3 Cores de Rivalidade escrita por Leon Yorunaki


Capítulo 1
Azul, Vermelho e Amarelo




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6 de Julho:

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Bernard acordou no meio da madrugada, como de costume. Era apenas mais um dia de trabalho como qualquer outro na pequena vila de Arden, em Delaware. Uma cidade nem um pouco convidativa para jovens como ele, não quando a maioria da população era mais velha; os poucos jovens que restavam eram os que não tinham coragem de se mudar para a agitada Wilmington, nem tão distante assim do vilarejo, ou então não o podiam fazer por conta da família. Bernard se encaixava nesse último caso, tendo feito o caminho contrário da maioria das pessoas de sua idade.

Aos vinte e dois anos, morava apenas com sua mãe, esta já chegando aos sessenta. O fim do casamento não fizera bem a saúde dela; de modo que se afastou do agito da cidade grande ao se mudar para o vilarejo; Bernard, que acabara de terminar os estudos, sustentava a ambos com o humilde emprego como assistente no único mercado da cidade. Era ele o responsável pela padaria em anexo, sendo este o motivo para que acordasse todo dia antes das quatro da manhã. Era um bom trabalho, que lhe pagava o bastante para ter uma vida confortável e, ao mesmo tempo, lhe permitia passar tempo o suficiente com sua mãe, parcialmente incapacitada por conta do reumatismo, visto que seu turno de trabalho encerrava pelo final da manhã.

E aquela quarta-feira seria como todas as outras se não fosse a notícia que mudaria o mundo como ele conhecia. O lançamento mais esperado da década para pessoas como ele, que passava as tardes livres em seu computador, jogando e conversando pela internet com seus amigos virtuais para compensar a total ausência de amizades que tinha.

Bernard voltaria, depois de tanto tempo, a ser um mestre Pokémon.

Ou pelo menos era isso que Pokémon Go prometia a ele. Um sonho da infância que se realizava. Melhor dizendo, se realizaria assim que ele retornasse do trabalho. Ele não teria como jogar e trabalhar ao mesmo tempo, por mais que fosse um aplicativo para seu celular.

Naquela tarde, ele não ficaria em casa.

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7 de Julho:

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Bernard quase não acordou a tempo para o trabalho, consequência do cansaço pela caminhada da véspera. Não esperava que um jogo tão simples pudesse ser tão viciante. As pernas ainda reclamavam pelas mais de quatro milhas caminhadas — praticamente o perímetro todo da cidade. Conseguira visitar todos os três pokéstops ao menos; notando suas localizações. Encontrou também o ginásio que colocaram na cidade, até o momento vazio, no Teatro Stephens.

Apesar de tudo, foi uma tarde muito produtiva, pela qual valeu a pena não ficar em casa. Conseguiu capturar uma certa quantidade de Pokémon e subir alguns níveis. Infelizmente, não conseguiu avançar o suficiente no jogo para poder desafiar o ginásio, mas esperava conseguir fazê-lo nas próximas horas.

Nunca o tempo no trabalho demorou tanto para passar.

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8 de Julho:

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A sexta-feira de Bernard se iniciava com um sorriso no rosto, a alegria de quem ia trabalhar após uma missão cumprida na tarde anterior. Após finalmente atingir o quinto nível no jogo, pôde finalmente desafiar o ginásio. Sendo o primeiro treinador a enfrentá-lo, não teve nenhuma dificuldade em vencer a batalha. A bandeira vermelha do Team Valor balançava sobre o Teatro Stephens quando visualizado pelo aplicativo, mostrando o Charmeleon que agora defendia o local. Era o Pokémon favorito de Bernard, um fanático apaixonado pelos seres do tipo fogo. Foi essa a justificativa pela escolha do Team Valor, representado pela ave flamejante Moltres.

Uma rápida consulta ao celular, contudo, mostrava que algo estava errado. O Charmeleon que deixara defendendo o ginásio havia retornado para o aparelho de Bernard. Segundo o que vira na internet, isso só acontecia quando o ginásio era derrotado por um membro de outro time dentre os três disponíveis para escolha.

Os ginásios não eram dominados pelos treinadores, mas sim pelos times que eles representavam. Tanto que, caso um jogador encontre a bandeira de seu próprio time em um ponto, sua capacidade de interagir com o local é reduzida.

Restava a Bernard uma pergunta: Quem naquela cidade tão pequena e sem jovens se interessaria por um jogo como aquele?

