Voz escrita por apple pie


Capítulo 3
Capítulo 2: Vulcão inativo


Notas iniciais do capítulo

E demorei um tempão pra postar esse capítulo pelo seguinte motivo:

Eu odeio muito ele.

Tentei reescrever várias vezes, mas no final acabei deixando o capítulo nascer meio defeituoso mesmo. Tudo bem. A gente supera.

Boa leitura ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/707167/chapter/3

We were searching for Oz
We were burning cigars
With white plastics tips 'til we saw the sun

— O que você tá lendo?

Levantei os olhos do livro em meu colo e encarei o amontoado de ossos e carne que era o garoto sentado na minha mesa da biblioteca. Hoje seu cabelo estava molhado, como se ele tivesse acabado de tomar banho ou chuva, eu não saberia dizer. O dia inteiro estivera chuvoso, fazendo Sofia Biddle reclamar por toda a aula que seu cabelo estava armado novamente, sendo que, oh meu Deus, ela ficara três horas alisando-o no dia anterior. Que desperdício, ela dizia, os olhos furiosos.

Um desperdício, de fato.

Era a segunda vez em que Aaron Santoro aparecia ali, na minha mesa, e agora estava me importunando novamente. Eu não estava acostumada a isso, e não sabia o que pensar. Ter a atenção daquele garoto era bom ou ruim? Não sabia dizer.

É verdade, eu passava boa parte do tempo observando pessoas, tentando descobrir seus sentimentos e registrando cada um de seus movimentos. Mas ver não era o mesmo que viver. Eu nunca havia sido tocada por um garoto, ao menos olhada. Nunca troquei um daqueles beijos ardentes descritos nos livros ou simplesmente entrelacei meus dedos com os de alguém. E... amigos? Bem, digamos que ninguém nunca de fato pensou em conversar comigo. Eu era praticamente parte da decoração: sabiam que estava lá, mas não ligavam. E, com o tempo, aprendi a conviver com isso. Mas isso tirou a parte essencial: ser. Ser adolescente, ser uma garota, ser alguém. Quem era eu?

Era uma amadora na única coisa que eu sabia fazer: decifrar pessoas. Eu não sabia nada sobre ninguém, nem sobre mim mesma.

Que fracasso, Binda.

— Crime e Castigo. - disse, enquanto erguia o livro para que ele visse a capa. Uma das coisas que eu aprendera era que não importava por quanto tempo você segurasse o livro na frente de alguém, você sempre teria que dizer o título em voz alta. Pequeno defeito dos outros. Outra característica maravilhosa que eu não tinha - ou talvez tivesse, eu nunca perguntara o que alguém estava lendo. De qualquer modo, abaixei o livro e fingi continuar ler, como se ele não estivesse ali. (A verdade era que eu não conseguiria ler nem se quisesse, a simples presença daquele garoto já tirava toda minha concentração. Maldito.)

Ele sorriu.

— Legal. - Só isso. Eu estava quase surtando ali, e ele apenas se sentou, disse "legal", e agora estava desembrulhando o sanduíche dele como se nada, nada, estivesse acontecendo. Os cachos caramelizados tocavam sua testa e eu só conseguia pensar no quão desajustado ele parecia sentado ali, na mesa do fracasso, no canto da tristeza, Não sabia dizer se ele era bonito ou feio, badboy ou nerd. Só sabia que ele tinha uma reputação, e isso já era o suficiente para que ele não estivesse ali, no canto da biblioteca. - Você já viu aqueles meninos ali atrás? Que clima... - comentou. Seus olhos levantaram-se e ele provavelmente percebeu que eu o estava encarando feito uma idiota, porque começou a rir. Gentis. Seus olhos.

A tremedeira nas pernas começou novamente. Talvez eu devesse procurar um médico.

— Sim. Noah Lisutt e Nicolas Broben estudam juntos todas as terças, quartas e sextas-feiras. - soltei, sem nem ao menos pensar no quão estranho aquilo soaria.

As sobrancelhas de Aaron Santoro se franziram.

— Como você sabe os sobrenomes deles?

— Sei o sobrenome de todo mundo.

Os olhos dele se comprimiram em... o que era aquilo? Não conhecia aquele olhar.

— É mesmo? Bem... Qual é o nome inteiro da bibliotecária?

