Sobre Cigarros e Quase Amores escrita por Lua


Capítulo 1
Capítulo I


Notas iniciais do capítulo

Este foi o tipo de história que demandou ser escrita. As palavras fluíram na minha mente como uma cachoeira despejando-se em seu rio, e a correnteza é tão forte quanto.



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Eu nunca tinha certeza de nada quando ela estava por perto. Tinha uma energia fluindo de seus movimentos que me desconsertava, me distraía. Estar com ela era como estar ouvindo bossa nova, eu poderia jurar que ela era a Garota de Ipanema, mas na voz de Frank Sinatra. Ela era esse exótico, essa mistura, esse inesperado. Esse vazio de ser demais. E eu gostava. Só não gostava da indecisão que me acometia toda vez que Maria estava aqui; eu, que sempre fui tão preciso, tão certo, tão claro das ideias, ficava completamente perdido pensando naquela figura que me inaugurou um novo sentido para os excessos. Sua risada estalava na minha cabeça, suas ideias malucas pintavam uma nova galáxia.

Algumas vezes, eu a via caminhando com aquele jeito de menina do interior descobrindo a cidade grande, e a vontade que me consumia era de me atirar sobre ela, beijar-lhe a boca como quem mata sede, arrancar-lhe as roupas curtas e, num contraste delicioso, descer os lábios vagarosamente por seus seios, e ainda mais devagar, por sua cintura e depois por entre suas pernas. Na minha cabeça, ela ficaria em pé me olhando ajoelhado, com aqueles grandes olhos, o cabelo bagunçado e uma incógnita na face. Outras vezes, eu a via sentando-se ao meu lado, despreocupada da vida como só uma criança pode ser, e o desejo que me assombrava era de me despejar sobre ela, contando todas as minhas histórias, confessando meus pesadelos, chorando meu coração quebrado, vomitando a saudade que sentia da minha antiga namorada. Na minha cabeça, ela ficaria ali, me escutando, me dando conselhos como um amigo – não amiga; amigo – daqueles que você não mede palavras, toma cervejas e assiste futebol. Daqueles que você chama de irmão. Estas “outras vezes” eram as que eu colocava para fora, as que quase foram verdade.

— Pedro, eu acho que talvez eu esteja me apaixonando por você. – Ela me disse em uma tarde depois das cervejas, e eu achei que era culpa do álcool, mas ela estava séria. Mesmo depois de ter fingido que não escutei, ela ainda estava ali, me olhando com dor. Doeu ainda mais em mim, quando eu disse, por linhas tortas e opacas:

— Não se apaixone. Você é minha amiga.

— Mas eu gosto demais de tudo em você. Demais. – Foi uma das poucas vezes em que ela me pareceu sã.

— Eu também gosto demais de tudo em você. Não quero perder sua amizade.

Esperei que ela tentasse desviar o assunto, dissesse que foi só uma ideia boba, mas ela continuo olhando pra mim. Deu dois passos em minha direção e tentou tocar meu ombro, eu a afastei. Achei que ela ficaria sem graça, ao invés disso ela me pediu licença e entrou no banheiro. Estávamos na minha casa. Meia hora se passou, e nada de Maria voltar. Me aproximei da porta e perguntei se estava tudo bem, ouvi um sim meio rouco. Perguntei de novo.

— Estou cagando! – Ela respondeu. Não parecia chateada.

Depois de mais vinte minutos, ela abriu a porta. O rosto um pouco vermelho, o nariz também. A maquiagem um tanto borrada. Então ela foi embora. Saiu andando logo após um seco e simples “até mais”. Nos encontramos em um churrasco, quatro dias depois, ela estava toda saltitante e sorridente, bem diferente da Maria que tinha visto pela última vez.

— Tudo bem. Vamos ser amigos. – Ela me disse, assim que teve oportunidade. – Eu sei superar. – Acrescentou. Eu não acreditei que as coisas pudessem continuar normais entre nós, como era antes. De certa forma, eu estava certo, mas não como pensava.

