Admirável Novo Mundo escrita por Joana Guerra


Capítulo 8
Que já nenhum de nós entendeu mais


Notas iniciais do capítulo

Obrigada à Sofia pelo empurrão para escrever. Também é preciso :).Quando se escreve ficção, existe sempre o risco de, de uma forma básica e incorreta, simplesmente se dividirem as personagens entre boas e más. Escrever ficção histórica é respeitar pessoas de carne e osso, com os seus defeitos e as suas virtudes. O que é certo? O que é errado? Depende da perspetiva de cada um :).



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Anna saiu da antecâmara de Maria Leopoldina carregando os últimos lençóis manchados de sangue e, suspirando de cansaço, os depositou no cesto de verga pousado numa esquina.

Uma música transparente e macia de festejo pela boa-nova se espalhava pelo ar, enquanto ecoavam as últimas salvas de canhão, balas felizes disparadas pelo regimento dedicado à Família Real.

A vida continuava. Cada dia se juntava ao seguinte num caudal crescente que impedia o retorno à fonte.

Horas antes, Anna Millman tinha ajudado a que nascesse o terceiro filho de Pedro e Leopoldina.

Naquele dia seis de março de 1821, vinha ao mundo João Carlos Pedro Leopoldo Borromeu de Bragança, sendo recebido por saudações em português, alemão e inglês, os principais idiomas falados pelas muitas pessoas presentes na câmara da princesa.

Naqueles tempos difíceis, a atmosfera na Corte era tão estranha que ninguém saberia dizer se era alegre ou triste.

João Carlos, sendo o primeiro varão sobrevivente do casal de príncipes herdeiros da coroa portuguesa, receberia o título de Príncipe da Beira, até aí pertencente à sua irmã mais velha, Maria da Glória.

A maldição dos Bragança, praga rogada séculos antes contra a Casa Real, havia sido vencida. Ditava a bruxaria que nenhum primogênito varão da família dos Bragança viveria o bastante para chegar ao trono.

 Maria da Glória, a primeira filha de Pedro e Leopoldina tinha nascido saudável, mas a ela se seguiu um irmão sem hipótese de sobrevivência.

Anna ainda se lembrava de, no ano anterior, ter preparado o corpo do pequeno Miguel de Bragança para o seu enterro e um arrepio de medo de que o novo príncipe também não vingasse lhe atravessou o espírito.

A primeira parte dos seus vaticínios estava completa. Tal como a inglesa tinha predito, o povo brasileiro se vinha apaixonando pela princesa austríaca que os tratava com mãe, mas, para os tradicionalistas, Leopoldina era ainda pouco mais do que uma égua premiada que ainda não se tinha revelado boa parideira.

Vencida pelas dores do parto prolongado, Maria Leopoldina dormia pacificamente quando Anna deixou os seus aposentos e se deixou deambular sozinha pelo palácio deserto.

Anna nunca se tinha habituado a chamar de casa o conjunto de prédios com uma fachada tão imponente que faria com que qualquer pessoa que os encarasse do lado de fora já se sentisse impressionada com os seus interiores.

 Não que a dama da princesa culpasse o estilo de vida dos seus amos. De fato, se tratava do contrário. Os príncipes herdeiros e os seus servidores moravam num palácio e se esperava que viessem a governar um império, mas Leopoldina fazia questão de que aquele fosse um verdadeiro lar.

Os objetos, do maior ao mais pequeno, retinham a familiaridade do colecionismo de gerações por vir.

Pelas muitas salas se espalhavam mobílias ricas, cadeiras empalhadas com renda francesa nas costas e um cheiro a fruta doce das compotas que ainda arrefeciam em tigelas de porcelana portuguesa.

Anna não se deixava impressionar facilmente com aqueles pormenores. Tudo o resto ela já tinha visto em diversos palácios da Europa. Os tesouros daquela terra poderiam passar despercebidos a olhos menos bem treinados.

Tal era o caso do chão de madeira de jacarandá de tábuas largas e lisas, num tom escuro de coisa preciosa que vai durar muitas vidas. Era aquele chão que Miss Millman sabia pisar, enquanto dirigia os pés no sentido do berçário real.

A inglesa atravessou o aposento onde dormiam o Príncipe João Carlos e a sua ama-de-leite e entrou no quarto da primogénita de Pedro e Leopoldina.

A sua princesa loira continuava dormindo, desconhecedora das guerras políticas que um dia viriam a decidir a sua vida. Anna se sentou aos pés da cama em silêncio, tentando absorver um pouco daquela inocência que tanto tentava preservar.