Desafio. Era isso. Aaron Santoro estava desafiando-me. Mas por quê? Revirei os olhos.

— Nora Hesdin. Meu Deus, está escrito no crachá dela. Você sabe ler, né?

— Mas é claro que eu... - Ele inclinou a cabeça e esticou as mãos por cima da mesa. Encarei-as, insegura. Depois, ele as fechou. - Bem, duvido que você saiba meu nome do meio.

Franzi as sobrancelhas. Aaron Santoro tinha um nome do meio? Eu definitivamente não sabia daquilo. Mas não podia dizer isso a ele. Dobrei minhas pernas e empinei o nariz, tentando imitar a falsa segurança das garotas daquela escola.

— É claro que sei seu nome do meio.

Ele pareceu achar graça.

— É mesmo? E se eu te dissesse que não tenho um nome do meio?

Senti meu rosto esquentar. 

— Já deu! Sai da minha mesa! - falei mais alto que deveria, mas não me importava no momento. 

Aaron Santoro levantou as sobrancelhas e riu como uma criança. Deus, como eu estava irritada. 

— Quero que você me obrigue - ele rebateu. Meus dedos começaram a formigar. Levantei-me, ajeitei o rabo de cavalo e peguei meu lanche, saindo dali. - Ei! Volta aqui, garota da biblioteca. 

Ele segurou meu ombro, o que já foi o suficiente para me paralisar. Minha fúria se dissipou e agora só restava a vergonha. Droga, como eu odiava tudo aquilo. Meu rosto estava queimando, e meus olhos ardiam. Sentia-me uma criança birrenta, mas eu sabia que não poderia ser diferente. Aquele era o meu lugar, onde eu podia ficar em paz, longe das vozes que costumavam rodar em minha cabeça. Mas Aaron Santoro tornava tudo mais difícil.

— Fica aqui.

O pedido dele pareceu-me um tanto obsceno de um modo que eu não poderia explicar. Era como se...

— Não posso ficar aqui. - Suspirei. - Não hoje. Além disso, o sinal já vai tocar. Preciso ir para casa.

Os olhos dele brilharam.

— Então vem comigo.

— O quê?

— Ei, garota da biblioteca, confie em mim. Você vai gostar. - Ele segurou meu pulso, e não recuei. Aaron Santoro tinha essa coisa. Você simplesmente não conseguia dizer não a ele. E, por alguma razão, eu não queria negar.

+ + +

Desviei de um skatista, tentando não ser atropelada. Acabei trombando em Aaron Santoro, e ele, como sempre, começou a rir da minha cara. Meu Deus, o que era tão engraçado? Ele parecia achar graça de tudo, rindo tempo todo feito uma criança. Era irritante. Principalmente porque isso dava a ele um ar de garoto enquanto seu rosto todo se enrugava para rir, e isso não poderia me incomodar mais. Por que pessoas tinham de ser tão... únicas? Por mais que eu me odiasse por isso, tudo o que Aaron Santoro fazia me encantava.

Depois de finalmente sairmos - ou fugirmos - da escola, passei o resto do trajeto de carro perguntando a ele para onde íamos. Como era de se esperar, Aaron Santoro me ignorara deliberadamente, fazendo perguntas sobre mim no lugar das minhas. Em menos de meia hora, ele já sabia o nome de minha irmã, no que meu pai trabalhava e a minha cor favorita. Quando finalmente chegamos, minha garganta estava seca de tanto falar, e eu me sentia ligeiramente tonta. Não estava acostumada a receber tanta atenção, e Aaron Santoro parecia interessado até demais na minha vida.

Estávamos num parque qualquer, o que era estranho. O tempo ainda estava chuvoso e a grama estava encharcada. O único local seco - e lotado - era a pista de skate parcialmente coberta, por onde andávamos agora.

— O que você faz no fim de semana?

— Nesse fim de semana? Você está me chamando pra sair ou o quê? - Eu não planejava dizer isso em voz alta. Assim que as palavras saíram de minha boca, senti meu rosto esquentar. Idiota.

— Hã... - Até ele parecia sem jeito. - Estava falando sobre todos os finais de semana. Mas... se você quiser sair nesse, tudo bem também. Seria legal.

— Certo, eu geralmente leio e ajudo minha mãe com o jardim. Ah, e cuido do Bigby. - Ignorei seu convite. Estava constrangida demais.

