Salvação escrita por Walter Fernando


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Freshman do ano: É um termo para se referir ao melhor jogador de basquetebol na High School (ensino médio).

Playoffs: É um mata-mata para decidir o campeão que ocorre na pós-temporada. Possui oitavas de finais, quarta de finais, semifinais e finais. Os times classificados se enfrentam, divididos em times da Conferência Leste enfrentando as equipes da Conferência Oeste em um melhor de sete jogos.



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Os dias eram sempre corridos naquele apartamento californiano. Apesar de espaçoso, nele havia um número de pessoas tão alto que o tornava um apartamento nada chique, como se fosse um apartamento de apenas um cômodo. Um apartamento divido por cinco calouros de faculdade. Além disso tudo, era barulhento, o que promovia longas discussões com os outros moradores do prédio. A barulheira era de tamanha intensidade que resultava na ira de vizinhos do quinto andar, e os novatos moravam no térreo.

Esses dias eram corridos especialmente para Clark B. McGavin, que no momento era o que fazia menos barulho. Encontrava-se assentado sobre o sofá da sala, que estava forrado com seus edredons. Tinha passado a noite lá. O garoto de estatura assustadoramente grande até mesmo quando não estava de pé quicava com suavidade uma bola de basquete Under Armour sob os dedos da mão direita, ao passo que bebia lentamente um energético Red Bull — a versão Sugar Free, para manter sua dieta — e assistia a uma nova série da Netflix a qual sua melhor amiga — e também colega de quarto — recomendou para ele dias atrás, alegando que iria distraí-lo um pouco e fazer com que ele parasse de pensar naquilo.

Clark, porém, escutou alguém gritar com toda a sua força o seu nome. O som saiu abafado, do quarto dela, pelo fato da porta estar fechada.

Concentrado na televisão e mesmo tendo escutado o grito, acabou por ignorar a voz, esperando que a garota abrisse a porta para facilitar a comunicação.

Como esperado, a porta do quarto que estava no corredor à esquerda da sala, se abriu. De lá, uma figura de cabelos pretos bagunçados, pele branca, maquiagem borrada  e arroupando somente uma camisola meio transparente apareceu, exclamando de novo:

Claaaaark! Você tá me ouvindo?

— Tô — respondeu. — O que foi, Alicia? — indagou, virando o energético logo em seguida, colocando a lata no chão e recostando-se novamente no sofá, dessa vez direcionando o seu olhar seco para Alicia Williams.

Alicia Williams era sua melhor amiga desde a segunda série. Trabalhava numa agência de modelos circunvizinha e se inscreveu no Supermodels World, da Ford Models. Alicia era a garota que, desde sempre, não poupou esforços para salvá-lo de seus problemas psicológicos de uma vida deprimente e solitária. O primeiro encontro de McGavin e Alicia fora inusitado, mas marcara a vida de ambos. Lembrava-se em riqueza de detalhes do dia, ah, e como se lembrava; seria possível esquecer-se do dia em que sua mãe viera a falecer? O dia em que, coincidentemente, era o dia de seu aniversário? Com certeza não.

E Clark conhecera o seu novo porto-seguro aquele dia, aos seis anos. Sua mente estava atormentada de maneira preocupante. Seu pai, divorciado de sua mãe, conseguira a guarda dele. Portanto, Clark teria que passar por novas mudanças, e, consequentemente, mais despedidas. Clark, todavia, sequer sabia quem era aquele homem negro sempre vestindo um terno que estava prestes a levá-lo de sua antiga casa, que iria fazer com que ele desse um "tchau" doloroso para toda a sua vizinhança...

Por sorte, quiçá um milagre, o destino amenizou sua dor.