Maria da Glória tinha nascido para ser um joguete entre homens, mas, se dependesse de Anna, a sua pequena princesa iria crescer para se tornar numa mulher capaz de ser dona do seu próprio destino e do governo de uma nação.

Se o destino quisesse que Maria viesse a ser rainha, ela saberia utilizar os ensinamentos da inglesa para reinar com sabedoria e com prudência, fazendo valer a lei do amor para mirrar o bicho da tirania.

A educação da pequena princesa era a única função que Miss Millman ainda sentia como válida, já que a relação entre a mãe de Maria da Glória e Anna atravessava dificuldades.

A inglesa manteve a promessa ao ajudar a austríaca a navegar naquele novo mundo e a encontrar o lugar que lhe era devido como a futura rainha daquele país.

Leopoldina era extraordinariamente culta para a sua época, aprendendo depressa a tecer fios que se atravessavam na teia de relações diplomáticas.

Em breve, a esposa de Pedro se tornava autónoma e soltava amarras da dependência do conselho da sua dama de companhia.

A princesa austríaca sonhava com um Brasil independente. Anna sabia que estavam irremediavelmente em lados opostos da mesma barricada.

Contudo, Anna Millman não se sentia derrotada quando se deparava com a amiga rabiscando distraidamente uma nova bandeira que fundia a cor verde da família Bragança e o amarelo ouro da família Habsburgo.

Ela sabia que o Brasil era uma criança pronta para nascer, apesar de ser fruto de uma gestação difícil. Por quanto mais tempo seria possível manter aquela situação de equilíbrio precário?

No ano anterior, a Revolução Liberal do Porto tinha resultado num ultimato sem hipótese de defesa. Se a Família Real não regressasse a Portugal e assumisse o governo omisso desde que os portugueses finalmente tinham conseguido expulsar a junta de governação inglesa, não precisariam de nunca mais voltar a pisar na antiga Metrópole.

 Os portugueses podiam ser brandos em tempos de paz, mas, graças ao seu orgulho empedernido, nunca se deixariam governar por outro que não um monarca português legítimo.

Todos sabiam que estava por semanas, o prazo final para o regresso da Família Real a Portugal.

Dias antes, Anna se tinha voluntariado para ajudar as aias de Carlota Joaquina a embalarem os pertences da Rainha. Não se tratava de um gesto de boa vontade, mas sim uma vingança velada.

A nenhuma das senhoras escapou o traço de satisfação, nem a velocidade acelerada de trabalho de Miss Millman, que demonstravam a pressa da inglesa em se ver livre da espanhola caída em desgraça diante de todos.

Se tratava de um adiós que vinha em boa hora. Pedro, Leopoldina e as crianças permaneceriam no Brasil e o príncipe herdeiro seria nomeado como regente em nome do pai.

Longe da influência nefasta de Carlota Joaquina, Maria Leopoldina teria finalmente a chance de afirmar as suas posições políticas e de influenciar o marido no governo do país.

Se fraturavam uma família e um Império, arriscando a que o conquistado a muito custo caísse através da falha ou fosse roubado por oportunistas.

Anna se inclinou sobre Maria da Glória e a beijou na testa antes de sair do quarto da princesa. A espia inglesa amava aquela criança como se tivesse saído de dentro dela.

Admitindo que a ausência do barulho de música vinda do salão se devia ao fato de todos os outros se terem já recolhido aos quartos, a loira seguiu sem fazer barulho até ao escritório de Pedro e retirou uma cópia da chave do corpete, a fazendo rodar na fechadura bem oleada.

Se trancando por dentro, Anna sabia exatamente qual a papelada que queria consultar. Pedro de Bragança não era uma pessoa muito organizada, mas era uma criatura de hábitos.

Retirando os documentos confidenciais de uma pequena gaveta interna, a inglesa os levou para perto de uma vela acesa e memorizou as linhas precipitadas, se apertando por dentro. O Conde iria ficar lívido quando ela lhe comunicasse o conteúdo das missivas do príncipe português.

Um barulho de vozes abafadas levou a espia a apressadamente recolocar tudo no lugar e se esconder atrás das cortinas de damasco, levantando os pés do chão ao apoiá-los no rodapé proeminente.

Espreitando através de uma falha entre os tecidos, Anna viu um pai e um filho abraçados no isolamento de uma antecâmara.

Eles já não eram o rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e o seu príncipe herdeiro. No calor de um abraço de despedida sentida, eles eram apenas João e Pedro, homens comuns marcados por circunstâncias extraordinárias.