O episódio pareceu ser esquecido por ambos, nunca mais tocamos no assunto. Talvez porque em umas poucas semanas, eu reatava o meu namoro falido, para dar errado de novo pouco depois. Eu sou assim. Entretanto, ainda que não falássemos sobre o assunto, tinha algo nas palavras mais corriqueiras e gestos naturais de Maria que me magoava terrivelmente. Tudo estava ali, posto à mesa: ela me queria, e eu estava com outra. Penso que era a culpa, o que mais pesava sobre meus ombros. Tive vergonha, remorso, e a maldita incerteza. No princípio, tentei evitar de desfilar enrolado com “a outra” na frente dela, ficava desconfortável quando o assunto era “nossas mulheres” na roda de conversa e Maria estava lá. Mas ela ria comigo, ria de mim e para mim. Ela não me condenava, e eu achava que precisava de uma sentença. Quando o tal namoro acabou, de novo, eu nem contei a ninguém imediatamente. Eu me olhava no espelho e parecia um idiota completo. Tive, pelo menos, a decência de não correr para os seios e coxas de Maria, enquanto estava aos prantos e desesperado, esperando que “a outra” voltasse. Não voltou.

Fui tão apaixonado que não suportava a ideia de substituí-la por Maria, apesar de ter tentado algumas tímidas vezes. Só depois de esquecê-la, eu entendi que não estaria profanando a memória dela se tivesse a substituído. No final de tudo, foi tolice porque, no final de tudo, nem houve mais memória a ser profanada. O que também não percebi, era que Maria não queria ser a substituta de ninguém, ela queria um espaço dela, autêntico, mesmo que já usado, ela não queria tocar e nem mudar nenhuma velharia de seu canto. Era eu quem queria que a extravagância dela me adentrasse todos os lugares.

Estava tão entorpecido que mal notei quando Maria e Lucas, o meu melhor amigo, se conheceram. Passava muito tempo com Maria e passava muito tempo com Lucas, mas poucas vezes estávamos todos juntos, por obra do acaso ou sei lá. Na noite do meu aniversário, foi diferente. Não só Maria e Lucas, mas todos os meus chegados, estavam comemorando.

Como nunca havia percebido? Maria e Lucas eram uma combinação, estavam em perfeita sincronia. Aquela mulher era completamente maluca, e Lucas um corajoso de mão cheia, eu tinha que ficar de olho aberto pra que os dois não fizessem nenhuma besteira irreparável. Em uma outra ocasião, estávamos só os três jogando sinuca e bebendo vinho barato, Maria falava sem parar, sobre tudo e qualquer coisa, eu tentava responder e manter um diálogo, enquanto Lucas estava calado. Ás vezes, Maria me irritava com seu falatório que eu quase classificava como verborragia, e daí ela se calava, assim de repente. Silenciava a si, a mim e ao mundo. Era quando eu me via extremamente sozinho e sentia tanta falta da voz dela, que achava que iria morrer se ela não falasse mais. Entre os barulhos dos tacos, o forro verde da mesa, a saia curta se moldando às curvas de Maria enquanto ela se inclinava para contar as bolas dentro da caçapa, e as minhas risadas, Lucas disse uma frase, destinada inteiramente a ela.

— Você é fascinante. Completamente fascinante! Eu adoro que você pareça a personificação de um desvario. – Ele parecia hipnotizado.

Aquelas palavras pareceram terem sido furtadas da minha língua. Ela sorriu, e nós dois nos quebramos por dentro.

