Singularidade escrita por SayakaHarume


Capítulo 1
I. Paralelismo


Notas iniciais do capítulo

Como vou postar todos os capítulos agora, vou deixar pra dizer os papos emocionais nas notas do último capítulo.
Por agora, só tem algo que eu quero dizer:

me perdoa, pfvr



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Paralelismo

estado de duas linhas ou de dois planos paralelos; posição paralela de um objeto em relação a outro. 2. correspondência ou simetria entre duas ou mais coisas.

 

Aklen nasceu em uma noite de chuva, no ápice da primavera. Sua mãe gostava de contar como ele apenas parara de chorar quando o sol surgiu, e ficou com os olhos arregalados mirando o horizonte enquanto ela o ninava na cadeira de balanço próxima à janela. Não haveria uma única vez que ele não sorriria discretamente diante de tal imagem mental, mas não particularmente acreditava nisso. Recém-nascidos só se interessavam em comer e dormir, e assistir o nascer do sol não entrava em nenhuma das categorias.

A ilha onde crescera não era espetacularmente grande, mas era habitada por poucas famílias, então não importava muito.

Exceto pela parte que importava para Aklen, mas ainda chegaremos nisso.

Por enquanto, o fato mais importante é o fato de que Aklen era o mais velho de oito filhos e amava cada um de seus irmãos com a ferocidade de um leão da montanha defendendo seu território, e que não havia nada que ele não faria para protegê-los da criatura vil que eles eram obrigados a chamar de pai.

A vida nunca foi fácil na Ilha Sussurrante. Para Aklen, então, era especialmente torturante.

Seu dia começava bem antes do nascer do sol, quando se apressava para preparar o café da manhã o mais silenciosamente que podia. Depois, tinha que acordar seus irmãos um a um e alimentá-los antes que seu pai, Derin, acordasse, e despachar todos para a rua. Ainda era cedo para a escola ou, para alguns, trabalho de aprendiz, mas o auto proclamado chefe da família tinha o péssimo hábito de acordar de péssimo humor e Aklen era o único que realmente podia suportar os pesos dos punhos de Derin e ainda ir para as docas trabalhar.

Os gêmeos de três anos, Kaner e Seven, e a bebê Nimet eram os únicos que ainda ficavam em casa, e Aklen passava o dia temendo que um deles chorasse alto na hora errada e ele não estivesse por perto, mas, visto que ele era a principal fonte de sustento da casa, não havia muito que fazer.

― Sendo inútil outra vez, moleque? ― Derin resmungava quando via Aklen cuidando de uma das crianças. ― Devia estar nas docas fazendo dinheiro ao invés de ficar paparicando peso morto.

 Aklen apenas mordia a língua e beijava a testa de seus irmãos antes de ir para o trabalho, o pedido para que eles ficassem quietos pelo resto do dia impresso em seu rosto.

O trabalho nas docas era pesado, mas Aklen o fazia desde que tinha sete anos.

Começara aos poucos, como um moleque de recados, logo depois da escola. Na época, tinha apenas Ruya e Demir para cuidar, mas logo Isin nasceu. Também era uma época onde Sumer, sua mãe, ainda acreditava que valia a pena sair da cama.

Aklen ia ganhando novas funções à medida que crescia, e agora, em seus quinze anos, trabalhava como uma espécie de faz-tudo, geralmente ajudando a descarregar os navios que chegavam com a pesca do dia e reparos em geral. Também era aprendiz de carpinteiro, e seus serviços eram bem quistos por entre os pescadores. O garoto passava cada momento de seu dia dedicado ao trabalho, garantindo que, ao contrário dele, seus irmãos não tivessem que desistir da escola.

E era nisso que pensava naquela manhã, enquanto executava alguns reparos em um bote, e Ruya veio visitá-lo.

― Você deveria estar na escola, não? ― ele a saudou com um sorriso.

Ruya exibiu a língua de maneira malcriada antes de rir e abraçar o irmão mais velho. Aklen beijou os cabelos cor de areia de sua irmã. Eles dois eram os únicos que tinham herdado os cabelos claros e a pele parda de Sumer. Talvez por isso fossem os que mais sofressem na mão de Derin, que podia ser fodidamente paranóico.