O pai de Pedro estava consciente do que o aguardava na Europa e do peso da responsabilidade que impunha ao filho. Mais do que isso, Dom João sabia que ambos teriam que colocar o dever para com o seu povo acima de desejos pessoais.

Muito provavelmente, nunca mais se encontrariam em pessoa naquela vida. Se tratava da despedida derradeira e a Dom João pouco mais restava do que aconselhar como rei, já que teria que dizer adeus como pai:

— Pedrinho, não dá para nadar contra a corrente que vem forte. Lembra-te disso. Se o Brasil se separar mesmo de Portugal, prefiro que fique nas mãos de alguém que o saiba amar do que nas mãos de algum aventureiro. Deves ser tu a governar este país, meu filho. Mais ninguém. Pelo bem de todos.

Anna deixou escapar uma lágrima silenciosa enquanto os Bragança passavam ao cómodo contíguo, caminhando abraçando o ombro um do outro.

Em breve, seria a vez de Pedro assumir o peso que Dom João vinha carregando sozinho.

O velho rei sabia que ingleses, franceses e holandeses adorariam colocar os dentes sobre as colónias ultramarinas portuguesas e encher o estômago com as suas riquezas.

Dentro da pátria, a revolta era incontida. Ao palácio, chegavam todos os dias relatos de tropas portuguesas revolucionárias e insubordinadas, prestes a fazer estalar um golpe de estado contra o modo de governação dos Bragança.

Entre os poderosos do Rio, a Família Real não encontraria apoio. Muitos nobres e comerciantes da cidade continuavam reclamando as suas propriedades ocupadas por elementos da Corte portuguesa desde a sua chegada, treze anos antes. Começava a ser já o mais longo arrendamento forçado de que alguém tinha memória.

De personalidade pouco ponderada e incapaz de raciocinar antes de agir por impulso, como seria o príncipe regente capaz de lidar com tanta pressão?

Anna sabia que Pedro não seria feliz passando o dia fechado no seu gabinete, analisando pareceres e decretos-lei empilhados na secretária.

Ela conhecia o príncipe rebelde que amava se misturar com as classes baixas do seu povo, comer e beber em tabernas e terminar o dia fazendo correr o seu cavalo pelo espaço aberto antes de encontrar uma cálida mulher que lhe aquecesse a cama.

Em Maria Leopoldina, Pedro tinha encontrado uma boa companheira. Ela era uma hábil caçadora que tinha surpreendido o marido com a sua pontaria em caçadas na planície de Jacarepaguá durante a lua-de-mel.

Meses antes, o estado de gravidez avançada de Leopoldina já não lhe permitia acompanhar as aventuras do marido e tinha sido a sua dama a substituí-la num fim-de-semana de caça nos arredores do Rio.

A presa escolhida pelo príncipe se havia revelado de uma outra espécie. Era suposto que a companhia das infantas dissuadisse Pedro do seu comportamento habitual de conquistador barato, mas as irmãs do príncipe, ainda crianças, depressa cavalgaram para longe e desapareceram de vista, fazendo estalar o chicote nos seus cavalos.

As infantas Isabel Maria e Ana de Jesus eram filhas de reis e não se curvavam perante a ordem pré-estabelecida.

Pedro era um pai extremoso, mas Anna não lhe conseguia perdoar a coleção de amantes e de bastardos, rastros humanos de atentados contra o seu matrimónio que ele arrastava de volta ao palácio e para diante dos olhos de Maria Leopoldina.

Naquela ocasião, a vítima do ataque do charme do príncipe seria a própria inglesa, ainda que Anna Millman não compreendesse como Pedro poderia achar que tinha hipótese de levar para a cama, ou, atendendo ao fogo nos olhos dele, para o chão do mato, a mulher em que a sua esposa legítima mais confiava.

Em outras circunstâncias, ou com outro homem, Anna o teria desafiado para um duelo e teria espetado a sua espada na região nadegueira do ofensor, mas, se tratando de um futuro monarca, a espia inglesa se resolveu por uma corrida a cavalo como hipótese de fuga.

Pedro se alimentava com um bom desafio, mostrando todos os dentes enquanto levava o seu cavalo ao limite na perseguição à dama da sua esposa, mas Anna, experiente amazona, percebeu que o vencedor seria o que melhor conseguisse gerir o esforço do animal e não aquele que se precipitava na ação.

O pobre garanhão premiado de Pedro tombou de joelhos, fazendo rolar o príncipe português que escapou com apenas alguns arranhões, o orgulho ferido e uma lição não aprendida.