— Quem é Bigby? - Ele também fingiu não notar o quão fortemente eu estava tentando me esquivar dele.

— Minha tartaruga.

— Tartarugo.

— Quê?

— É um menino. Logo, é um tartarugo.

— Não é um menino, é uma tartaruga macho. Pare de tentar humanizar os animais.

Ele levantou as sobrancelhas.

— Mas humanos são animais.

Balancei a cabeça, impaciente.

— Não, não vou discutir isso com você, Aaron Santoro. Se quer voltar para a discussão impossível podemos chegar ao assunto "a galinha ou o ovo", ou se Deus existe ou não, ou se o certo é bolacha ou biscoito. Mas quando for discutir sobre isso, me avise que sairei correndo.

Aaron Santoro riu novamente. A risada dele era clara e parecia preencher tudo ao meu redor. Merda.

— Ok, você venceu, garota da biblioteca que tem um tartarugo. Por que você fica me chamando pelo nome todo? Pode me chamar de Aaron, sabe disso, não é?

— Por que você fica me perguntando coisas o tempo todo?

— Por que você fica ignorando minhas perguntas?

Dei um gritinho de frustração com a boca fechada. Ele estava me deixando louca. Bati os pés no chão nervosamente.

— Aaron Sant... Aaron.

Ele riu. De novo.

— Sim.

— Você está fazendo todas essas perguntas sobre mim para não falarmos sobre você.

Ele piscou, e seu sorriso pareceu morrer por um segundo. Não gostei. Enquanto sorria, Aaron Santoro me trazia segurança. Sem seu sorriso, éramos apenas eu e o garoto que invadiu meu espaço. Mas ele não era seguro. Não poderia ser.

— Não tenho nada para falar sobre mim.

— Nada a dizer? Você é uma infinidade mais interessante que eu. Quero dizer... olhe para si mesmo. É incrível. - No momento em que disse aquelas palavras, corei. Eu continuava falando coisas sem pensar.

Em compensação, o sorriso dele voltou, apesar de mais suave que os anteriores.

— Você me acha incrível?

— Não sei. Não conheço você.

O sorriso dele apenas aumentou, e eu realmente não estava mais entendendo o que acontecia. Era tudo tão estranho com ele. Éramos amigos? Eu o conhecia? Ele me conhecia? Aquilo tudo só parecia um desastre prestes a acontecer. Toda a faminha daquele garoto, todo o meu fascínio exagerado. Estava exausta. E o que poderia acontecer? Eu era tão... sozinha. Por que não poderíamos ser amigos? Droga, eu estava tão cansada de minha própria prisão, só para variar.

— Vamos, garota da biblioteca, vamos deslizar por aí.

+ + +

— Olhe pra cá, Binda!

Observei Aaron Santoro deslizar facilmente com seus patins, dando uma volta inteira em volta de mim. Durante todo o giro, concentrei-me em não cair de meus próprios patins, mesmo estando parada. Minhas pernas tremiam tanto que eu mal conseguia me manter em pé. Já Aaron parecia bem confortável com seus patins enquanto ia de um lado para o outro. Depois de mais algumas voltas, ele veio até mim e abriu um daqueles sorrisos. Puxou minha mão, fazendo meus pés vacilarem. Eu estava escorregando naquelas malditas rodinhas, pisoteando o chão inutilmente para não cair.

Caí.

Bati minhas costas e cotovelos no chão, fazendo um barulhão e atraindo a atenção de várias pessoas. Soltei um lamento silencioso e tentei me levantar com um pouquinho de dignidade. Meus braços ardiam e eu estava com um pouquinho de dor de cabeça, mas não fiquei muito tempo incomodada. Há quanto tempo eu não ralava meus cotovelos desse modo? Há quanto tempo eu estava longe disso tudo, da adrenalina, das brincadeiras de criança? Quando isso se perdera em mim? Não saberia dizer. Esses tempos pareciam ter acabado. Mas deveriam?

— Você está bem? - Aaron perguntou com uma cara ligeiramente culpada, meio contida, como se esperasse algo.

— Tudo bem. - Eu sorri e esfreguei os braços.

Ele ficou me encarando por um tempo, com a mesma expressão contida. Sem entender, soltei uma risada leve, sem graça. Era tudo tão desconfortável.

