CONTOS E ENCONT(R)OS - O Papel de Louise escrita por Carol Stark


Capítulo 1
Capítulo 1 - O Papel de Louise




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Ocorreu há algum tempo. Incontável e abstrato tempo.

Ainda sinto-me apreensivo em recordar tal acontecimento. Mas preciso relatar-lhes algumas experiências um tanto incomuns, ou não, para aliviar-me e instigar-lhes ao despertar. Um despertar necessário, que cedo ou tarde faz-se presente.

Este foi meu primeiro e marcante acontecimento em que uma teia de mistérios me envolvia e eu simplesmente não percebia. Bem, sempre trabalhei e li bastante em horários mais livres. As literaturas investigativas, de ficções científicas, as românticas ou aventuras diversas ocupavam fielmente minha cabeceira e penso se minha atenção era mal dividida entre minha esposa e meu trabalho e leituras. Na verdade, não é que eu não desse atenção à minha mulher, mas trabalhava e lia mais do que conversava com ela.

Preciso reconhecer e justificar-me quanto a isso.

Certo dia, ainda pela madrugada, levantei-me com sede e segui para a cozinha. Minha esposa, Louise, ainda acordada, escrevia algo sentada à mesa de jantar. Cheguei perto dela a fim de ver o que colocava no papel. Porém, antes, olhei de relance para o seu rosto e vi que ela chorava copiosamente. Inclinei-me para o papel, mas ela logo ignorou-me levantando-se. Permaneci, então, estático, mirando minha bela Louise caminhar para nosso quarto, quiçá. Desisti da água. O modo como minha esposa comportava-se me afligia e me incomodava enormemente. Não tínhamos filhos e era apenas ela e eu naquela espaçosa casa. Lembrei-me, naquele momento, de alguns de nossos bons momentos unidos: quando conversávamos animadamente e passeávamos; quando nos amávamos; quando discutíamos para logo em seguida declararmo-nos um para o outro sem dúvidas sobre nossos sentimentos mais verdadeiros. Estas minhas lembranças se concretizaram em silenciosas lágrimas. Algo devia estar errado.

***

Amanheceu finalmente. Mal dormi e senti-me envolto em pesadelos; sonhos nebulosos em que eu me via de repente em lugares estranhos, nunca vistos antes por mim. Ou com pessoas que eu não conhecia. Conversava com tais pessoas, não me lembro muito bem sobre o quê. Tive a impressão de conversarmos sobre mim mesmo. Parecíamos resolver algo, mas eu me mostrava impaciente, indignado (...). Coisas que ainda estão no meu subconsciente.

Meus pensamentos ainda são nebulosos.

Já estava desperto, mas voltei de meus devaneios e olhei para minha companheira ao meu lado.

Ela já não estava lá. Assustei-me. Afinal, como não a vi sair? Eu já não estava acordado relembrando os sonhos e pesadelos?!

Pergunto-me ainda se tudo que sonhei foi mesmo um sonho. Hoje acredito que de fato estava em tais lugares, com tais pessoas... Conversando sobre mim. É minha única explicação de não a ter visto sair naquele momento.

Estranho? Eu rio desta sensação. Sim. Sei que é estranho, mas não tenho hipótese melhor.

Foi quando percebi que o tal papel da madrugada, no qual Louise escrevera estava em cima de nossa escrivaninha. Sem dobradura alguma como se ela não temesse que eu o pegasse. Mas enfim, assim estava. Já quase o tocava, ansioso por saber qual o motivo da aflição de minha eterna Louise. Mas um forte ruído me impediu de lê-lo naquele momento.

Lembro-me claramente: Louise adentrou nossa casa como se houvesse esquecido algo. E realmente havia. De nosso quarto, mirei-a atravessar a sala de estar em busca do objeto esquecido. Eu ia ao seu encontro perguntar-lhe o que acontecia, mas recuei covardemente ao ver por debaixo dos óculos escuros que ela usava, uma lágrima marcar a maçã do seu rosto. Ela, então, olhou para um grande espelho decorativo em nossa sala e, com um suspiro encarando-se e pondo uma mexa de seus cabelos cor de mel por trás da orelha, falou meu nome:

— Ah, Edgar!

No segundo seguinte voltou-se apressada para a porta de saída e eu gritei:

— Espere! Louise, espere!

Louise já havia batido a porta e um grande aperto apoderou-se de meu coração. Eu não soube explicar o motivo, mas agora posso compreender melhor. Aquele suspiro seguido de meu nome tocou-me fundo como um lamento e ao mesmo tempo, um chamado.

Eu precisava falar com minha esposa. Conversar sobre o que estava acontecendo. Reaproximar-me dela e sentir-me feliz novamente.

Voltei para nosso quarto em meio a estes pensamentos e sentei-me em nossa cama. Inclinei-me um pouco para a escrivaninha onde repousava o pequeno papel. Comecei a lê-lo e não acreditei no que via.

Como aquilo teria ocorrido? Era-me impossível lembrar até então! Não seria um desabafo de Louise? Não! Eu não podia acreditava que aquilo fosse a minha pura realidade.

Seria um desejo? Mas como minha mulher me teria desejado tão horrenda coisa?! Não podia ser! Senti uma onda de raiva subir-me a cabeça que imediatamente começou a latejar. Louise, em tais palavras escritas demonstrara toda sua angústia mais profunda e amarga. Pensei que poderia ser um plano futuro dela para comigo e me vi possesso. Tive vontade de persegui-la (...). Mas uma força maior dizia-me para eu não realizar tal coisa, e me acalmei.

Olhei ao redor. Todo o quarto. Nosso quarto. Tantas histórias vivemos, por tantas coisas passamos e ainda éramos tão jovens e apaixonados...

Algo me dizia que tudo aquilo era real.

Louise apenas escrevera sua dor. E isso era para mim, naquela situação, uma prova de seu amor por mim.

Percebi amargamente a realidade e um abismo abriu-se em meu ser. Mergulhei em tão profunda perturbação que ainda me recupero de tal “queda”.

A conversa que um dia eu quis ter com minha amada para perguntar-lhe o que acontecia; para vivermos felizes novamente, quem sabe um ainda venha a acontecer, quem sabe nos vejamos mais uma vez; quem sabe um dia nos reencontramos, quem sabe um dia... Pois,

Estou morto.

Literalmente morto.

Não me sinto mais apreensivo em recordar tal acontecimento.

Isto ocorreu há algum tempo... Incontável e abstrato tempo. 


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