Lucas e Maria ficavam cada vez mais próximos, e minha odiada inconstância não me deixou perceber a vida passando. Não sabia dizer se estava devastado por culpa de Maria ou por culpa do meu namoro falido; de qualquer forma, o tempo fazia efeito sobre tudo. Lucas veio morar comigo, o que foi minha ruína. Maria não saía da nossa casa, por conta dele, não minha. Ainda não tinha completa certeza de que estava fodido, até que, numa noite, do meu quarto ouvi risadas de Lucas e uma mulher. Havia acabado de chegar em casa, talvez fosse porque estivesse bêbado, mas acho que tem mais a ver com meu estado de negação profunda da realidade, pensei que a mulher era Lara – uma ex-namorada de Lucas. Apaguei. Quando acordei, de madrugada, a porta fechada do quarto de Lucas em frente à minha porta aberta, se moveu. O rangido anunciou que alguém ia sair, e saiu Maria, linda, só de calcinha. Ia fingir que estava dormindo, mas não consegui fechar os olhos. Meu coração foi martelado, eu estava em pedaços. Os dois se apaixonaram, e nós três nos transformamos em um trio desgraçado, para mim. Sempre juntos, com o tempo me acostumei a tudo. Às manhãs com Maria se esticando toda no nosso banheiro, passando maquiagem, às brigas dos dois, às bebedeiras dos dois, aos filmes que assistíamos quinta feira a noite, aos conselhos que eu tinha que dar, ao caos.

Houve uma tarde de domingo, em especial, que nunca pude tirar da memória. Jogamos um jogo idiota no quarto de Lucas, estava calor. Com o jeito que ela tirou a camisa e ficou só de sutiã, na frente de nós dois, eu podia jurar que ela realmente acreditava que eu a via como um irmão; Lucas não pareceu se importar. Eu ficaria furioso, extremamente irritado, se estivesse no lugar dele. Eu começava a suar e me deitei no chão, a conversa calou, e eu dormi aquele sono pesado que só nos visita em tardes de domingos. Quando acordei, vi que ela estava deitada na cama e, acho que para amenizar o calor, colocou todo seu cabelo para fora do colchão, de forma que ele pairava sobre o meu rosto. Num instinto, toquei algumas mechas, podia ver, através do reflexo do espelho no guarda roupa, que os olhos dela estavam fechados e suas pernas, expostas. Então ela se virou, colocando também parte do rosto para fora do colchão, olhando diretamente para mim. Séria. Tinha saudade em seus olhos negros. Ficamos ali por um momento que deveria ter durado mais, mas Lucas se moveu na cama, se espreguiçando e a trazendo de volta para si. Naquela tarde, eu fui feliz, até escrevi cartas pra ela com poemas que compus, todos sobre aquele instante que eu tentei eternizar, mas eu não me atreveria a me meter entre o relacionamento do meu melhor amigo. Nunca as entreguei.

O mais confuso para mim, foi quando Lucas começou a se afastar de Maria. Dois anos e alguns meses de relacionamento para ele perderam a graça. Eu achei que quando acontecesse, eu ficaria aliviado, mas estava deprimido; por causa dela. Eu sabia que ela ia sofrer. As discussões se tornaram frequentes entre os dois, o clima pesado não se desfazia. Não eram discussões gritadas ao estilo dela, eram brigas sussurradas, doloridas. Ao contrário do primeiro ano, Maria já não me procurava, não me pedia conselhos, não me chamava para beber. Embora vivêssemos praticamente debaixo do mesmo teto, mal nos víamos. Pouco menos que um mês se arrastou como um inferno para os dois.

— Cara, preciso te contar uma coisa. – Lucas me disse, em uma noite durante uma partida de basquete que assistíamos na televisão.

— Pode falar.

— É sobre a Maria. – Eu esperava pelo momento em que ele diria que tinham terminado. Tinha preparado o discurso, ia pedir pra que tentassem mais uma vez.

— Já desconfiava.

— Eu sei que temos brigado muito ultimamente, você já deve saber, se ela não te contou.

— Maria não me conta as coisas. – Aquilo rasgou minha garganta, apesar de o fogo que sentia por ela ter ido embora há algum tempo, deixando apenas um rastro morno.

— Ela tá grávida. – As palavras não fizeram sentido na minha cabeça. – E eu não quero o filho.

Maria se recusava a rejeitar a gravidez, Lucas estava desesperado, não tinha um tostão pra cuidar de si e já tinha terminado com ela, antes de saber sobre o teste positivo, o ciclo atrasado e tudo o mais. Ela disse que cuidaria da criança sozinha.

