Admirável Novo Mundo escrita por Joana Guerra


Capítulo 1
Vi as águas os cabos vi as ilhas


Notas iniciais do capítulo

Voltei! Queria começar por dizer que não tenho nada contra o ator que vai interpretar o Joaquim, mas que esse personagem não vai surgir na fic. Quando originalmente li a sinopse tive uma sucessão de flashes com outro ator, par habitual da nossa Anna, mas de outras encarnações. Sou doente, eu sei : ). Tiago Ferrão foi construído sob medida para ele, ou seja, tem uma personalidade muito diferente da do Joaquim. Não conseguiria contar esta história de outro jeito. Mais uma vez vamos entrar na máquina do tempo. Dessa vez começamos em 1817 ;) .



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/706954/chapter/1

A última neve do ano tinha caído muito mais tarde em Viena. Quando já se esperava que as flores de maio estivessem abrindo, sobre o manto branco e fofo que cobria a cidade austríaca caía a derradeira chuva de flocos de gelo.

Poucos vienenses apreciariam o fenómeno tardio já que o frio da noite cerrada prendia a maioria dentro das suas habitações.

Apenas uma boleeira discreta conduzia um veículo despojado de luxos nas imediações do Palácio de Schönbrunn. Ainda que corresse o risco de ser reconhecida por algum dos guardas graduados da escolta pessoal do Imperador, não tinha tempo a perder depois da mensagem recebida.

As lâminas do trenó cortavam o piso, mas os cavalos que o puxavam necessitavam de poucas indicações, sabendo ler facilmente as pequenas e nada hesitantes oscilações musculares da sua dona.

Era mais fácil conseguir ocultar a sua identidade no centro da cidade, entre as tropas governamentais e os ébrios errantes, os únicos ainda na rua. Ela não tinha medo nem de uns, nem de outros. Sabia bem defender-se sozinha.

Numa rua paralela ao ponto de encontro encostou o trenó e amarrou diligentemente os cavalos. Levar os animais até à cocheira seria um risco desnecessário.

A capa comprida de veludo preto com capuz seria medida de precaução bastante para o que vinha fazer.

Naquele ponto da rua a mistura entre lama e flocos derretendo escorria para a grelha de esgoto, escoando num vagar de quem tempo. O cheiro não era agradável.

A misteriosa mulher se viu pensando num ponto óbvio. Independentemente de alguns maus odores, o aroma de Viena superava facilmente o cheiro fétido que sempre envolvia Londres, o primeiro cheiro da sua memória olfativa.

Um pequeno rastro isolado de um par de pegadas delicadas sobre a neve ficava visível à medida que ela avançava saltando de sombra em sombra para não ser detetada pelos guardas de vigia.

Ela se apressou a disfarçar levemente o rastro. Mais uma vez avançava sozinha frente ao desconhecido. Um leve aperto a fez se deter momentaneamente. Ela sabia que quando o sol da manhã batesse sobre a neve derretendo rapidamente se apagariam as evidências de por ali ter passado.

De acordo com as instruções avançou e entrou pelos fundos do palacete, retirando as luvas e deixando escorregar o capuz de veludo ao reconhecer o criado que servia de intermediário entre o ela e o seu superior.

A cifra na última mensagem não deixava dúvidas quanto ao procedimento de segurança, mas ela tinha percebido um certo desleixo na sua escrita que indicava a pressa do seu interlocutor em chegar à fala com ela.

Conduzida através de um labirinto de corredores, se viu entrando através de uma porta secreta numa biblioteca convertida em escritório.

Ele já a aguardava, tomando um cálice de vinho do Porto em frente da lareira bem provida de madeira.

Alto e seco, não perdeu tempo em se fazer ouvir depois de ficarem a sós:

— Falaremos em português para não corrermos riscos desnecessários com criados enxeridos.

— De acordo, caro Conde.

Não lhe seria custoso. Ela tinha aprendido com facilidade a dominar seis idiomas como se fosse uma nativa e tinha o autocontrolo necessário para não se deixar abalar com pedidos imprevisíveis. Apenas uma situação de emotividade pronunciada a fazia se refugiar na língua materna e isso já não acontecia havia anos.

Com uma passagem de olhos pelo cômodo percebeu de imediato que aquelas mobílias e tapeçarias podiam ser de muito bom gosto, mas que eram demasiado novas e estavam dispostas de forma demasiado artificial para se tratarem de objetos de um proper Lord.

Ela sabia que ele podia ser um conde inglês, mas que não tinha uma única gota de sangue nobre nas veias. Como tantos homens do início do século XIX, ele se tinha limitado a criar uma reputação e a receber as compensações monetárias por isso. Ela apreciava um homem que se construía a ele mesmo.