Anna se voltou para trás para confirmar que não tinha matado o futuro daquele país, mas não abrandou o passo de corrida, certa de que o marido de Leopoldina permanecia com a ideia fixa de estreitar laços de família.

Música vinda de um vilarejo próximo à floresta a atraiu e a inglesa deixou que o seu cavalo deixasse de estugar o passo, resfolegando enquanto abrandava o ritmo da cavalgada.

 Naquele dia, o povo daquela terra festejava de uma forma simples a padroeira do local.

A procissão já recolhia ao adro da pequena igreja quando a loira conduziu o seu cavalo até a uma fonte e afagou o animal enquanto ele bebia com sofreguidão.

Foi uma surpresa tão grande para Anna, quanto para os habitantes do lugar, ver chegar um marinheiro que se deslocava em terra seca.

Piatã saía magicamente do meio da floresta, conduzindo uma carroça coberta por lona aproveitada de restos de velas e materializando a esperança efémera de uma outra época da vida da inglesa.

Ao longo daqueles três anos, Anna Millman continuava ouvindo atentamente as histórias extrapoladas sobre os feitos do pirata Tiago Ferrão, cuja fama crescia num misto de curiosidade e puro medo.

Conhecedora das conversas privadas da Família Real, Anna se orgulhava em saber que Pedro e Dom João eram admiradores anónimos do estilo do seu pirata.  

Tinha sido notícia por todo o país, o resultado do combate naval acérrimo entre Ferrão e o seu inimigo Barba Azul. Na batalha final, ao finalmente livrar o mundo de um assassino feroz, Tiago se tinha convertido numa espécie de herói nacional, ainda que ninguém o pudesse defender publicamente.

Aquelas gotas de notícias esporádicas alimentavam na inglesa a alegria íntima de saber que conhecia bem aquele homem e a tristeza de não poder partilhar isso com outra pessoa.

A última notícia que Anna tinha recebido sobre Tiago apenas indicava que ele tinha conseguido um novo navio de guerra, rebatizado de Marquesa, e que era nesse veículo que o Capitão e a sua tripulação viajavam ao longo da costa brasileira.

O nome escolhido não deixava margem para dúvidas quanto ao fato de que Ferrão também não se tinha esquecido de Anna, mas ela permanecia incerta se aquela homenagem era uma mensagem, garrafa atirada ao mar, para a atrair de volta a ele.

Piatã se apeou da carroça no centro da praça e destapou o seu conteúdo. Os muitos sacos de farinha à vista, fortuna máxima para muitos dos pobres homens e mulheres que trabalhavam e mal sobreviviam naquele chão, pareciam um maná dos céus num dia de festa.

Em segundos, o índio estava rodeado por toda a população e dividia, com a sapiência da experiência, entre cada família o alimento transportado.

Entre aqueles que recebiam aquela ajuda bem-vinda, quase nenhum sabia o nome completo do seu benfeitor, que escolhia permanecer incógnito, mas todos agradeciam sinceramente aquela ajuda que lhes chegava periodicamente, ainda que trazida por diferentes emissários.

Terminada a missão de alimentar aquela gente, o braço direito de Ferrão viu que teria uma função suplementar ao reencontrar uma Anna Millman brotada do chão, no meio do nada.

Da doce moça que se comoveu em voltar a ver o índio, depois de tanto tempo longe, nasceu a brava mulher que se indignou com a recusa dele em a ajudar a contactar de novo o Capitão dos piratas:

— Não minta na minha cara, Piatã! Eu percebi a verdade há muito tempo. Tiago só rouba os ricos para ter o que dar para os pobres. Eu é que o julguei de uma forma errada.

O jovem homem suspirou, cansado pela viagem longa e por se ver enrolado no meio de um nó que não poderia ser desatado por ele:

— Isso não basta, Anna.

Ela se irritou com a resposta. Não era como se fosse possível a ideia idiota de carregar num botão mágico e falar automaticamente com Ferrão. Numa época em que existiam tão poucos meios de comunicação para um país imenso, poderia levar anos até voltar a ter a oportunidade de chegar perto de Tiago:   

— Por favor! Entregue, pelo menos, um bilhete meu ao Capitão. A nossa história não pode terminar assim.

— Não.

A rejeição perentória de Piatã, desprovida de argumentos, irritou a inglesa, antes mesmo de ela voltar a abrir a boca em descrédito:

— Você não me pode dizer que não, sem sequer me dar uma explicação!

