deu um passo atrás – o que está fazendo aqui?

— Cuidando de uma feiticeira que me lançou uma maldição. – rosnou ele, e moveu-se tão rápido que encurralou Esmeralda contra um beco; de imediato todos os pensamentos agradáveis que tivera acerca do mascarado se esvaíram enquanto o senso de autopreservação tomava conta de suas ações. Tentou correr, mas os braços fortes se fecharam ao redor de sua cintura; a mão grande pouso sobre sua boca, mas ela não se deixaria levar sem luta! Mordeu a mão d’A Sombra com todas as forças e, quando ele afrouxou o aperto, xingando, libertou a mão armada e desferiu um golpe contra o braço que circundava, o que lhe permitiu escapar.

Aaron, por sua vez, ao sentir a dor aguda das feridas, tomou-se de ira maior ainda e avançou sobre a cigana, a qual brandiu a faca e cortou-lhe a mão – um corte raso, mas dolorido. Aquilo o enfureceu de modo que nada antes o fizera, e o inquisidor se lançou contra a jovem, sem ligar para os cortes que ela lhe fazia. Sua mão se fechou no pulso da dama e torceu-o com tanta força que a faca escapou aos dedos finos. O outro braço a circundou pela cintura e a arrancou do chão, lançando-a sobre o ombro duro e musculoso. Em desespero, Esmeralda fez algo que jamais teria feito, em outra situação: gritou. Gritou com todas as suas forças, pedindo por socorro. Sabia que era muito pouco provável alguém ouvir, mas eram suas únicas esperanças!

E como se alguma graça divina a protegesse, de repente ouviram-se os gritos de soldados, o bater de seus pés contra as pedras e, mais depressa do que parecia possível, havia cerca de oito homens cercando ambos, as lanças apontadas para Aaron. Esmeralda mal conseguia ver o que ocorria, uma vez que seus cabelos caíam sobre o rosto e o ombro da Sombra pressionava seu ventre, dificultando a respiração... Mas conseguiu ouvir claramente a voz masculina que ordenou:

— Largue a moça, agora, ou o mataremos aqui mesmo.

— Isso é assunto da Inquisição. – rosnou Aaron, apertando com mais força o corpo da cigana, que gemeu de dor e se debateu inutilmente. Afinal, que resistência poderia oferecer contra um homem que por anos tocara os sinos de Notre-Dame?

— Apresente a ordem oficial, então – um segundo de silêncio – se não a tem, tomaremos as providências da lei.

De repente Esmeralda viu-se jogada no chão, enquanto Aaron lutava contra os homens que o tolhiam. Derrubou três, mas repentinamente teve uma espada apontada em seu pescoço; ainda tentando se levantar, embaraçada às próprias saias, a cigana ergueu o rosto e viu quem detivera afinal seu atacante: ninguém mais, ninguém menos do que o Capitão Phoebus! Sob a mira da arma, o gigante Sombra parou de lutar e seus pés e mãos foram presos com correntes. Estas, por sua vez, foram amarradas à sela de um cavalo, e Phoeubus ordenou:

— Levem-no à praça da cidade. – e enquanto seus comandados escoltavam o prisioneiro, que fuzilou a cigana com o olhar, o oficial se aproximou da moça e estendeu a mão – você está bem... Esmeralda? – o fato de ele saber seu nome a surpreendeu tanto quanto a gentileza que lhe era dirigida:

— Capitão... Como sabe meu nome?

— Acho que não conseguiria esquecê-lo, mesmo se tentasse, mademoiselle. – ele lhe beijou a mão – não esqueceria o nome de quem dançou tão magnificamente, tampouco é difícil lembrar-se do nome daquela que possui duas joias preciosas em lugar dos olhos. – a garota corou intensamente à luz do alvorecer, e Phoebus a achou ainda mais adorável e encantadora por isso.

— Obrigada por me ajudar.

— Sou o capitão da guarda, encarregado da segurança dos cidadãos... E cidadãs. – ele a fitou com um olhar penetrante, como se a despisse com os olhos, claramente desejando-a, mas sem fazer um movimento rude sequer – permita-me lhe acompanhar às portas da cidade, onde vivem os ciganos, senhorita. – o oficial estendeu a mão, mas ela hesitou antes de aceitar.

— Não irei para as portas da cidade, monsieur – disse, enfim – quero saber o que ocorrerá com o homem que me atacou.