Por via das dúvidas, o rapaz decidiu que iria verificar quando saísse do trabalho. Uma tarde que demorou a passar, o relativo tédio daquela manhã de sexta-feira na pequena cidade lhe deixava pensando nos possíveis jogadores que poderiam ter lhe tomado o ginásio. Provavelmente seria algum desocupado de Wilmington que se deu ao trabalho de percorrer os quase trinta quilômetros até Arden. Podia talvez considerar até a possibilidade de ser de uma das cidades mais próximas do outro lado da fronteira com o estado da Pensilvânia, como Aston ou West Chester. Segundo os fóruns na internet, alguns grupos de jogadores estavam se aglomerando para jogar durante as madrugadas, horário em que a instabilidade dos servidores era menor.

No final das contas, Bernard se surpreendeu positivamente ao ver o Pokémon que ocupava o ginásio quando de sua nova visita ao final da tarde, após passar um tempo em casa ajudando sua mãe. A bandeira azul do Team Mystic sobre o teatro estava sendo guardado por uma espécie mais fraca que o Charmeleon que antes estava lá. O Squirtle vencera a batalha apenas com sua vantagem de tipo. Seu treinador, de nome Douglas, estava no mesmo nível 5 recém-atingido por Bernard.

Não mais, pensou o rapaz, antes de batalhar para a retomada do ginásio. Dessa vez, deixaria um Pokémon mais forte e que não tivesse desvantagem contra o tipo aquático.

Bernard não levou mais do que três minutos para vencer a batalha, deixando desta vez um Tentacool. Longe de ser seu favorito, mas era o exemplar mais forte de sua equipe e que não teria dificuldades contra o dono do Squirtle caso ele voltasse.

Pra falar a verdade, eu quero mesmo é que ele volte, pensou antes de voltar para casa. Já havia se ausentado demais por causa daquele aplicativo para quem não costumava sair, tanto quanto não gostaria de deixar sua mãe preocupada.

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9 de Julho:

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O sábado não era diferente do resto da semana para Bernard, que acordou cedo para o trabalho. Talvez até mais cedo do que deveria, pela curiosidade em saber se o ginásio fora retomado.

Os vinte minutos de antecipação lhe fariam muito bem ao ver que o Tentacool que ele deixara no Teatro Stephens estava de volta ao seu celular. Em outras palavras, o local fora tomado de volta pelo Team Mystic, fato confirmado por uma notificação oculta que encontrou ao alterar as configurações do jogo.

Bernard aproveitou que acordara antecipadamente e decidiu verificar as condições do ginásio. Não perderia mais do que dez minutos, tempo o suficiente para que não se atrasasse para o trabalho.

Como ele já sabia, a bandeira azul do Team Mystic estava por lá outra vez. O avatar de Douglas mostrava que o treinador passara para o nível 6, algo que Bernard ignorara para ficar em casa com sua mãe. Douglas aproveitou também para deixar um recado sutil com o nome do Slowpoke que agora era o guardião do local, “ThisMyTurf”. A mensagem estava clara mesmo com a contração exigida pelo limite de dez caracteres no nome. Este é meu território.

Era a prova definitiva de que mais alguém entre os não mais de quinhentos habitantes da pequena cidade fronteiriça estava jogando junto com ele em vez de algum curioso da capital ou mesmo do estado vizinho. O tal Douglas teria de ser alguém da própria cidade de Arden, um fã de Pokémon acima de qualquer suspeita.

O furo nessa teoria era que, trabalhando na padaria, conhecia por alto todos os moradores do vilarejo. E Bernard não sabia da existência de nenhum Douglas.

Por via das dúvidas, ao vencer o ginásio usando de seu Paras, renomeou seu Pokémon sugestivamente. A nova espécie ocupante do ginásio, colocando mais uma vez a bandeira do Team Valor, tinha como apelido visível para os desafiantes a expressão “WhoAreYou?”

Quem é você, Douglas?

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A vantagem do trabalho aos sábados era poder sair mais cedo, cerca de onze da manhã. Bernard conseguiu resistir à tentação de ir ao ginásio antes do almoço. Não havia necessidade, visto que o Paras não retornara, sinal de que continuava defendendo a bandeira vermelha do Team Valor.

Não seria a tomada do ginásio ou não que influenciaria a decisão dele de sair durante a tarde para jogar. Seu celular ficaria com as baterias recarregando durante o almoço para que pudesse passar o resto do dia em atividade.

Antes de sair pela porta, contudo, foi interrompido.

— Bernard, pra onde você vai?

— Dar uma volta, mãe!

— Você anda estranho esses dias, Bernard. Tem alguma coisa errada?

Não era que o rapaz estivesse escondendo alguma coisa, mas como explicar para uma senhora de mais idade que precisava sair de casa por causa de um jogo de celular?

— Como assim, mãe?

— Você nunca foi de sair e se enturmar, passa o dia de cara fechada no seu quarto… e de repente começa a passar o dia inteiro fora. Vem cá, o que você anda fazendo?

— Não é nada demais, mãe, eu juro!