― A professora ficou doente outra vez ― Ruya esclareceu, seus braços ainda envolvendo Aklen. ― Não faz diferença. Aprendi as operações matemáticas séculos atrás.

― É claro que aprendeu. ― Aklen riu, orgulhoso ― Não é você uma espertinha? ― Beliscou um ponto abaixo das costelas de Ruya, e logo ela começou a rir das cócegas.

― Não seja chato! ― Ela se desvencilhou do abraço, rindo abertamente. ― De qualquer maneira, tenho um tempo para matar antes de ter que ir para a casa de renda. ― Ela se referiu ao local onde era aprendiz de rendeira depois da escola.

― Onde estão os outros? ― Aklen franziu as sobrancelhas, voltando ao trabalho enquanto Ruya se empoleirava em cima de outro bote.

― Nenhum voltou pra casa. ― Ela sabia muito bem o que realmente preocupava seu irmão. ― Demir e Isin foram direto para o trabalho. Época de plantio nunca se importam de ter uma mão extra, eles tiveram sorte. E Demet... a pestinha deve ter sumido no meio do mato com os amigos. Ela vai voltar um trapo, estou avisando.

― Você não era muito mais comportada quando tinha a idade dela. ― Aklen riu, sem tirar os olhos da tábua que media. ― Apenas se certifique que o pai não vai vê-la antes dela se lavar.

― Vou esperar por ela na entrada para a montanha, não se preocupe ― Ruya assegurou, abraçando seus joelhos. Ela mordeu o lábio inferior antes de soltar mais uma frase. ― Estou preocupada com a mamãe, Aklen.

Ele suspirou, mas a declaração não o surpreendeu.

― Eu também, Ru ― sussurrou, pegando a serra. ― A velha Meral veio falar comigo. Outro dia Kaner foi até a casa dela chamá-la por que Nimet não parava de chorar.

― Você não me contou isso. ― A garota arregalou os olhos.

― Não queria te preocupar ― falou forçando um tom casual enquanto serrava. ― A velha Meral concordou em ficar de olho nos gêmeos e na Nimet durante o dia em troca de alguns reparos.

― É por isso que está indo pra casa mais cedo?

Aklen assentiu antes de falar:

― É algo temporário, acho, mas talvez eu possa negociar algo mais duradouro.

― Eu posso voltar mais cedo e ficar com eles. Não é como se o trabalho na cozinha da hospedaria estivesse rendendo muito, de qualquer maneira.

― De jeito nenhum! ― Aklen ergueu a cabeça e a voz de maneira tão abrupta que Ruya se sobressaltou. ― Finalmente consegui tirar os mais novos da casa, ninguém entra lá sem que eu esteja presente.

― Ultimamente não está tão ruim ― Ruya sussurrou. ― O pai apenas fica xingando e bebendo na varanda. Já foi pior.

― Ele não está sendo pior por falta de oportunidade ― Aklen rosnou, voltando ao trabalho. ― Você disse que está preocupada com a mamãe. Foi ele que a deixou desse jeito. Não se lembra como ela era antes?

Ruya brincou com um fiapo na barra de seu vestido.

― Ela era como um raio de sol ― sussurrou, por fim.

― Eu sei que você quer ajudar, mas eu realmente não quero você ou os outros dentro da casa sem mim ― Aklen falou mais calmo. ― Sei que é longe da situação ideal, mas eu vou dar um jeito. E mamãe... ela parece pior do que realmente está. Quando foi a última vez que ela te deixou entrar no quarto? ― Ruya respondeu com um dar de ombros. ― Ela até deu uma melhorada, sabe? Ontem eu fui deixar o jantar dela e ela estava lendo perto da janela.

― Como nos velhos tempos. ― Ruya sorriu minimamente.

Aklen não respondeu. Não queria dizer para sua irmãzinha que nada iria voltar a ser como era nos velhos tempos.