Foi no intervalo da escola que Alicia, há quase uma década atrás que uma criança sorridente e que acreditava que um ações bondosas poderiam recompensá-la futuramente, saltitava por ali. Pela primeira vez, os dois se cruzaram. Williams ouviu um choro baixo, um choro que não queria ser ouvido por ninguém. Olhou para baixo, localizando o corpo que emitia o ruído; curiosa, a criança deparou-se com um garotinho franzino sentado no chão gelado do corredor, com a cabeça no antebraço que era sustentado por seus magros joelhos. Sentiu que devia fazer sua boa-ação do dia: lhe estender a mão, perguntar se ele queria comer com ela a merenda da escola, o porquê de estar triste... No fim de tudo, com uma boa conversa, o menino cedeu. Mesmo hesitante, aceitou o convite. Comer uma bandeja com frango frito, ketchup e purê nunca foi tão proveitoso. Talvez, não fosse só o gosto da refeição que fosse bom. Algo mais. Algo como a mão daquela menina desconhecida.

                                                        . . .

— Nada não... — Alicia falou. A voz parecia fraca. — Deve ser sono. A Alysson ainda tá estirada no colchão. Acabei de acordar, não dormi muito bem essa noite. O quarto da Bethany e do Scott fica próximo demais do nosso. Meu sono é leve, então acabei por ouvir os gemidos exagerados da Beth, que mais me pareciam aquele cocoricar chato que os galos fazem quando amanhece. Sorte sua por não ter dormido lá ontem, sério. Aliás... — Fora sorrateiramente até o sofá. — Bom dia, baby — murmurou em seu ouvido, acomodando-se ao lado dele e beijando-o na bochecha, fazendo um smack audível por ambos.

— Bom dia, Ali — respondeu objetivo, visivelmente sem a mesma empolgação e sensualidade da Williams. Parou de quicar a bola, deixando-a no chão. Recolheu os pés e colocou-os no sofá, de forma que as pernas sobre o sofá fizessem com que o joelho servisse de suporte para o seu queixo quadrado.

A mão palidamente branca e tatuada por uma flor colorida em cores escuras viajou pela pele negra do rosto de Clark, alisando-a carinhosamente. Gavin mudou a direção dos olhos à TV. Ele queria fazer resistência. Certa disso, Alicia resolveu tocar na ferida.

— É aquela coisa, né?

— Sim, é.

— Ser desclassificado dos playoffs não significa que é o fim da sua carreira, Clark! — buscou encorajá-lo com palavras, envolvendo seu braço no pescoço do desportista amador. Já estava se tornando experiente em alegrá-lo. Os dedos delicados de Alicia perpassaram o cabelo curto e crespo de McGavin, que a olhou nos olhos. — Você é o Freshman* do ano!

— Eu sei... M-mas nós... Nós estávamos tão próximos... E eu, e eu... — sentiu algo na garganta, como se uma mão invisível e poderosa o suficiente segurasse suas palavras e impedisse que ele falasse. — Eu falhei. — Os olhos castanhos ficaram marejados. — De novo.

Num gesto um tanto que maternal — embora ela realmente não fosse essa figura ao ver de Clark —, ela tirou o braço do pescoço do desportista, levando sua cabeça até seu ombro, literalmente dando um ombro para ele chorar. Ela não tardou a alisar sua cabeça com as mãos. McGavin desfez sua pose de minutos antes e deixou-se influenciar pelas carícias.

Mesmo que Clark não quisesse, ainda sim pôde ouvir. No cômodo à esquerda, a música que ele odiava terminava de tocar, justo na parte que tinha um devido sentido emocional.

"It's our paradise and it's our war zone."

                                                      . . .

Alicia dispensou Alysson quando ela despertou. Agora, sentira que deveria cumprir seu papel. Para animar Clark e tentar desvencilhá-lo de vez do basquete por um momento, Alicia levou-o até um shopping local. Clark tratou de levar seu IPhone 5s. Via-se num estado psicológico deveras ruim para conversar com tranquilidade. A despeito de ter extravasado sua raiva, no momento ele precisava esvaziar a mente. Alicia era frequentadora assídua do centro comercial, mas McGavin não. Antissocial — o contrário de vários atletas —, só visitava lugares como aquele para ir no cinema e comprar acessórios para o basquetebol. Sem saber o propósito de sua ida, levou seu celular e um pacote de chicletes Trident Layers sabor morango com tangerina cítrica.