Um instante de silêncio se fez antes que ela fizesse uma pergunta inusitada para ele.

— É por causa daquele jogo, não é?

— Hã?

— Deu no jornal mais cedo, aquele pikamon ou sei lá o quê…

— É Pokémon, mãe… Deixa eu te mostrar…

Bernard não duvidava que se sua mãe, depois de ser positivamente influenciada pelo que vira na reportagem, iria querer jogar se pudesse se locomover como ele. A artrite que tanto lhe incomodava a impedia de fazer tarefas simples como ir até a farmácia, por exemplo. Mesmo a locomoção dentro de casa era limitada pelas dores, de modo que um jogo como Pokémon Go não era nem um pouco inclusivo para pessoas como ela.

— Não demore muito, filho!

O rapaz se surpreendia cada vez mais com o que ouvia falar a respeito do jogo nos últimos dias. A quantidade de downloads diários do jogo estava na casa dos milhões; a receita da empresa produtora do aplicativo estava registrando lucros recordes com a venda de itens como pokébolas por dinheiro real. Se o alcance do jogo era tanto que saíra até mesmo no jornal, talvez não fosse tão absurda a ideia de que outras pessoas em Arden também estivessem jogando…

Os devaneios de Bernard foram interrompidos com uma notificação no celular. O ginásio da cidade fora tomado outra vez pelo Team Mystic. Se as suposições dele estivessem certas, o treinador misterioso estava nas proximidades do teatro. Esperava ser rápido o bastante para alcançá-lo no local.

Por mais que tenha corrido, no entanto, não chegou a tempo, não encontrando viva alma nos arredores. Douglas, que continuava no nível seis, colocara um novo Pokémon defendendo o ginásio; uma escolha que fez Bernard gargalhar.

O Charmander que defendia o ginásio tinha um apelido extremamente sugestivo. “Genwunner”. O termo é uma expressão conhecida mundialmente entre os fãs, normalmente com teor pejorativo, representando os fãs que pararam de acompanhar a série e tomam conhecimento apenas da primeira geração dos monstrinhos e suas 151 espécies diferentes, número quase cinco vezes menor que o total de espécies criadas, um número que já passava de setecentos com certa folga.

O fato de Douglas saber da existência do termo “Genwunner” despertou em Bernard o que ele tinha de melhor — e também o de pior. Agora sua curiosidade em saber quem era o tal treinador assumira níveis muito maiores. Assim como seu espírito competitivo. Pois ele não aceitaria perder em uma competição como aquela.

Primeiro de tudo, iria retomar o controle do ginásio naquele instante. Renomeou seu Tentacool com o nome “ORly?Me2”, algo que podia ser interpretado como “Sério? Eu também” com o limite de caracteres. Depois de vencer e colocar o Tentacool de volta, era hora de treinar e recuperar o dia perdido que foi a véspera. Iria capturar todo e qualquer Pokémon que aparecesse para aumentar seu nível. Esperava apenas que as pokébolas fornecidas pelos três pokéstops da cidade fossem o suficiente para que ele não precisasse gastar. Seu espírito competitivo estava quase o levando a esse ponto.

Bernard estava preparado para correr até o teatro novamente a qualquer momento em que o ginásio fosse recapturado pelo Team Mystic. Mas isso não chegou a acontecer.

Apenas quando a noite já havia caído e as ruas se encontravam vazias o Tentacool foi encaminhado de volta para o celular do rapaz. A mensagem que recebeu não poderia tê-lo incomodado mais.

Seu ginásio foi tomado pelo Team Instinct!

Um terceiro jogador se revelava, interferindo na pequena conversa que se iniciava pelos apelidos dos Pokémon. Bernard apressou-se em direção ao local, chegando a tempo de ver um carro se afastando do teatro.

O ginásio agora abrigava uma Starmie, uma espécie rara de Pokémon que Bernard não havia encontrado até então. O treinador que era mostrado ao lado da bandeira amarela do novo time encontrava-se no nível dez, oferecendo dificuldades para qualquer dos dois treinadores da cidade. E para completar, o aplicativo mostrava que ele tinha como origem o estado da Pensilvânia.

Bela maneira de estragar as coisas…

Bernard se virava para voltar para casa, triste pela batalha perdida, quando notou que mais alguém se aproximava do teatro.

Por via das dúvidas, ele se escondeu à sombra de uma árvore, esperando não ser notado pelo jovem que se aproximava pela direção oposta. Podia ser o tal Douglas com quem interagia, tanto quanto podia ser outro intruso; Bernard não iria se apresentar antes de ver o que acontecia, analisando a tela do celular em caso de alguma coisa fora do normal acontecer, como uma retomada do ginásio ou algo do tipo.