Quando chegou em casa mais tarde naquele dia, com Nimet em seus braços e Kaner e Seven de mãos dadas andando tão perto que Aklen não sabia como ainda não tinha tropeçado neles, se deparou com a figura inerte de Derin na cadeira da varanda. Fez o possível para manter o desprezo fora de sua face enquanto guiava seus irmãos pra dentro da casa.

Ruya não demorou a chegar, trazendo uma Demet com o cabelo encharcado e um sorriso de quem está muito satisfeita consigo mesma. Aklen trocou um olhar com Ru, que apenas revirou os olhos e foi para o quarto se trocar.

― Se divertiu hoje, Dem? ― Aklen perguntou a sua irmãzinha enquanto começava a preparar o jantar.

― A gente foi caçar rãs no lago! ― Demet praticamente saltitava. ― Mas não tinha nenhuma, e um dos meninos tentou me empurrar, mas eu que empurrei ele!

― Oh, e como foi que você ficou toda molhada? ― Ele ria enquanto colocava lenha no fogão e alcançava um pavio.

― Ele não sabia nadar, então eu tiver que ir ajudar, ué ―Demet falava em um tom quase aborrecido, como se estivesse explicando algo óbvio, mas seu sorriso não vacilou, o que fez Aklen rir ainda mais.

Derin resmungou algo inteligível, o que fez todos congelarem por alguns instantes. Demet deixou seu sorriso morrer quando se virou para a porta, esperando o pai entrar gritando impropérios, mas nada aconteceu. Aklen deixou escapar um suspiro, e quando Demet voltou a olhar para ele, ela trazia os olhos castanhos cheios das lágrimas que ele uma vez já havia derramado na idade dela.

― Ei, está tudo bem. ― Foi até a menina e a envolveu em um abraço, limpando as lágrimas com dois beijos. ― Apenas vá se trocar, ok? Não quero que você adoeça.

Demet assentiu antes de correr e sumir pela mesma porta que Ruya tinha passado minutos atrás. Aklen acariciou a cabeça dos gêmeos, que tinham interrompido sua brincadeira e também garantiu a eles que tudo estava bem.

Exceto pela parte que não estava.

― Ruya! ― Aklen chamou com o tom de voz mais discreto que conseguiu, de olho na porta. ― Sabe do Demir e do Isin?

― Oh, Isin deve estar chegando, quando eu passei ele já estava ajudando fechar tudo. ― Ruya voltou para a cozinha e se apressou em ajudar o irmão a preparar o jantar. ― A temporada de caça está para começar, então a procura por pães e bolos...

― Ah, sim. ― Aklen tinha esquecido que essa era uma época atarefada para o patrão de seu irmão.

Ruya apertou o braço de Aklen ao vê-lo olhar nervosamente para a porta.

― Ele sabe que vai ter que entrar pelos fundos. O pai não vai perceber.

― Eu sei, é um garoto esperto. Não é com ele que estou preocupado. ― Aklen mordeu o lábio inferior. ― Demir deve ter se distraído de novo na taverna, eu disse milhões de vezes para ele não ir lá.

― Ele é tão parecido com você ― Ruya sussurrou, sorrindo. ― Não consegue resistir quando vê alguém contando uma história.

― Se o pai acordar e ele não estiver aqui... ― Aklen estava mais horrorizado com a perspectiva do que irritado pela desobediência do irmão. ― Eu deveria ir procurar por ele. Você e os outros se tranquem no quarto e...

E naquele momento o garoto de onze anos surgiu pela porta. Demir sorria, encabulado, as mãos nos bolsos da calça encardida. Aklen suspirou aliviado enquanto Ruya se adiantava para puxar Demir para mais perto, o guiando para os quartos e beijando o topo de sua cabeça cheia de cachos negros.

― Nós vamos falar sobre esse seu atraso, mocinho ― Aklen alertou, mas sua voz não tinha nenhum peso de ameaça.