— Ele será punido, esteja certa disso. – assegurou Phoebus, deslizando a mão pelo braço de Esmeralda até lhe tocar o ombro – mas não precisa estar lá para assistir. Deixe-me acompanha-la até sua casa: garanto que posso ser uma companhia agradável.

Ela deu um sorriso gentil, mas se esquivou às mãos do capitão:

— Eu conheço homens como o senhor, capitão. É gentil, educado e galante, mas não sou como as moças às quais está acostumado. Não sou dama que aceite a corte de outro que não seja meu noivo.

— Tem um noivo, então?

— Não – ela meneou a cabeça, fazendo os fios negros balançarem ao sabor da brisa suave – mas um dia terei, e somente ele irá me cortejar.

O capitão compreendeu as palavras da cigana, e isso o alegrou: ela era pura, então? Isso tornava a conquista muito mais especial! Tudo bem, ele podia esperar. Afinal, que prazer havia nas vitórias fáceis? Muito melhor seria conquistar aos poucos a linda dançarina, com mimos eventuais e palavras gentis; as inocentes eram muitos mais deliciosas de se cativar.

— Então, peço perdão pelo atrevimento, senhorita. – ele tornou a lhe beijar a mão – mas seja cuidadosa. As ruas estão cheias de pessoas mal-intencionadas.

— Serei cuidadosa, Monsieur – afirmou ela, retirando a mão da dele lentamente; ah, aqueles dedos eram tão quentes e seu toque, tão delicioso! Apesar da aspereza de uma pele calejada pela espada, era um toque gentil e firme, e ela considerou que a mulher que tivesse aquele homem por marido seria afortunada. Ah, sim, pois ela via a aliança de casamento na mão dele, e sabia que, para Phoebus, ela significava apenas outra conquista. Mas ele jamais a assumiria e, se viessem a ter um relacionamento, não tardaria a abandoná-la. – Obrigada pelo socorro.

— Foi um prazer, Esmeralda. – ele executou uma reverência elegante e, mesmo sabendo que tudo se tratava de uma farsa que ele certamente já encenara com várias outras moças, a cigana suspirou. Não era todo dia que a tratavam com tanta deferência!

O soldado montou em seu cavalo e desapareceu pelas ruas; após alguns minutos no mesmo lugar, para ter entre si e Phoebus uma boa distância, ela enveredou por outras esquinas, para ir à praça da cidade. Queria saber o que aconteceria a Aaron mas, acima de tudo, queria entender por que ele a atacara! Havia raiva dentro de si, sim, mas nem de longe tão grande quanto a surpresa, perplexidade e confusão. Pois ela não fizera absolutamente nada que justificasse À Sombra persegui-la... Ainda mais depois do Festival! Ou teria sido aquela aproximação gentil apenas um engodo? Somente a ideia de tal possibilidade a desgostava e entristecia... Será que Miro estaria certo? Estaria ela apaixonada por um dos piores inquisidores de seu tempo, que inclusive tentara raptá-la?!

*

Aaron foi arrastado sem piedade pelas ruas, tropeçando várias vezes quando os soldados faziam os cavalos irem mais depressa do que uma pessoa poderia acompanhar. Em sua mente ele amaldiçoava e praguejava contra a cigana, contra as pessoas, contra si mesmo. Devia ter matado de uma vez a bruxa, em vez de lhe dar a oportunidade de pedir socorro! Mas como ele poderia imaginar que haveria guardas por perto? A hora da troca da guarda NUNCA era devidamente patrulhada!

Esses pensamentos desapareceram de sua cabeça quando tropeçou de novo e, indo ao chão, foi arrastado por alguns metros antes de o guarda fazer o cavalo parar e desmontar; quando seu algoz se aproximou, A Sombra se ergueu com velocidade e agarrou o pescoço do militar, rosnando:

— Você assinou sua sentença de morte, soldado. Sou o assistente do juiz eclesiástico Claudius Frollo! – suas palavras foram silenciadas por uma pancada na parte posterior dos joelhos, que o fez cair outra vez, visto que suas pernas já estavam trêmulas pela corrida desenfreada a que o haviam forçado. Vindo de trás de si, a voz do capitão se fez ouvir:

— Homem de Frollo ou não, você atacou uma mulher sem ter recebido ordens para isso. Vai responder como se fosse qualquer outro criminoso; afinal, você não é sacerdote, é? – e fez Aaron erguer a cabeça, pondo a própria espada no queixo dele – e eu duvido muito de que o juiz vá intervir. Seria muito ruim para a imagem dele ser associado a um criminoso qualquer. – então torceu o rosto numa expressão de divertida crueldade – mas posso tornar o caminho até a praça mais confortável para você: é claro que esta máscara está atrapalhando sua visão.