O que ocorreu de inusitado não foi no jogo, mas sim no teatro. A atenção de Bernard foi roubada por um soluçar triste que vinha da calçada oposta. Atrevendo-se a olhar, encontrou o outro aos prantos, sentado ao muro, escondendo o rosto entre os joelhos…

O espírito altruísta de Bernard fez com que ele se sobressaltasse ao ver a cena. Não importava se era ou não Douglas, havia alguém chorando em frente ao teatro e ele podia fazer alguma coisa a respeito.

— Ei, tá tudo bem com você?

— Não enche!

Bernard se viu dando um passo para trás com o grito do outro.

— Olha, eu só quero te ajudar…

O rapaz, aparentemente da mesma idade dele, não respondeu, meio que pedindo pra ser ignorado. Os cabelos negros, curtos e espetados, faziam-no parecer um porco-espinho, fechando-se a qualquer aproximação. O celular em sua mão esquerda só fez confirmar a teoria que tinha; a imagem na tela era justamente do jogo Pokémon Go, mostrando naquele momento o ginásio que se situava naquele local, agora dominado por um treinador do estado vizinho…

— Vamos, é só um jogo…

O rapaz sentado levantou a cabeça rapidamente. Bernard estendia a mão, como quem convidava o outro a se levantar. Acabou mordendo a língua, literalmente, ao receber inesperadamente um soco no maxilar.

— Só se for pra você, seu merda! Você não me conhece pra falar uma besteira dessas!

Bernard levava a mão ao queixo, sentindo a dor da pancada. Dava pra perceber que o outro não tinha a menor experiência em brigar, visto o ângulo do golpe que pouco lhe machucou. Mas não era a dor física que lhe incomodava.

— Você tem razão, eu não lhe conheço. Por isso que eu quero ajudar!

— Ajudar depois de foder comigo, não é? O que você teve que vir pra cá, não tem ginásios lá do outro lado ou é pra se vingar pelos Rams?

— Calma aí, eu não tou te entendendo…

— O que você teve que se meter pra cá? Aposto que você é um daqueles que compra moedas no jogo e…

Bernard finalmente entendeu o motivo da confusão. Que o garoto o qual lhe acertara era Douglas, não havia a menor dúvida. Porém, este provavelmente pensava que a pessoa a sua frente era o intruso do Team Instinct que veio do estado vizinho apenas para tomar o ginásio…

Tudo faz sentido…

— Você entendeu tudo errado… olha, se acalma, podemos conversar numa boa se você permitir. — vendo que o outro se mostrava irredutível, tratou logo de se apresentar para desfazer a confusão. — Prazer, eu sou Bernard.

A face de Douglas ficou branca feito leite ao ouvir o nome, momento este em que percebeu o grande erro que cometera.

—Ai meu deus, desculpa, desculpa mesmo, eu pensei…

— Deixa pra lá…

— Deixo nada! Eu te bati, eu…

Douglas sentou-se novamente, escondendo a face outra vez.

— O que foi agora? — perguntou Bernard, sendo parcialmente ignorado. O outro resmungava para si mesmo, tornando a chorar, ignorando a companhia enquanto se lamentava pelo erro.

Eu sou um bosta mesmo… Não devia ter saído de casa, olha só, já deu merda, eu encontro um cara que parece ser legal e me apresento com um soco, eu não sirvo pra isso, eu nunca vou ser uma pessoa decente, eu devia ter me matado quando tive chance e acabado logo com isso…

— Olha, cara, tá tudo bem, sério mesmo.

— Sai de perto de mim, eu não mereço sua compaixão.

— Mas eu vou te dar mesmo assim. Anda, levanta e vamos jogar… Olha, eu sei que estamos em times diferentes, mas eu não vou deixar um Instinct de outro estado mandar no nosso ginásio…

Bernard não conseguiu arrancar nada além de um sorriso muito fraco de Douglas. Mas ao menos isso ele conseguiu.

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10 de Julho:

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O domingo era o único dia de folga na semana para Bernard, o que não o impediu de acordar no meio da madrugada como nos outros dias. O que lhe tirou da cama foi a possibilidade de treinar com mais calma no Pokémon Go, mais do que o costume em acordar cedo para o trabalho.

Um dos motivos para essa empolgação era Douglas, o novo colega que fizera na noite anterior. Bernard surpreendeu-se ao descobrir que ele era filho de uma das clientes mais contumazes da padaria. A explicação pelo desconhecimento da existência dele se dava possivelmente por vergonha por parte da mãe, incapaz de admitir que o filho era tão introvertido que raramente saía de seu quarto.

A existência de outro treinador nas redondezas acabou por surpreender a ambos os jovens. Bernard, que sentia-se deslocado por seu gosto incomum para jogos em uma cidade aonde praticamente não existiam jovens fazia com que ele não tivesse amizades com as pessoas de Arden.

