Um Cãoto escrita por Nathalia Schmitt


Capítulo 5
Capítulo V




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Verão

Depois que pai e mãe arrumaram tudo a casa ficou muito aconchegante e era muito espaçosa também! Eu conseguia correr o tempo todo da cozinha pra sala e da sala pro pátio. Tínhamos lareira, piscina - de plástico, mãe lembrava: nada de morder ou ficaríamos sem - um FRISBEE! Melhor verão da minha vida! Apesar de eu nunca conseguir pegar aquele freesbie já que sempre acertavam a minha cara. Ou a minha cara acertava o freesbie. Mas era tipo: PONTO DE ENCONTRO! ATRAÇÃO FATAL! Essas coisas. Ouvi o pai falando enquanto ria de mim...

Mãe cuidava das plantinhas, moitinhas e outras coisas no pátio, então fiquei responsável por protegê-las de esquilos, gambás e essas coisas peludas todas. Afinal, um bom cão é um guardião! Pai que disse.

Mãe estava me dando menos daquela ração também, Luz gostava mais do patê, então ela ficou só na ração úmida enlatada. Ah! Eu estava ganhando ossos crus enormes pra roer e enterrar também, alguns vinham com uns pedaços de carne, só de pensar eu já babo! Muito melhor que aqueles de couro! Sempre passava mal com aqueles e o formato não era muito prático também.

E agora pai e mãe não viajavam mais, talvez porque a casa fosse mais confortável que aquela coisa horrível de chão estranho e água ruim que eles frequentavam - praia o nome! Nada de velha que faz coisas pra gente por papel também. Chama dinheiro! Venho aprendendo muitas palavras novas. 

Outono

Luz parecia muito quieta desde que nos mudamos. Ela não subia mais no arranhador, quando eu tentava conversar ou brincar, ela simplesmente se escondia na toca do arranhador, onde eu não alcanço. Sequer me respondia quando eu latia. Eu acabava me distraindo com outras coisas, mas ela estava cada vez mais recolhida, pai e mãe até chamaram o moço do lugar frio, mas ele disse que era normal; que ela levaria um tempo até se adaptar à mudança. 

Perguntei à ela se algo a incomodava, ela disse que queria voltar para o lugar em que cresceu. O moço do lugar frio disse que era porque gatos são assim, ela bufou pra ele e me olhou: "Humanos se acham inteligentes, mas não sabem que gostos de outros animais são tão particulares quanto os próprios indivíduos, alguns gatos dariam uma pata para estar por aqui!". Pelo que entendi, ela queria voltar ao apartamento não por ser o que é - um gato, mas porque estava velha demais pra mudanças repentinas. E eu até entendo. Acho que velho eu só ia querer um bom osso cheio de carne pra roer em frente à lareira, em uma cama gigante - podia até ser um sofá, ou o tal de puff. É, velhice é a época da calmaria.

Na primeira oportunidade, ela saiu correndo do moço do lugar frio e se escondeu, fui atrás e perguntei se ela estava bem e se queria meu osso pra brincar! Luz respondeu que se fosse para mudar, ela iria querer uma velhice diferente. Aquela situação estava longe de ser a ideal para ela.

Deitei e fiquei ali, junto dela e seu descontentamento.

Inverno

Mãe e pai seguiram sua rotina habitual e eu segui a minha. Mantive meu hiato bem preenchido com um grande nada, olhando a janela, cumprimentando outros cachorros de vez em quando, fuçando o lixo, cavando. Até que eu cansei e fui procurar Luz. Ela não estava em cima das coisas, dos armários, do arranhador, ou nas suas tocas costumeiras. Na verdade, ela não estava em lugar nenhum! Concluí que ela não queria ser encontrada e fui pro pátio da frente, deitei próximo à cerca e fiquei ali, tomando um banho de sol esperando anoitecer.

Quando pai e mãe chegaram, cumprimentei os dois como de costume, pulei, lambi, abanei o rabo o máximo que consegui, com todas minhas forças. Pai me levou pra passear, "Mesmo um cão que mora em casa precisa de estímulos para ser psicologicamente saudável" disse o moço do lugar frio. Não é porque alguém faz coisas ruins que você não gosta que esse alguém é necessariamente ruim, pelo visto. Voltamos, tomei minha água e deitei perto da lareira que mãe acendeu enquanto estávamos fora; afinal, estava realmente muito frio!