Ligou o aparelho. Após alguns segundos, infelizmente olhou para o seu wallpaper: Michael Jordan enterrando. Que se foda, pensou. À essa altura, ele e Williams se situavam na vasta praça de alimentação do lugar. O seu olfato comum respirava o cheiro de comida calórica; o ambiente era preenchido por uma ampla rede de estabelecimentos fast-food. 

McGavin retirou os fones de ouvido do bolso de sua calça jeans, conectando-os em seu smartphone. Mexeu no celular muita rapidez, selecionando de sua playlist chamada de "Relaxing Musics" a canção "Rather Be", de Clean Bandit.

Clark inspirou pelas narinas e expirou todo o ar que podia pela boca. Nesse processo, havia fechado os olhos para deleitar-se ainda mais. Aumentou o som ao ponto de Alicia espantar-se com o quão alto a música era transmitida. Contudo, Alicia apenas a ouviu, demorando uma fração de segundo para escutá-la decerto. E, quando isso aconteceu...

Alicia meneou levemente a cabeça, dançando, acompanhando o ritmo numa tentativa de contagiar o melhor amigo.

No curto período que analisou o rosto contente de Williams, Clark relembrou de tempos que foram divertidos que sua cabeça tratou de excluí-los com a chegada na High School. Épocas que Alicia ia em sua casa, assistiam partidas da NBA no sofá velho da sala de estar... E ela sempre ficava assim, desse jeito. O sorriso de orelha a orelha, a franja balançando de um lado para o outro. Esbanjava empolgação e vivacidade. 

Inevitavelmente, Clark sorriu.

Alicia notou a mudança de expressão de Clark. Subitamente pôs-se à frente dele, interrompendo-lhe a passagem. Por fim, o encarou.

— O que 'cê tá... — Clark proferiu até Alicia privar-lhe da fala, pondo o dedo indicador de sua mão bem torneada nos lábios assimetricamente grossos de McGavin, que arregalou os olhos.

Antes que o jogador reagisse, Williams o abraçou. Um abraço surpresa, forte; carregado de sentimentos. Estupefato, Clark deixou que um fone caísse em seu ombro. Alicia aproveitou a deixa para sussurrar com um timbre de voz suave o refrão da música:

— When I with you there's no place I'd rather be (quando eu estou com você não há nenhum lugar que eu preferia estar).
                                                               

                                                        . . .

Ao anoitecer, quando os dois estavam deitados em suas camas de solteiro no mesmo quarto, Alicia, antes de dormir, deu boa noite para Clark, soltando um ditado popular muito conhecido no mundo inteiro para reflexão: "Depois da tempestade, vem a calmaria."
                                                                . . .

O jogador despertou cedo. Pretendia retomar a rotina de treinos. Precisava se preparar para a próxima temporada, logicamente. O quarto estava pouco iluminado, ainda era madrugada. A única fonte de luz presente era uma arandela de LED na parede.

Clark espreguiçou-se e olhou ao redor.

Faltava alguém.

Alicia, concluiu. Atirou-se de cama. A porta estava escancarada. Levou o telefone móvel, garantindo acesso a uma lanterna, certificando-se que não incomodaria ninguém acendendo as luzes de qualquer canto do apartamento.

Apesar disso, foi fácil descobrir onde Ali se localizava. A lâmpada do banheiro estava acesa. A porta fechada, mas quebrada no canto superior direito, o que criou um vão que possibilitaria a sua visão por dentro do aposento.

Bateu com o punho fechado na porta sanfonada consecutivamente. Toc, toc.

— Ali...? — Clark perguntou.

Nenhuma resposta.

Sem rodeios, ele abriu a porta agressivamente.

Achara seu tesouro.

Só que aquele tesouro não emanava o brilho, ou gozava de alegria alguma; Aparentava estar... morto. Uma relíquia consumida, carcomida e destruída de dentro para fora.