Tudo mudara para ambos com o lançamento do jogo para celular. Sendo Douglas fã da franquia dos monstros de bolso, ele se viu pela primeira vez na vida motivado a sair de casa, pelo único motivo de ir atrás dos monstrinhos. Ele preferia fazê-lo durante a madrugada, contudo, um meio de evitar contato com as outras pessoas.

Foi o que Bernard descobriu na breve conversa que tiveram no dia anterior, antes de Douglas sair correndo para casa, aparentemente assustado com alguma coisa.

Talvez se o encontrasse na rua, sem outras pessoas por perto para atrapalhar, pudesse fazer com que ele se abrisse um pouco mais. Bernard via em Douglas a possibilidade de encontrar um amigo, algo que não chegara a ter por todo aquele tempo.

E se não o encontrasse… bem, ele poderia ao menos treinar e subir um nível ou dois no jogo para retomar o ginásio. Pensava em algum tipo de mensagem que poderia deixar em dez míseros caracteres ao ponto de chamar a atenção do outro.

O sol já esquentava quando Bernard finalmente atingiu o nível seis, momento em que se dispôs a fazer uma tentativa de derrotar o Starmie deixado pelo treinador do estado vizinho. Encontrara o Pokémon ideal para enfrentá-lo menos de meia hora antes, um Electrode, cuja vantagem de tipo lhe permitia ter alguma chance contra a estrela do mar.

O espírito competitivo de Bernard foi posto à prova naqueles dois tensos minutos de batalha. Ele precisava vencer aquela luta, não somente por sua honra, mas para deixar uma mensagem para o colega, o único meio possível devido à ausência de um meio de contatar outros treinadores pelo aplicativo.

E com muita dificuldade, além de um pouco de sorte, ele venceu.

Após a vitória, deixou não o Electrode defendendo o ginásio, mas sim o mesmo Charmeleon de sua primeira tomada do ginásio, pois sabia que ele seria facilmente derrotado. Pela primeira vez, ele queria ser derrotado.

Desta vez, no entanto, o Pokémon estava com um nome diferente.

“MeetMeDoug”

Me procure, Douglas, pensou, antes de voltar para casa.

Bernard passou o resto da manhã ajudando sua mãe a preparar o almoço. Apenas metade de sua atenção estava dedicada aos afazeres domésticos, porém; a outra ocupava-se incessantemente com o celular, aguardando que o ginásio fosse derrotado pelo Team Mystic.

O almoço passou, assim como a tarde também. Ao cair da noite, percebendo que sua espera era infrutífera, tratou de ir dormir mais cedo, lembrando-se de que teria de trabalhar antes do próximo amanhecer.

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16 de Julho:

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A semana se decorreu com pelo menos duas dezenas de mudanças no domínio do ginásio do Teatro Stephens, sempre entre os times Valor e Mystic, seguindo sempre o mesmo padrão de horários. Nenhum sinal foi dado pelo treinador do Team Instinct durante aquela semana, sinal de que se ocupara com outros afazeres, o que agradou a ambos os jogadores de Arden.

Os nomes dos Pokémon que tomavam conta do ginásio em cada turno formavam curtas mensagens abreviadas entre os dois jovens. Acabaram por combinarem de se encontrar no sábado pelo início da madrugada em frente ao ginásio, dando tempo mais que o suficiente para que não atrapalhasse o trabalho de Bernard pelo qual deveria estar na padaria uma hora e meia antes do amanhecer.

—Hey, tudo bem? — sussurrou Bernard quando chegou ao local combinado. Douglas já se encontrava por lá com o celular na mão, coletando os itens que tinha direito pelo atual domínio do ginásio, um Eevee de nome “IllBeThere”. Estarei lá.

— Eu bem que queria dizer que sim…

Os dois passaram o tempo apenas conversando, primeiro sobre o desempenho no jogo, trocando dicas entre si. Ambos os treinadores galgaram alguns níveis durante a semana, encontrando-se cada um deles no nível onze. A medida em que a confiança foi sendo criada entre eles, Douglas começava a se abrir com o amigo, revelando o segredo pelo que lhe mantinha preso em casa.

O jovem relatou lutar contra seu próprio fracasso, sendo incapaz até mesmo de terminar a escola por conta do bullying que sofrera. Tudo começara no segundo ano, quando se apaixonou por um colega de sua turma, pelo que era correspondido. O trauma começou quando ele foi pego aos beijos com o namorado, fazendo com que se separassem ao ser obrigado a vê-lo transferido para outra escola. Douglas, não tendo a mesma sorte, acabou alvo de todo tipo de abuso dos colegas de classe, tanto físico quanto psicológico. A reação de seus pais também não foi das melhores, criando um clima horrível em sua casa que fez com que eles se separassem meses depois.