Não demorou para que nos chamassem - eu e Luz - para comer; mas Luz não apareceu. Pai e mãe procuraram pela casa toda, pelo pátio, procuraram por pontos de fuga como tela roída ou buraco na cerca, buscaram-na na garagem, no carro (parece que alguns gatos ficam presos em carros, rodas, motores, principalmente no inverno porque é quentinho). Fui ajudar a procurar e comecei a farejar! Não que eu seja bom nisso, quer dizer, eu sou melhor nisso que pessoas, mas não sei usar isso muito bem, não fui ensinado sobre isso e nem sou um cão de caça, MAS TENTEI! Acho que mesmo você não sendo bom em algo, tem que dar o seu melhor pra ajudar e, bem, foi o que eu fiz!

Se havia um rastro ali, ele sumiu. Porque simplesmente não havia um "caminho" de odor específico, as coisas dela estavam com o cheiro dela bem característico e forte - principalmente a caixinha de areia! Mas não encontrei nada que caracterizasse um caminho diferente do que ela fazia.

Pai foi procurar na vizinhança.

Eles estavam desesperados, nunca vi mãe tão nervosa. Ela ficou ali na sala, ansiosa, chorando. Tentei ficar por perto, pegar a bolinha, mas sou desastrado; escorreguei no tapete e caí! Ela não riu e nem eu achei graça, mesmo, mas ela simplesmente estava inconsolável. Apoiei minha cabeça no colo dela. Era o que eu podia fazer naquele momento.

Depois de algumas semanas, nada mudou. A vida seguiu, mas mãe e pai estavam preocupados com Luz, esperando que ela voltasse, passavam horas na rua à noite chamando, procurando, deixando potes de comida e água caso ela estivesse por ali. 

Mãe estava destruída. Pai também estava sensível com o desaparecimento de Luz, mas queria tanto alegrar mãe que ofereceu dar-lhe um gatinho novo. Mãe disse que não seria a mesma coisa, que ela queria a Luz. Pai sabia que éramos insubstituíveis, mas também sabia que um filhote novo exigiria mais atenção e ouvi ele naquele troço de colocar no ouvido falando com alguém - acho que com a mãe da mãe - sobre como isso poderia distraí-la até ele encontrar Luz. 

Apareceram algumas pessoas surgindo com gatos parecidos afirmando que eram Luz; pessoas querendo doar desesperadamente seus resgatados, prontas a enganar qualquer pessoa frágil e desamparada que encontrassem pelo caminho, como almas penadas precisando de alguma energia viva para sugar. Mas mãe e pai são muito inteligentes e não caíram nessa lenga-lenga!

Estava me sentindo um inútil, porém. Não era capaz de alegrá-los e nem de compensar a falta que Luz fazia. Também estava triste, mas não poder ajudar é horrível. Então estava decidido! Eu ia ajudar! Ia dar um jeito!

Meus pais estavam jantando quando eu saí para o pátio dos fundos, o último ponto de odor de Luz que encontrei desde seu sumiço. Cavei até minhas patas arderem, até conseguir fazer um buraco grande o suficiente pra eu e meus 28kg passarmos.

Então eu saí.

Era noite e tinha neblina. Aquela imensidão, o infinito, o incerto e o perigo ali fora, me encarando. Estava deixando para trás meus brinquedos, minha cama, minha lareira, meus pais, mas precisava encontrar Luz.

Primavera

Já havia algumas semanas que eu comia do lixo e andava pelo caminho que um trilho de trem fazia. Tentava farejar Luz, mas perdi seu rastro em algum momento.

Decidi seguir o trilho porque é uma forma fácil de achar o caminho de volta. Estou fazendo questão de marcar o caminho todo com bastante xixi!

Às vezes eu parava e chamava por Luz, uivava e esperava resposta, mas recebia no máximo alguns latidos de curiosos muito distantes. Cães fofoqueiros são os piores! Geralmente aqueles pequenos, que têm donos velhinhos.

Quando percebi uma cidade à frente, logo me pareceu simples: Luz é uma gata indoor, criada em casa, sem acesso algum à rua, é claro que ela iria buscar segurança na cidade, com pessoas. Parecia mais fácil simplesmente voltar para casa, mas sabe-se lá o que aconteceu, ela podia ter sido sequestrada no caminho! Corri para chegar o quanto antes àquele aglomerado de prédios, barracos e solidão.


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