Num gesto rápido, o oficial arrancou a máscara do organista, que baixou o rosto para escondê-lo, sem sucesso.

— Um dia, capitão, você irá me pagar muito caro por isso.

— Argh, você não precisa fazer ameaças para meter medo, criatura! As crianças que o virem na praça terão muitos pesadelos, hoje. – escarneceu Phoebus. Já vira muitas vezes aquele homem, com o qual antipatizava tanto quanto com Frollo, e todos os homens do Santo Ofício. Para ele a inquisição era apenas uma tentativa da Igreja de tomar o poder de reis e nobres para fazer o povo seguir as regras do clero, e não, as do soberano. Desprezava e detestava toda aquela corja, e o homem à sua frente não era exceção.

Embainhando a espada novamente, o capitão ordenou:

— Em marcha!

As cordas que prendiam o inquisidor foram puxadas, e ele teve de se erguer e andar para não ser arrastado outra vez. Seu corpo doía, sua alma doía: estava humilhado, indefeso e totalmente à mercê daquele militar imbecil! Ele só podia orar para que seu padrinho tomasse ciência do que se passava e o livrasse da exposição pública!

À distância, escondida, Esmeralda seguia o grupo: sentia tanta pena de Aaron! Por Deus, aquilo não era modo de se tratar alguém! Sim, ele tentara sequestra-la, e devia odiá-lo por isso, mas... Ela pensava que um dia poderia estar no lugar daquele homem – bastaria que a flagrassem em um furto ou coisa similar – e compadecia-se dele como gostaria que se compadecessem dela! Mas não tinha coragem de intervir... Não com Phoebus ali... E a culpa a acometia, pois haviam sido seus gritos a trazê-los até Aaron... Ah, precisava fazer algo! Mas o quê?!

*

Depois de uma passagem extremamente rápida pelo tribunal, onde não houvera sequer um julgamento, mas apenas a sentença, o organista foi condenado a passar um dia inteiro exposto na praça principal da cidade.

O caminho até a praça foi longo e sofrido; ao chegarem lá, o gigante foi arrastado até a berlinda – aquele cavalete onde a pessoa tinha a cabeça e pulsos presos entre as duas abas de madeira. A altura era feita de modo a obrigar o aprisionado a se curvar – mais ainda aquele homem tão alto! – e o deixava vulnerável. Era uma punição considerada “leve”, mas a humilhação era enorme, e a população tinha o direito de fazer o que bem entendesse com a pessoa exposta, conquanto as ações não causassem a morte.

Aaron foi preso no aparelho, não obstante sua luta furiosa, e um dos soldados anunciou à população que começava a passar:

— Este homem está exposto por atacar uma mulher nas ruas. – e dirigiu-se ao cativo – considere-se afortunado por ter atacado uma cigana. Se houvesse agredido uma mulher honesta, seria levado a júri e condenado à morte na roda. – em seguida, tomou de um açoite com pontas de ferro e rasgou a camisa de Aaron, expondo suas costas. Estava erguendo o açoite para desferir o primeiro golpe, quando uma voz feminina se fez ouvir por entre as vaias dos transeuntes:

— Não! – aquilo o fez parar por um momento, e então uma moça se destacou da população, chegando ao patíbulo e subindo os degraus. Aaron abriu os olhos e encarou a moça: tratava-se de Esmeralda! Mas o que ela estava fazendo?! Ele tentara sequestra-la, machucara-a... Por que ela o defendia?! – Fui eu quem gritou por ajuda! Ele... Não fez nada demais! Por favor, não o suplicie!

O homem designado para supliciar Aaron hesitou, mas então a voz de outro soldado, que participara da captura do organista, interrompeu a jovem:

— Muito nobre de sua parte defender este desordeiro, senhorita, mas a sentença foi dada, e será cumprida. Agora, por favor, afaste-se.

Em vez de fazer o que lhe fora dito, a cigana se debruçou sobre as costas nuas de Aaron, cujas emoções rodopiavam num turbilhão: a bruxa, a feiticeira que ele estava disposto a julgar e matar, o protegia com o próprio corpo! Ele sentia o calor do tronco pequeno contra suas costas, até que arrancaram a jovem à força dali, quase derrubando-a do patíbulo. Ao ser jogada com força no chão, ela encarou fixamente os olhos de Aaron, e os dela estavam cheios de lágrimas quando, quase sem voz, murmurou:

— Perdoe-me.