Incapaz de enfrentar o mundo depois de meses sendo torturado, ele parou de ir para as aulas. Tendo brigado com ambos os pais, trancou-se em seu quarto desde então, temeroso de encontrar quem quer que fosse, temeroso também de ser abusado novamente. Encontrou então refúgio nos jogos em seu computador, assim como em grupos virtuais relacionados aos games.

Bernard era um bom ouvinte. Escutava calado, tentando não demonstrar a pena que sentia do jovem sentado ao seu lado enquanto ajudava este a enxugar as lágrimas que irrompiam de seus olhos. Douglas não merecia passar por isso, não quando se revelava uma pessoa tão transparente em seus sentimentos.

Talvez tudo o que ele precisasse fosse alguém que pudesse lhe escutar, coisa que seus pais nunca fizeram, sendo conservadores demais para aceitar o que acontecera. Coisa que nem mesmo os poucos colegas virtuais se importavam; sendo os grupos voltados apenas para a discussão de games, ele não conseguia abrir espaço para conversar sobre seus problemas pessoais nos raros momentos em que sentia vontade de desabafar.

E cada vez mais ele se fechava em seu mundo particular, jogando por todas as horas em que não estava dormindo.

Foi necessário um jogo como Pokémon Go para que ele pudesse sair de casa; não pelas pessoas, mas porque era o único meio de se jogar.

E quando encontrou o ginásio sendo dominado por outro treinador, ele se viu confrontado por seu próprio medo. O mundo virtual aonde sempre se sentira seguro agora se misturava ao mundo real; tinha pela primeira vez um adversário com vida em vez de um chip eletrônico pré-programado. Seu desejo de solidão ganhava voz quando conscientemente afastou o outro treinador com um recado nada amigável.

Mas Bernard não obedecera, é verdade. Sua curiosidade em descobrir quem era o outro treinador Pokémon da cidade fez com que persistisse, tomando o ginásio por algumas outras vezes. Até que se encontraram pessoalmente daquela forma nada amigável…

O alarme que ele tinha colocado no celular soava, sinalizando que ele precisava ir ao trabalho ou se atrasaria. Não fizeram progresso algum no mundo virtual, tão presos ao relato da vida de Douglas. Mas o avanço no mundo real era muito mais perceptível. Sentindo-se acolhido, ele retornava para sua casa com a promessa de se encontrarem novamente na madrugada seguinte, no mesmo local.

E Bernard, que rumava para a padaria, podia não ter passado por tantas intempéries, mas identificou-se com a vida de Douglas de tal maneira que poderia se imaginar tendo a mesma reação de isolamento se estivesse no lugar dele.

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17 de Julho:

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Bernard não jogou praticamente nada no dia anterior, cansado demais para pensar após uma noite sem dormir emendada com o trabalho. O pouco que fez foi derrotar o ginásio outra vez, uma maneira simbólica de dizer a Douglas que estava por ali. Em especial pelo apelido dado ao Pokémon que deixara por lá, “MeetAgain”, um lembrete direto de que gostaria de conversar mais com ele na madrugada que se seguia após se arrepender por não ter pego algum contato dele quando teve oportunidade.

O domingo podia ser seu dia de folga, um dia em que não precisava acordar durante a madrugada e ver o sol nascer. Mas era exatamente o que planejava fazer ao ver que ele foi substituído outra vez pelo Team Mystic.

Bernard caminhava, recolhendo os itens nos pokéstops antes de se encaminhar ao ginásio, visto que estava mais de meia hora adiantado. Estava despreocupado, visto que sua mãe dormia tranquilamente e não daria por sua falta, sem se importar com as ausências; ela achava até bom que seu filho saísse mais de casa além do período em que trabalhava.

Sua despreocupação mostrou seu preço ao chegar ao ginásio, quando descobriu que ele havia sido outra vez tomado pelo Team Instinct naquele meio tempo. Não era o mesmo treinador da semana anterior, apesar de ser também do estado vizinho. Ao nível dezesseis, ele deixara de forma semelhante um Pokémon raro e poderoso; o Nidoking, ao contrário da Starmie, tinha sido treinado com mais cuidado, apresentando um poder de ataque consideravelmente elevado. Ele também apresentava um apelido, “NoKidding”, uma mensagem que era ao mesmo tempo um trocadilho com o nome do Pokémon e uma mensagem um tanto ameaçadora. Não estou brincando.