― Desculpa, Aklen ― Demir sussurrou, envergonhado, se escondendo no meio abraço da irmã. ― Chegou um barco de Alto Capital, sabia? Eles trouxeram tanta coisa! ― Os olhos do menino brilhavam enquanto narrava. ― Trouxeram tantos livros! Por favor, podemos comprar alguns? E os mapas! Ah, eu quero conhecer todos esses locais que os marinheiros estavam falando! Posso, posso?

Aklen trocou um olhar dolorido com Ruya, antes de sorrir para seu irmãozinho.

― Vamos ver isso amanhã, ok? Logo eu vou estar recebendo um pagamento de um serviço grande e quem sabe a gente possa comprar um presente pra todo mundo. ― Acariciou os cachos negros. ― Agora vá se lavar para o jantar.

Demir sorriu enormemente antes de correr para o quarto, sem nem notar o peso nos ombros dos irmãos.

― Ele é um sonhador ― Ruya franziu as sobrancelhas e cruzou os braços, mordendo o lábio inferior. ― Você protege ele demais, Aklen.

― Eu protejo todos eles, Ruya. Eu tentei proteger você também. ― Aklen passou as mãos pelos cabelos, suspirando, cansado. Deixou os ombros caírem ao mesmo tempo que sentava em uma cadeira. ― Eu não quero que eles fiquem como eu. Não quero que tenham que desistir de nada. Eu vou mandar cada um de vocês pra Alto Capital, pra estudar, pra serem alguém. ― Passou a mão direita no rosto, e repuxou o lábio inferior por um instante. ― Eu não sei como eu vou fazer isso, mas eu vou.

―Eu amo você por querer isso para nós. ― Ruya pegou a faca e alcançou a tigela de legumes. Lançou um olhar triste para o irmão, ainda que ostentasse um sorriso. ― Mas você tem que aceitar que isso não vai acontecer. Pessoas como nós... não saem daqui.

Aklen permaneceu em silêncio, olhando a irmã cortar os legumes e prosseguir com os preparativos para o jantar. Também lançou um olhar para os dois pequeninos que brincavam aos sussurros, perdidos em sua própria linguagem de gêmeos. Seus irmãos. Cada um especial e incrível a sua maneira. Os motivos para ele não ter fugido no primeiro navio rumo ao continente.

Levantou-se de supetão, se dirigindo a porta dos fundos. Não parou até atingir o gramado que se estendia aos fundos da casa. Sentiu que arquejava, em busca de ar, em busca de não deixar aquele nó na garganta subir e explodir as lágrimas nascidas da frustração.

― Por que tem que ser tão difícil? ― sussurrou para si mesmo, novamente passando as mãos pelo rosto. ― Eles não merecem que tudo seja tão difícil.

Não percebeu quanto tempo ficou ali até ouvir passos se aproximando. Virou a cabeça para ver o pequeno Isin se espremer pela cerca e entrar na propriedade. Era difícil ver naquela noite de lua crescente, mas julgou que o menino sorriu ao vê-lo ali. Sorrindo ou não, Isin correu até Aklen, até envolver seus braços ao redor do irmão.

― Ei, Ak. ― Apertou o máximo que podia o abraço, o que fez Aklen sorrir, e o nó em sua garganta se aliviar um pouco mais. ― Eu aprendi uma coisa nova hoje!

― Sério? ― Aklen retornou o abraço, sorrindo. Sua voz traiu um pouco o choro que tentava segurar, mas isso foi ignorado por ambos. ― O que?

― Bolos recheados! ― Isin se moveu apenas o suficiente para poder levantar a cabeça. ― Ainda não tenho permissão para mexer no forno sozinho, mas a fornada que eu fiz vendeu rapidinho, você tinha que ver! Eu queria ter trazido alguns pra todo mundo, mas vendeu tudo mesmo!

― É claro que vendeu! ― Aklen beijou a cabeça do irmão.

― Eu prometo que amanhã eu trago um pra você, ok? ― Isin continuou. ― Não se preocupe, mano, vai dar tudo certo. ― E dito isso, largou Aklen e correu para dentro, provavelmente para saudar os outros irmãos.

E era por isso que Aklen preferia morrer do que deixar que seus irmãos continuassem naquela vida.


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