Ele se sentou no maior cadeirão diante da lareira, esperando que ela tirasse a capa e fizesse o mesmo na poltrona diante dele antes de começar realmente a reunião. A dificuldade na pronúncia das palavras indicava claramente que ele não se tratava de um académico:

— A Aliança Luso-Britânica, o acordo que nos liga ao reino de Portugal, é a mais antiga aliança diplomática do mundo ainda em vigor. Estamos ligados desde a Idade Média e foi por isso que os portugueses resistiram a Napoleão, enfrentando a sua ira quando eles se recusaram a fechar os portos aos navios britânicos.

Era um comportamento atípico no Conde, o de se perder assim em rodeios em vez de se encaminhar diretamente para o problema em mãos. Ela se retraiu com a situação, levantando um escudo de proteção:

— Creio que não fui chamada para uma aula de História, caro Conde.

Ele se suspendeu num exame rápido à rosa inglesa diante dele. O pequeno corpo de pele de porcelana muito alva envolvido pelo cabelo comprido da cor do sol não parecia ser capaz de comportar tanta rebelião pela ordem estabelecida.

Se ele a queria tratar como se ela se tratasse de uma colegial inexperiente não chegariam a bom porto. Ele percebeu, acelerando o raciocínio:

— Queria apenas que você tivesse noção daquilo que a nossa pátria pode vir a perder em breve. Nesse momento nós, ingleses, mantemos um grande contingente militar e muitos privilégios em território português. Na ausência de Dom João VI no Brasil, nós governamos Portugal.

Não se tratava de uma novidade para ela que os britânicos pretendessem manter controlo sobre o comércio português na Europa e nas colónias.

O grande Reino Unido podia proclamar aos sete ventos o seu lema popular de que se sentiam orgulhosamente sós, mas na verdade dependiam das trocas com outros países para a sua subsistência mais básica. Manter Portugal sob o seu jugo ajudava a engordar muitos britânicos.

Satisfeito com os laivos de vivacidade que via nos olhos da mais recente espia da sua malha, o Conde começou a ganhar velocidade de diálogo:

— Fui nomeado há pouco tempo, mas já me inteirei sobre as suas qualidades. Recebi as suas credenciais assinadas por Sua Majestade em pessoa e fiquei bem impressionado. Para alguém tão jovem, já prestou muitos e bons serviços à Coroa.

Impassível por fora, ela deixou escapar um sorriso de escárnio interior. Não sabia dizer se as ditas credenciais tinham sido assinadas por Jorge III, o rei louco de quem se dizia de que certa vez cumprimentara uma árvore, acreditando de que se tratava do rei da Prússia, ou pelo seu filho e herdeiro também chamado Jorge, o príncipe cuja vida extravagante drenava a olhos vistos o tesouro da Coroa da qual era regente.

— Fiquei particularmente impressionado quando percebi de quem você é filha e neta.

 Uma leve contratura muscular no rosto da inglesa denunciou ao Conde de que tinha sido atingido um ponto nevrálgico e ele se sentiu satisfeito com isso. Precisava de alguém que manobrasse outros, mas que também pudesse ser manobrada.

Ela reprimiu a expressão de desconforto, procurando uma nova posição na poltrona. Não se ia deixar vencer num jogo psicológico.

 O pai se tinha tornado num verdadeiro mito nos círculos de espiões, num nome a temer, incansável nos serviços prestados à Coroa, famoso pela sua lealdade inabalável e caráter irrepreensível.

O avô tinha sido outra história. Mal o tinha conhecido, mas sabia contar palavra por palavra a narrativa de como ele se tinha arruinado quando falhou redondamente numa operação em larga escala para manter as colónias na América sob a alçada dos ingleses.

A desgraça do sobrenome manchado tinha acompanhado as gerações seguintes. Mesmo a menção à cidade de Nova Iorque não parava de a perseguir e ainda a deixava mexida por dentro.

Talvez tivesse sido essa a razão para o desassossego do pai no que se referia a nunca se deixar vencer nas missões que lhe propunham. Ele nunca tinha perdido a sua honra, mas tinha encontrado um caminho precoce para a sepultura.

Ela se tinha visto na obrigação de o substituir já que não tinha tido um irmão homem.

Inicialmente, o seu destino não a tinha desagradado. Pelo menos desfrutava de uma liberdade vedada à maior parte das mulheres.

Se tivesse seguido o caminho comum que a conduzia ao casamento seria propriedade de um homem em todos os sentidos. Assim sendo, podia ilusoriamente enganar-se a si mesma com a ideia de que era dona da sua própria vida.

Os toros de madeira da lareira crepitavam e o Conde se inclinou, fazendo saltar faíscas ao remexer no fogo com um elegante atiçador e as partículas de fogo se refletiram nos olhos da loira.

— Se o Conde não se importar, seria mais vantajoso ir direto ao assunto.