Felizmente, Bernard já estava em um ponto em que a prática do treinador contava mais para a conquista de um ginásio do que o poderio do Pokémon adversário. A capacidade de ataque dos Pokémon mais fortes do rapaz, tanto quanto do defensor, atingia já o quarto dígito, valores consideravelmente maiores do que ele lidava na semana anterior. E com toda a prática que tinha durante a semana derrotando os Pokémon geralmente fracos deixados para a troca de mensagens fez com que estivesse afiado o suficiente para derrotá-lo com menos dificuldade do que enfrentara antes.

O que o assustava não era a tomada do ginásio em si, mas a possibilidade de que Douglas se assustasse com o ocorrido e não aparecesse, visto que foi ele a receber a notificação de que o ginásio havia sido tomado no instante em que o treinador do estado vizinho apareceu.

Cinco minutos se passaram do horário combinado. E outros cinco depois.

Douglas não dera sinal de vida.

Bernard finalmente considerou desistir após meia hora de espera. Alterando o apelido do Pokémon no ginásio para “MissUDoug”, levantou-se para ir embora deixando a mensagem de que sentia falta do colega.

Antes de dar dois passos, no entanto, ele o viu nas ruas desertas e pouco iluminadas da cidade. Douglas escondia o rosto, como quem ocultava que passara boa parte do tempo chorando, possivelmente por raiva pela derrota. Sequer levava o celular na mão, sinal de que não estava com o jogo aberto.

Mesmo com tudo isso, foi recepcionado com um grande sorriso da parte de Bernard, que imediatamente o abraçou.

— Está tudo bem… Tenha calma…

— Mas… o ginásio… eles voltaram…

— Eu falei que está tudo bem. Olhe!

Estendendo seu próprio celular ao colega, Bernard mostrou que derrotara o intruso, retomando o controle para o Team Valor.

— Apesar de que eu acho que ele fica muito melhor com a bandeira azul… — riu ele.

Douglas ficou sem palavras; não era mais por conta do domínio do ginásio no jogo que ele fazia tanta questão de defender o Team Mystic, mas sim por saber que era ele que trouxera uma pessoa tão boa para o seu lado, alguém que pela primeira vez na vida estava disposto a ouvir a respeito de seus problemas.

Desta vez, o primeiro passo de Bernard foi pedir por outro meio de contato que não se limitasse a dez caracteres por vez. Acabaram trocando os contatos do Facebook, aonde Douglas usava um perfil em que não mostrava seu nome real ou qualquer coisa que pudesse indicar quem era, mas garantiu estar quase sempre online e disposto a conversar. Um contraponto a Bernard e seu perfil totalmente real, porém com poucos amigos, motivo pelo qual ele raramente usava o site.

Não levou muito até que Douglas continuasse a relatar suas inseguranças, seu sofrimento por conta da exclusão que sofria. A relação entre ele e a mãe (o pai, após a separação, se mudara para Newark) estava longe de ser razoável, apesar de que ela mesma evitava o contato com ele, algo que o garoto considerava muito melhor do que as brigas constantes, tanto pela homossexualidade quanto por ter se tornado um “completo inútil”, nas palavras dela.

O que não deixava de ser verdade, algo que ele mesmo admitia.

— O mundo é cruel demais, por que eu deveria sair e enfrentá-lo?

— Ninguém faz questão de entender as coisas que estão fora da zona de conforto. — dizia Bernard, em uma tentativa de confortar o colega. — Eu não sou tão diferente de você, sempre fui isolado na escola quando eu morava em Wilmington, não fazia parte de nenhum grupo. Eu também fui zoado pelos valentões, mas mesmo eles não se importavam o suficiente comigo pra ficarem pegando no meu pé. Não tirava as melhores notas, nunca tive talento para esportes… eu sempre fui o aluno invisível. Quando não consegui vaga em uma faculdade, decidi largar tudo e vir morar com a minha mãe aqui em Arden. Pelo menos aqui eu não precisava fingir pra ninguém que fazia alguma diferença.

— Mas está muito melhor do que eu. Quer dizer, você conversa com a sua mãe. Você tem um trabalho, interage com as pessoas. Como você consegue?

— Chega uma hora em que você para de se importar. Faz tanta diferença assim para você ser aceito pelos outros?

— Claro que faz! Por que você acha que eu não saio do meu quarto?

— Olhe aonde nós estamos agora…  aqui, no meio da rua, de madrugada, conversando… Você já deu o primeiro passo e nem percebeu.

— Mas é diferente! Você não se incomoda em estar sozinho, não é? Você não está se escondendo de si mesmo, você não tem que lutar com o preconceito, não tem que lidar com as pessoas te julgando por…

Bernard não aguentou mais, calando Douglas da única maneira que conseguiu pensar. Beijando-o.

O tocar dos lábios foi breve demais, não levando dois segundos para eles se separarem com um empurrão de Douglas.

— Você está louco? O que pensa que está fazendo?