Ele pensou em dizer algo mas, quando ia se dirigir à menina, o açoite desceu sobre suas costas, e ele gemeu alto. Não era como o autoflagelamento que cometia, pois aquele açoite tinha pontas de metal, e cada golpe abria suas costas em cortes profundos! Duas, dez, trinta vezes! E enquanto isso acontecia, Esmeralda ficou ali, caída ao lado do supliciado. Ao fim daquilo, Aaron não conseguia se manter em pé, mas a berlinda o impedia de se ajoelhar ou ficar em pé direito, mantendo-o curvado naquela posição terrível. Os soldados se afastaram e apenas duas sentinelas permaneceram a vigiar o lugar. Agora viria a pior parte: as pedras e alimentos podres atirados pela multidão, os insultos – que já permeavam o ar – e as zombarias. Contra estas Esmeralda não podia proteger Aaron, que era chamado dos mais terríveis nomes, de cuja deformidade escarneciam... Mas podia protege-lo das pedras. E quando o protegeu com o próprio corpo, as vaias e protestos se voltaram contra ela:

— Desça, vadia! Cigana imunda! Bruxa! – ela não retrucou, não respondeu; apenas permaneceu no lugar, abaixada de modo que as pedras e outros objeto não pudessem acertar o rosto de Aaron. O corpanzil do homem, porém, ela não tinha como ocultar, e foi juntos que suportaram a maldade das pessoas. Uma pedra acertou o ombro da garota, outra se chocou contra sua cabeça, outra ainda abriu um corte em seu braço... Mas ela se manteve firme.

Depois de quase uma hora, o povo perdeu o interesse e retomou as próprias atividades; sangrando, cansada, a cigana se deixou escorregar para o chão, e neste momento aquele que a atacara perguntou:

— Por que está fazendo isso? Eu a iria levar para o Santo Ofício!

— Porque ninguém merece passar por isso. Estou fazendo por você o que eu queria que fizessem por mim. – respondeu ela, limpando o sangue do próprio rosto.

— Saia daqui! Não quero dever favores a uma bruxa.

— Não estou fazendo isso para que me deva algo. – respondeu ela – sinta-se livre para me prender e torturar, se achar que mereço. Mas agora, eu vou fazer o que meu coração diz ser o certo.

As palavras dela o silenciaram: não, ela não estava fingindo. Se estivesse tentando enfeitiça-lo, para que se postar ali, arriscando mesmo a própria vida – a pedrada na cabeça que a jovem recebera poderia bem ter sido fatal – para protege-lo? Ela não precisava fazer aquilo! Não tinha motivos para fazê-lo! Mas, ainda assim, ela não se moveu um milímetro que fosse, e erguia-se quando um grupo se aproximava com más intenções.

Longas horas se passaram, e o sol de verão tornou-se inclemente: bolhas começaram a surgir no dorso muito alvo de Aaron mas, quando Esmeralda quis pôr seu xale sobre as costas do homem, para protege-lo, foi impedida; então desceu até o poço, pouco distante do patíbulo, e recolheu água. Voltou para junto do prisioneiro e lhe deu de beber; com o que restou do líquido, umedeceu as costas em carne-viva, sentindo seu coração doer ao ver os machucados... O sofrimento alheio nunca lhe trazia satisfação!

Estava terminando de refrescar as costas queimadas do homem quando uma voz masculina ecoou pelo adro:

— Cigana! Afaste-se dele imediatamente! – ela se virou, e viu tratar-se do juiz eclesiástico Frollo. Com asco pelo homem, respondeu-lhe:

— Descerei, meritíssimo, quando este homem for solto!

— Continue a enfeitiça-lo, e a lançarei nos porões do palácio da justiça!

— A lei é bem clara quando diz que aos criminosos expostos na berlinda pode ser feito o que os passantes desejarem. E minha vontade é ficar exatamente onde estou, e protege-lo do mal que lhe fariam!