Não sei dizer quando exatamente Aaron começou a rir também, ou quando minha risada ficou mais alta. Não sei o que mudou, mas nós estávamos rindo, não, gargalhando. Talvez estivéssemos rindo de coisas diferentes, talvez estivéssemos sendo um consolo daquele fracasso um para o outro.  Mas não foi assim que me senti. Eu não ria dele, e ele não ria de mim. Éramos apenas... nós. Eu não conseguia me livrar dessa impressão de que estávamos rindo juntos.

Um grupo de amigos estava sentado com duas caixas de som. Uma música do Fall Out Boy estava tocando. Tentei me lembrar da letra.

— Garota da biblioteca... - ele disse, em meio às risadas. - Você é péssima com patins nos pés.

— Bom, suponho que eu seja péssima com qualquer coisa nos pés - Mas eu continuava rindo.

— Ei, isso não é verdade. Aliás, você pode ser tão maravilhosa quanto eu nos patins se confiar em mim.

— Quanta modéstia.

Ele parou de rir, mas, de algum modo, ele ainda parecia sorrir. Aaron Santoro realmente era uma criatura fascinante. Ele inclinou o corpo para frente e estendeu a mão, como se estivesse me convidando para dançar. De certo modo, estava. Deu meia volta, e ficou atrás de mim, com as mãos em meus ombros. Bem devagarinho, ele começou a me empurrar.

No começo, me senti meio idiota. Eu estava simplesmente parada enquanto ele me empurrava por aí. Mas então ele começou a sussurrar instruções no meu ouvido. Pé direito para um lado, pé esquerdo para o outro. Para um lado, para o outro. Mesmo desajeitada e ainda com o apoio de Aaron, passei a andar sozinha. Um pé deslizando ao lado do outro. A pressão dos dedos do garoto em meus ombros. E, de repente, as instruções que ele sussurrava não eram mais instruções. Era música. Ele cantava de um jeito desafinado a música que estava tocando, bem baixinho, no meu ouvido.

 When Rome's in ruins, we are the lions  — começou. - Free of the coliseums... A gente bem que podia se juntar à eles, né? - Apontou para o grupo reunido ao redor das caixas de som. Duas meninas se agarravam e três meninos jogavam cartas.

Ri.

— Tenho a impressão de que eles não querem nossa companhia. - Quase tropecei. Ele apertou meus ombros.

We're the beginning of the end... Você conhece essa?

— Conheço, mas... Aaron, tem gente olhando. - Será que ele não ia parar de cantar? Eu estava ligeiramente constrangida.

Ele riu.

And it's all over now before it has begun - Parou de cantar, e fungou na minha nuca. - We've already won.

— Hã...

— Cante comigo, garota da biblioteca. - E me virou, rodopiando de um jeito que me fez ficar enjoada.

— A gente tá em Glee?

Ele me ignorou. Como sempre.

— We are wild - cantou mais alto. Afundei meus dedos em seus ombros, morrendo de vergonha.

Ele parou novamente. Fechei os olhos e apertei os lábios. Aaron Santoro era um pesadelo.

— We are like young volcanoes... — sussurrei.

Ele gargalhou. Olhou pra mim e piscou:

Do you wanna feel a little beautiful, baby? 

Desviei o olhar.

Parecíamos deslizar mais rápido, ou talvez fosse apenas meu coração. E ríamos, cantávamos, patinávamos, que diferença fazia? O mundo pareceu girar mais rápido. Parecíamos fora dos eixos.

Come on, make it easy, say I never mattered - cantarolou Aaron numa falsa voz grossa.

 Run it up the flagpole. - continuei numa voz fina.

We will teach you how to make boys next door...

Out of assholes.

Voltei a olhar para ele, e gargalhamos com a letra da música. Ele estava meio suado, mas ainda sorria e eu podia jurar que eu via meu próprio sorriso ali. Era uma dança desajeitada e desafinada. A música continuava, mas ele voltou a sussurrar em seu próprio ritmo:

We've already won.

Rindo, Aaron Santoro me puxou, e saímos patinando para qualquer lugar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

É. Então.

Perdoa os clichê e não desiste de mim. Por favor? Obrigada por ter lido até aqui ♥

Beijinho beijinho e tchau



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Voz" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.