— Eu não sei… Eu tive um impulso, sei lá. Nunca tinha feito isso antes.

—Como assim? — a surpresa era visível na face de Douglas.

— Eu lhe falei que sempre fui o garoto isolado, o excluído, o invisível. Nunca tive oportunidade de conversar com alguém assim, eu nunca tive alguém tão próximo, alguém que conversasse comigo mais do que dizer “bom dia, eu gostaria de quatro pães, por favor”. Tá, tem a minha mãe, mas ela não conta. — ele riu, tentando anuviar o clima. — Pelo menos no seu caso as pessoas se importam o suficiente para lhe criticar. Mas e a mim?

Douglas não respondeu. Sempre pensava que tinha a pior vida do mundo, sem nunca fazer questão de olhar para o lado. Pensava que se esconder da sociedade era a maior dor que pudesse existir. Mas agora se via comparando com o rapaz a sua frente, que sofria ainda mais ao ter quase o mesmo tipo de problema, porém fingindo que estava tudo bem.

— Se você quiser eu lhe ajudo. — Bernard propôs. — Podemos nos encontrar mais vezes. Podemos ir pra Wilmington um dia desses, assistir um filme juntos, dar uma volta na cidade, sei lá. Só de estar do meu lado já vai ser muito bom pra mim, assim como você vai começar a perder esse medo de sair de casa…

Douglas apenas o encarou, cogitando a possibilidade. Ele queria isso. Ele precisava se libertar de si mesmo. Ter alguém ao seu lado poderia tornar tudo isso mais fácil.

— Eu vou entender se ficar com medo e não aceitar. Podemos começar bem devagar, nos encontramos de madrugada enquanto jogamos, quem sabe?

Agora foi a vez de Douglas de beijar o colega por impulso. Não fazia isso a uns bons anos; colocar sua língua em atividade novamente era quase como tirar um peso de suas costas.

E se talvez houvessem ressalvas por parte dos mais velhos caso eles decidissem por se ajudar entrando em um relacionamento… bem, isso não era problema do casal. Desde que conseguisse convencer Douglas disso.

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22 de Julho:

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Mais uma sexta-feira de trabalho se descortinava para Bernard. Chegara a se encontrar brevemente com o namorado antes de ir trabalhar duas vezes durante a semana, apesar de não o fazer naquela madrugada. Aliás, sentia-se estranho em dizer que tinha um namorado. Nunca soube dizer o que ele mesmo queria, sem jamais ter a oportunidade de pensar calmamente no assunto. Era bem verdade que se sentia mais tentado pela companhia dos rapazes do que das meninas em seu tempo de escola, mas sem ter tido oportunidade de cogitar algum relacionamento, nunca considerou ter tido de fato uma escolha sexual.

De fato, podia dizer que sentia-se bem em ter começado o relacionamento com Douglas, após perceber o quão compatíveis os dois eram. Tinham os mesmos gostos em comum, sentiam-se bem na companhia um do outro. Sem ter exatamente um parâmetro de comparação, Bernard felicitava-se com a situação em que estava.

Naquela semana, pouco jogou o Pokémon Go, apesar de ter conseguido ganhar mais um nível. O ar da novidade já passara, diminuindo a empolgação. Em vez disso, passava as horas livres conversando com Douglas pelo computador, uma companhia diferente do usual para ambos.

Ele pensava nisso no momento em que a primeira fornada saía e o mercado abria ao público, às seis horas da manhã. O movimento era menos intenso na primeira hora, restrito a três ou quatro senhoras de mais idade que não tinham muito saco para ficar em casa durante o amanhecer.

Enquanto seu colega de trabalho o auxiliava colocando mais massa crua no forno para que os pães estivessem prontos quando o movimento aumentasse, Bernard ficava no balcão, entediado após atender as clientes que lá estavam.

— Bom dia… eu… eu vim comprar dois pães…

Bernard olhou para trás, tendo certeza de que a voz de Douglas que ouvira era uma peça pregada por sua cabeça, resultado da vontade de vê-lo.

Mas não era. Ele estava bem na sua direção, do lado de fora do balcão, esperando para ser atendido.

O rapaz sorriu. Seu namorado, tremendo com o nervosismo, sorriu de volta.

Nenhum deles poderia agradecer o suficiente pela existência do Pokémon Go. Não fosse por ele, os dois provavelmente jamais teriam se conhecido. E Douglas não teria saído de seu quarto como fazia agora, começando a superar seus medos, a sacola marrom carregando bem mais do que a massa de trigo assada para casa.

E pensar que se tivessem escolhido o mesmo time, ao invés de equipes rivais, jamais teriam tido a oportunidade de interagir entre si.


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Notas finais do capítulo

Nada como terminar a fic no último dia...
Mas está aqui. Espero que gostem.