Cheio de ódio, Frollo subiu ao patíbulo e confrontou a cigana que, contudo, não se moveu um milímetro, encarando o sacerdote alto com muita determinação. Mesmo confuso pela insolação, dor e cansaço, Aaron reconheceu a oz de seu padrinho, e suplicou:

— Mestre, por favor... Preciso de sua ajuda. – Frollo, porém, olhou para o afilhado e, mesmo com enorme culpa por causar tal dor no moço, respondeu:

— Causou isso a si mesmo, Quasímodo. Agora, trate de suportar a justa penitência para todos os seus pecados. – e se voltou para Esmeralda – quanto a você, bruxa, vai descer agora deste patíbulo e desaparecer!

— Obrigue-me. – respondeu ela, totalmente desprovida de bom-senso. O tapa de Claudius em seu rosto ecoou por todo o adro, e a voz de Aaron se fez ouvir, tão raivosa quanto podia estar a de um homem em suas condições:

— Não toque nela!

— Então, continua enfeitiçado pela bruxa? – perguntou o idoso – talvez as horas restantes na berlinda o lembrem de a quem deve sua lealdade, menino. – sem piedade, ele empurrou Esmeralda escadas abaixo, fazendo-a rolar os degraus, e disse aos vigias – não deixem a mulher cigana subir, novamente. Se ela insistir, matem.

Ante aquelas palavras, a jovem compreendeu que nada mais poderia fazer, e assistiu com ódio enquanto a figura alta e esguia do juiz deixava a praça. Homem maldito! Como podia ser tão cruel com aquele que lhe era mais fiel do que um cão a seu mestre?!

Frollo, por sua vez, sentia seu corpo incendiar: agora ela não havia apenas dançado de modo sensual e selvagem, mas o havia confrontado diretamente! Havia destilado puro veneno em suas palavras, e os olhos da cor do mar possuíam uma chama... Um fogo intenso, que brilhava nos olhos das bruxas, das estrangeiras, das ciganas. Uma labareda que, a cada vez em que via a jovem, só fazia crescer dentro do peito do próprio padre... Vira a respiração entrecortada, e desejara roubar os lábios entreabertos até que o ar faltasse completamente à moça... Vira o sangue seco sobre seu belo rosto, e desejou cortar-lhe a garganta, fazendo todo o sangue do corpo esguio derramar-se sobre o chão. Viu as formas magníficas, e desejou ardentemente senti-las em suas mãos, estreitar o pequeno corpo em seus braços até aqueles ossos de passarinho se partirem. Desejava possuí-la completamente, consumi-la e, enfim, aniquilá-la! Sim... Aquele seria o único modo de apagar as chamas do feitiço. Esmeralda padeceria sob o jugo de todo o seu ódio e amor, nem que fosse seu último ato!

Ao longo de todo o dia a cigana ficou ao lado do inquisidor, aos pés do patíbulo; foi apenas quando o Sol sumia no horizonte que as sentinelas libertaram o homem ferido que, de tão esgotado, não conseguia se erguer. Iam chutá-lo para fora do patíbulo quando Esmeralda se abaixou ao lado de Aaron, exclamando:

— Não! – e passou um braço forte por seus ombros, ajudando-o a se erguer – vamos, Aaron, eu não consigo carregar você! Ajude-me!

Com as forças que lhe restavam – confuso demais pela insolação e desidratação – ele se levantou, metade apoiado em Esmeralda, metade sobre as próprias pernas, e assim caminharam lentamente até a Catedral de Notre-Dame. No caminho até lá um passante qualquer, mais piedoso que os demais, ajudou a jovem a apoiar o enorme homem de rosto deformado.

Quando adentraram a construção de pedra, o arcediago se horrorizou ao ver a figura de Aaron, acompanhado da cigana que também estava machucada pelas pedras lançadas. Antes que dissesse qualquer coisa, porém, Esmeralda declarou:

— Clamo por santuário para mim e para este homem, padre.

Lucius, que conhecia Aaron desde menino e tinha por ele grande afeição, aproximou-se rapidamente e ordenou a um seminarista que o acompanhava:

— Chame o sineiro Grigoire. Precisam levar este menino lá para cima.

Não tardou para que o sineiro – um homem jovem, de vinte e dois anos, quase tão alto quanto Aaron, mas menos forte e de cabelos claros – descesse até a nave. De imediato passou um braço do amigo por seus ombros e, com a força que desenvolvera tocando os sinos, praticamente carregou o outro escadas acima, acompanhado de perto por Esmeralda.

Levaram um inconsciente Aaron até o campanário, e o deitaram na cama; confuso, Grigoire perguntou:

— O que houve com ele?

— Foi açoitado e tem queimaduras de Sol graves... Precisamos tratar dele, ou pode morrer!