— Não venha nos procurar daqui dez anos, Lucas! – Dessa vez ela gritava.

— Eu vou dizer a ele: você não tem pai, seu pai te abortou. Eu sou o seu pai. – Era difícil entender como uma menina como ela podia ser tão feroz. De toda forma, ela não conseguiria sem ele, precisava de alguém, pelo menos. Morava no quarto de uma república feminina, ainda não tinha terminado a universidade, seus pais estavam em uma cidade distante.

— Maria, me dá um tempo ok? Você não me deixa respirar.

— Você não parecia querer um tempo pra respirar enquanto me comia!

— Isso não é justo! A culpa não é minha.

— A culpa não é de ninguém, Lucas!

As brigas acabavam apenas com o bater furioso de uma porta. Ás vezes era a porta do quarto, ás vezes era a porta da sala. Um dia, Lucas fechou a da sala, e Maria nunca mais pediu para que fosse aberta. As brigas acabaram, o perfume dela foi lavado das roupas e da casa, o silêncio reinou. O aborto acabou acontecendo de forma espontânea; Lucas se sentiu culpado. Arrumou um emprego descente, comprou um apartamento, estudou, fez novos amigos, mas nunca reatou com Maria. Não teria dado tempo, porque ela foi embora para a cidade distante, sem nem dizer adeus. Deixou tudo para trás: as bebidas, as roupas curtas, as gargalhas, Lucas, as memórias. Me deixou pra trás.

Já nem sei mais quantos anos se passaram. Ouvi dizer que ela nunca se casou, mas arranjou dois filhos, que é uma ótima mãe e uma mulher “de sucesso”, “deu a volta por cima”. Mas ela nunca esteve abaixo de ninguém, eu replicaria. Ás vezes, fico deitado no chão, no mesmo lugar daquela tarde de domingo, o quarto não é o mesmo, mas a lembrança sim, e trago aqueles olhos negros cheio de saudade olhando para mim, de volta. Pergunto como seria tê-la entrando pela porta, voltando para casa depois de um dia de trabalho, ouvi-la reclamar que não comprei o lustre certo para a cozinha, ou que nunca cato minhas meias e que sempre deixo a tampa do vaso levantada. Gosto de inventar a voz dela na minha cabeça, me chamando de amor, perguntando que horas vou buscar as crianças na casa da minha mãe.

Hoje mesmo pensei em ligar pra ela, ver se ainda usa o mesmo número de telefone, se ainda ouve aquelas músicas obscenas em inglês e se ainda lembra do meu nome, mas não estou preparado para tamanha carga emocional às 07:00 da manhã. Preciso de um café, preciso varrê-la da memória. Porém, quando saio para ir à padaria, faço questão de dobrar uma certa esquina, a que tem um muro com uma poesia pintada.

“... é louca mas é

mágica. não há mentira em seu fogo. eu te amei

como um homem ama uma mulher que jamais tocou,

para quem apenas

escreveu, de quem manteve algumas fotografias. eu poderia ter te

amado mais se eu estivesse sentado numa pequena sala enrolando um

cigarro e ouvindo você mijar no banheiro,

mas isso não aconteceu.”

Apesar de não ser exatamente o nosso caso, esses mesmos versos me servem perfeitamente, trazem um sentimento penoso, porém estimado. Anoto os últimos versos no meu celular, como se fossem uma espécie de receita:

eu poderia ter te

amado mais se eu estivesse sentado numa pequena sala enrolando um

cigarro e ouvindo você mijar no banheiro,

mas isso não aconteceu.

É, acho que foi esse o problema. Eu amei e a toquei. Escrevi besteiras, tive mais do que só algumas fotografias, até a ouvi mijar no banheiro, sentado na minha pequena sala. Foi quase lá e esse quase não me satisfaz, não é o bastante. Merda. Eu deveria ter aprendido a fumar.


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Notas finais do capítulo

Ainda me pergunto se, algum dia, ele arriscou o telefonema.



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