Era inimaginável; era inacreditável. Williams estava em posição fetal sobre o tapete úmido. Lágrimas secas, lápis de olho borrado, o nariz avermelhado de uma ponta a outra. Ela não é assim!, formulou a frase na cabeça. Clark estava atônito, pasmo ao ponto de suas mãos tremerem e um arrepio subitâneo atravessar sua espinha. Alicia estava vulnerável e sensível. O adolescente agachou-se, pegando-a no colo. No caminho até o quarto, ligara todas as luzes. Nada mais importava. Priorizava o bem de sua melhor amiga.

— E-eu... Eu... — a modelo pronunciava com insistência. — Eu tenho medo.

McGavin não teve tempo de falar. Deitou-a em sua cama cuidadosamente, dispondo do máximo de afabilidade que podia.

— Por quê? Do que você tem medo?!

—... D-de te perder, Clark... De te perder — Alicia balbuciou.

— Mas eu estou aqui, Alicia! Com você! — disse ele, com os pensamentos mal organizados.

— A sua memória é tão fraca assim? — Williams fez uma pergunta retórica. Sorriu forçadamente. — Daqui há uma semana eu vou viajar para Nova York como concorrente do Supermodels World — falou com amargor em cada sílaba entoada. — Se eu não for eliminada... Não vou te ver por pelo menos um ano. Lutamos tanto para dividirmos esse apartamento. Para pagar o seu aluguel, para bebermos juntos, rirmos juntos, chorarmos juntos... E o meu sonho poderá transformar radicalmente essa realidade. Eu não quero que isso acabe, Clark, não quero. Você é minha salvação, baby, meu melhor amigo. Não sei como devo prosseguir sem o seu abraço, os toques de mão, as suas piadas... Não dá!

— O mundo não é um conto de fadas, Ali... — Pôs a mão no rosto da garota, enxugando novas lágrimas que surgiam repentinamente. — Aprendi isso da pior forma. Sabe como é, né? Sou profissional na arte do azar — ao terminar sua fala ele a fez sorrir. Um sorriso puro e sincero. Alicia controlou o choro. Levou ar aos pulmões, acalmando-se.

— Vamos dormir, vai... — Williams cortou o assunto — Por enquanto, o melhor é curtir o momento, evitar decepções. O sono é a ferramenta mais apropriada para reajustar nossas complexas emoções. — Ajeitou-se na cama, pronta para dormir. Não trocaria de roupa. Seria uma noite loucamente memorável quando partisse.

— É isso aí, senhorita filosofa. — Mostrou o polegar para ela. — Aliás... Falando em filosofia e pseudo-poetismo, você esqueceu uma citação importante. 

— Qual?

— Droga! Me esqueci! Devo ter amnésia — Clark se lamentou. Se sentou na beira da cama dela. —  Mudando o foco da conversa... já fiz algum gesto de amizade contigo?

— Hum... Não me lembro bem; mas quando éramos crianças andávamos de mãos dadas. Pensavam que eu era sua irmã. — Alicia desatou um risinho.

— Bom... Esse será o meu segundo, nesse caso. — Esticou-se, encaixando suas mãos acima dos ombros de Alicia, no colchão. Seu corpo pairou sobre o dela. Alicia fechou as pálpebras. Não obstante da iniciativa da modelo, Clark a beijou na testa, contrariando-a. Um beijo de boa noite, singelo e imaculado.

— Eu não esqueci a citação. Só queria que você lembrasse, tolinha. Mas parece que sua memória é mais fraca que a minha, não é? — Ainda na mesma posição, a olhou fixamente. — Depois da tempestade, vem a calmaria. Nunca se esqueça. Tenha uma boa noite.

Clark acomodou-se em sua cama. Entreolharam-se durante minutos seguidos. Finalmente retribuíra o favor. Retribuir o favor dela salvá-lo, e evitá-lo de si mesmo, de sua capacidade gigantesca de se auto-destruir. Alicia desempenhara um papel significante em sua vida.  A única que mudou seu espectro emocional. Dormiria tranquilo, com a consciência limpa. Afinal de contas, ele era a salvação dela. 

 

 


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Notas finais do capítulo

Quem pegou a referência no finalzinho? XDDD
Espero que tenham gostado.



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