— Melhor chamar um médico... – Esmeralda o cortou:

— Nem pensar! Um médico iria fazer uma sangria, e isso é o que ele menos precisa, agora. – ela fitou as costas em carne-viva... Não havia tido tempo de aprender tudo sobre as artes de curar com a mãe, mas a vida lhe ensinara muitas coisas... – preciso de panos limpos, e água. Vamos limpar os cortes e umedecer a pele.

Mais que depressa, o jovem trouxe o que Esmeralda solicitara e, juntos, dedicaram-se a limpar os ferimentos do organista. Na cabeça do sineiro passava a dúvida quanto a se aquilo não seria um pecado – não diziam que curar sem ter estudado era obra de feitiçaria? – mas entendia que a vida do amigo dependia, agora, do que a cigana pudesse fazer. Pois era verdade que um médico pouco ou nada ajudaria Aaron...

Quando terminaram o serviço, ela falou:

— termine de banhá-lo. Vou descer e volto já. – e se lançou em direção às escadas sem dar ao moço tempo de retrucar. Foi até as portas da Catedral, onde algum mato crescia: sálvia, alecrim e... Droga, ela não tinha bálsamo, nem carvalho ou alfazema! Teria de se virar com alecrim e sálvia, mesmo.

Colheu um punhado das folhas, escondeu-as nas saias e voltou para o campanário; Aaron estava delirando – provavelmente febre alta – já vestido com roupas limpas.

— Temos de mantê-lo molhado, para abaixar a febre – disse a moça, começando a pegar água na bilha com a concha e derramá-la sobre o corpo de Aaron – vou esmagar alecrim com um pouco de sálvia e passar nos machucados.

— Isso é feitiçaria!

— Não! – exclamou ela, sentindo um mito de medo e revolta – eu jamais compactuaria com feitiçaria! Isso são os únicos remédios de que dispomos entre os pobres. Não temos médicos, e aprendemos a encontrar outras formas de nos curar. Agora, eu realmente preciso que me ajude, ou ele vai adoecer e morrer!

Mesmo a contragosto, o sineiro fez tudo o que a cigana ordenava, e não tentou impedi-la quando, após esmagar as ervas com água dentro de um pote de madeira, ela espalhou a pasta líquida nas costas do inquisidor.

— Acho que será o bastante... – sussurrou, mais para si mesma do que para Ferrér, que perguntou:

— Há algo mais que eu possa fazer?

— Ah, se eu tivesse beladona ou casca de espinheira-santa... Mas não temos, e não creio que você saiba identificar as plantas nas ruas, sabe?

— Não, senhorita.

— Então, acho que não há mais nada a fazer, até amanhã. – foi só então que ela percebeu o quão dolorida e cansada estava; pegou um pano ainda limpo e o molhou, limpando o sangue seco da própria pele, dando alguns gemidos quando o tecido tocava seus ferimentos. Grigoire  assistia àquilo, fascinado pela jovem: soubera o que ela fizera, e isso o fazia admirá-la profundamente. Porém, também via o quão exausta ela estava, e declarou:

— Parece muito cansada e machucada, mademoiselle... Pode dormir em meu quarto, se quiser, e limpar melhor esses cortes e esfolados. Eu vou passar a noite aqui, com Aaron. A porta tem chave... Se isso a fizer se sentir mais segura, pode trancar.

Ela anuiu, mas ainda estava receosa de deixar Aaron sozinha:

— Vai me chamar se ele tiver algum problema?

— Até mesmo se a respiração se alterar.

— Está bem... – ela esfregou os braços doloridos, e sentiu o sono pesar nas pálpebras – acorde-me cedo, por favor. Ou se ficar muito cansado.

— Como desejar, senhorita. Agora, vá descansar.

— Sim... Obrigada, Grigoire.

O sineiro conduziu a jovem até seu quarto – um aposento pequeno que só tinha um catre simples e um baú de pertences – e a deixou sozinha. Rapidamente ela limpou o sangue seco da própria pele e, exausta como estava, deixou-se cair no catre; havia adormecido antes mesmo de sua cabeça pousar no travesseiro.


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Notas finais do capítulo

E então? Foram várias emoções ao longo do capítulo: o que acharam? Aaron está meio que sem condições de pensar, no momento, mas acho que tudo isso serviu para mudar um pouquinho o modo como ele enxerga o mundo, não é? Ou pelo menos como ele enxerga Esmeralda e Frollo, com certeza!
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