Ele consentiu, retomando a posição de poder:

— O Imperador já decidiu e a cerimónia do casamento por procuração já foi marcada para a próxima terça-feira.

Não se tratava de uma surpresa para ninguém, muito menos para a dama de companhia favorita da Arquiduquesa:

— Sabíamos que esse momento chegaria desde que o contrato de casamento foi assinado no ano passado.

Para o Conde, recém-nomeado como chefe da rede continental de espionagem inglesa, se tratava de uma derrota dolorosa.

Maldito Marquês de Marialva que tinha conseguido passar por cima dos interesses britânicos ao fechar aquele acordo matrimonial. Sozinho, o nobre português tinha passado a perna em todos.

A filha do Imperador da Áustria não teria sido a primeira escolha dos ingleses para ser a noiva do filho do rei de Portugal. Com essa nova aliança, arriscavam-se a perder terreno que desejavam a todo o custo manter.

O Conde evitou demonstrar o seu abatimento face ao rumo que a situação estava tomando:

— Havia ainda a esperança de controlar a situação de outra forma. Agora teremos que passar ao plano de reserva. Você.

Estranhamente, ela teve a sensação de que já tinha vivido aquele momento. Seria talvez aquilo que os franceses chamavam déjà vu e ela continuava com medo de não conseguir estar à altura de expectativas tão altas, mas parecia certo que fosse esse o seu novo caminho.  

Era o tempo de atravessar um novo oceano. Tinha as esperanças de uma nação depositadas nela.

Fazia mais de um ano que ocupava um posto na corte austríaca e os dias se sucediam numa monotonia de bordados inúteis e conversas fúteis sobre os namoricos das damas das arquiduquesas. Ela estava ficando mole, destreinada e não gostava disso.

Seria possível que se enfastiasse em tempos de paz? Gostaria de, pelo menos, ter oportunidade de o fazer.

— Você consegue assegurar um lugar na comitiva que vai acompanhar a Arquiduquesa?

Nesse ponto ela se sentia pisando em solo firme:

— Já está assegurado. Eu sou a sua confidente mais próxima.

— Você não vai estar sozinha. Temos outro agente infiltrado que nos vai ajudar no Brasil.

Ela tinha que colocar a questão, mesmo sabendo que não obteria no imediato uma resposta: 

— Quem?

Ele ficou feliz por lhe negar acesso a essa informação:

— No momento certo, a sua identidade lhe será revelada. Você precisa apenas saber que a nossa fonte a conhece muito bem e que vai velar pelo seu bem-estar enquanto essa proteção for necessária.

Estavam encerrados os trabalhos por aquela noite. O Conde tocou uma campainha discreta para chamar o criado que iria acompanhá-la à saída e ela se levantou, recolocando a capa e as luvas.

Ela já se preparava para sair do cómodo quando o Conde a reteve na porta, escorregando nas palavras:

— O seu pai e o seu avô foram fervorosos servidores da Coroa, mas é a primeira vez que…

Péssimo sinal quando o maior responsável pela industriosa linha de espionagem inglesa ficava gago antes de terminar uma frase.

  Homens. Entre uns e outros apenas mudava o grau de estupidez e obstinação. Ela resolveu completar o pensamento comum a todos eles:

— É a primeira vez que uma mulher é encarregue de assuntos tão delicados.

Não era apenas a reputação dela que iria ser colocada em risco. A dele ficaria completamente dilacerada se o plano corresse mal:

— Você compreende o que se espera que faça?

Ela o olhou por cima do ombro enquanto rodava a maçaneta, se voltando completamente para o encarar olhos nos olhos. Que não restasse sombra de dúvida sobre a sua força:

— Fui preparada para isso desde que nasci.

O Conde continuava avaliando descaradamente o ativo diante dele como se de uma peça de gado se tratasse:

— É muito peso para ombros tão frágeis.

Ela fincou os pés, crescendo para cima do seu superior até conseguir cheirar o seu receio. Antes de sair e bater com a porta, ela serviu-se da força inabalável transmitida de geração em geração de fiéis servidores da Coroa Britânica:

— Eu sou Anna Millman. Eu sou a filha do meu pai, meu caro Conde. Não se deixe enganar por falsas aparências.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ui, que início melodramático kkk. Não há o que preocupar. A vida de Anna vai ganhar um lado colorido quando conhecer um certo pirata.
Os ingleses tinham, de fato, interesse no comércio português, mas toda essa linha narrativa com a existência de espiões foi inventada por mim (espero eu kkk).
Vou tentar postar semanalmente ou quinzenalmente, procurando que a história fique abaixo dos 20 capítulos. Comentários são mais uma vez MUITO IMPORTANTES para saber como seguir com a história.
No próximo capítulo: como nos Lusíadas, estaremos em alto-mar, navegando na direção de uma nova vida. Beijo para todos!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Admirável Novo Mundo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.