O índio subiu silenciosamente para o lugar do cocheiro e se sentou na carroça, levantando com a mão direita as rédeas escorregadias. De expressão impenetrável, se despediu de Miss Millman com a única meia-verdade que, como paliativo, podia revelar:

— Não posso entregar o bilhete a Tiago para o poupar de dores futuras, mesmo ele não tendo ultrapassado as dores passadas. Você roubou um pedaço dele e não tem como o devolver. É melhor não começar o que não tem como ter um fim.

As palavras de Piatã a vinham acompanhando desde então, fazendo companhia aos sons leves e abafados dos fantasmas da noite que não a deixavam a sós desde criança.

Como uma criminosa, Anna saiu do escritório de Pedro e se refugiou no próprio quarto.

Se trocando rapidamente, na escuridão do cômodo de janelas cerradas, Anna se enfiou na cama e tateou para correr as cortinas dos mosquiteiros.

Muito tempo antes, lhe tinham contado do caso das pobres damas de companhia de Leopoldina que, nas primeiras semanas em solo brasileiro, se esqueciam de correr o mosquiteiro quando se retiravam para o seu leito, para depois acordarem com a pele numa lástima.

Naquela terra, as cortinas de gaze se tinham tornado nas melhores amigas de muitas cútis de porcelana europeia que ansiavam por um sono tranquilo.

Anna Millman esperava apenas os sonhos recalcados, resultantes da força de um desejo incontido. Eram pequenos flashes de delírios que não cabiam na quantificação de uma escala, imagens momentâneas que lhe acudiam à mente quando se encontrava imersa num sono cansado.

Um charuto que se acendia num quarto sem luz. Mãos fortes que a puxavam pelos tornozelos sem que ela sentisse medo. Uma enorme lua cheia num céu estrelado. Uma língua que se colava à sua perna. Um lobo correndo solto pela noite da floresta. Uma cobra que se enroscava no seu pescoço. Uma águia solitária planando pelo céu aberto. Uma barba alheia que a arranhava nas coxas. Ondas batendo com força em rochas desgastadas.

O sonho prosseguia, sempre sem nexo, mas constantemente com aquela presença masculina de traços vincados, modos grosseiros e cheiro a mar e a tudo o que de bom há na vida.

Anna acordou sobressaltada e empapada em suor, ao ouvir alguém batendo à sua porta.

Ela se levantou precipitadamente, preocupada com a possibilidade de serem más notícias sobre uma das crianças, mas se tratava de Rosário que, sem a real noção das horas e julgando que se tratava de uma missiva muito esperada, fazia entregas antes do dia raiar:

— Chegou uma carta do seu noivo, Miss Millman. Achei que a ia querer ler logo.

A criada abriu as janelas para criar claridade e passou à inglesa o envelope que Anna rasgou com o punhal.

À medida que percorria as linhas escritas, a expressão de Anna se alterava. Era instintivo, mas ela não conseguia evitar os músculos contraídos, as narinas dilatadas e os olhos que piscavam para suprimir lágrimas.

 Era o preço que o seu corpo pagava pela traição consciente a Leopoldina e aos pequenos príncipes. A espia inglesa estava traindo a própria família.

— O Mister Johnson ainda vai demorar muito na sua viagem?

Rosário pensava no fato romântico de dois noivos se encontrarem em diferentes continentes, mas, por Anna, Charles podia nunca mais regressar da sua viagem à Europa.

Ele não tinha um lugar a ocupar no mundo dela. Contudo, segundo a carta de Johnson, faltavam sete meses até ele voltar e ela não ter outra hipótese a não ser encarar a realidade.

Depois de Rosário sair, Anna queimou a carta numa pequena vasilha de metal e aí reparou na sujidade na sua mão.

No dorso da mão direita, ela tinha uma mancha quase invisível de sangue que não tinha visto antes, provavelmente transferida pelos lençóis de Leopoldina.

Anna verteu água no lavatório e esfregou a mão com uma escova de cerdas finas, quase desfazendo a pele esmagada, mas não obteve sucesso.

Anna Millman continuava com as mãos manchadas de sangue.


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Notas finais do capítulo

Ferrão não surgiu neste capítulo porque o ator estava ocupado gravando cenas de uma outra novela :P. Esse sonho da Anna? Freud explica ;). Notas históricas: Infelizmente, a maldição dos Bragança se manteve e o príncipe João Carlos faleceu em 1822. D.João VI, Carlota Joaquina e a maior parte dos filhos regressaram a Portugal em abril de 1821. Maria da Glória se tornou mais tarde na Rainha de Portugal, mas, infelizmente, tal como os pais, também faleceu muito jovem. No próximo capítulo: um pequeno salto no tempo até ao início de 1822.P.S.- vai demorar um pouco para sair o próximo capítulo. Beijo para todos! 



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