Vazios escrita por Shalashaska


Capítulo 93
XCIII


Notas iniciais do capítulo

25/04/2020 - Aha! Voltei com um menos de um mês!
Estou me esforçando pra escrever diariamente, então solto aqui um capítulo imenso. O próximo talvez leve mais ou menos o mesmo intervalo que houve entre o anterior e este, ou seja, uns quase uns 20 dias.
Levei em consideração os pedidos pra ver o Strange, mesmo que inicialmente não estivesse no roteiro. Bom, vamos acompanhar a Wanda em histórias esquisitas?
Obrigada por lerem, pessoas cheirosas!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/697672/chapter/93

Wanda, Agatha e Ebony jaziam parados ao redor de um círculo de cogumelos na zona rural do interior de Sokovia, já prestes a ser banhada pela luz do entardecer. Agatha reclamou por minutos inteiros antes de chegar ali, com o gato preto acompanhando seus protestos, mas nenhum deles tinha uma ideia melhor do que a de Wanda.

E também não tinham aquela dose de imprudência tão característica dos Maximoff, principalmente de Pietro.

Mesmo prestes a executar seu plano, a bruxa idosa não se cansava de lhe jogar mais avisos:

— Você está ciente de que isso é precisamente uma coisa que não se deve fazer. Nunca. É um Círculo de Fadas!

— Tecnicamente, já li em outros lugares chamarem de Círculo de Bruxas e Círculo de Dragão. Eu tenho um plano, Agatha.— Wanda sorriu. — E uma adaga de ferro, se for necessário..

Ebony soltou um longo som estralado com sua língua felina, todo desdenhoso.

— Nem toda fada se fere com ferro, bruxa boba.

— Mas muitas sim.

— Eu não posso lhe acompanhar. — Agatha suspirou. — Já tive minha cota de infortúnios com fadas e tenho sorte de apenas ser amaldiçoada a não poder comer cogumelos.

— Eu sei. Não esperava que viesse comigo.

— E nem toda fada gosta de gatos, Wan. É mais seguro que eu fique aqui.

— Bom, infelizmente nem todo humano gosta de gatos também.

— Você tem um ponto. Eu até iria argumentar que fadas são mais ameaçadoras porque podem nos prender em seu reino até a morte por inanição, mas… Sabemos que humanos também conseguem fazer isso com gatinhos.

— Uau. — Wanda parou antes de colocar os pés dentro do círculo, suas roupas vermelhas esvoaçando com o vento insistente e fresco. Em outra medida de segurança, a feiticeira trajava sua tiara, presente de seu pai. Lhe daria um foco a mais para escapar de qualquer ilusão ou tentativa de engodo dos feéricos. — Essa conversa ficou sombria muito rápido. Não se preocupe, Ebony. Nenhuma fada ou humano vai colocar as mãos em você. Não vou deixar. Mas… Para não correr nenhum risco, não exijo que venha comigo. Até já, gato tonto.

— Por todas as trevas, que seja mesmo um “até já”.

Wanda riu e colocou os dois pés dentro do círculo de cogumelos.

Mais de um livro e relato diziam que isso não era uma boa ideia, mas Wanda não tinha tempo suficiente para tentar estreitar laços com feéricos e enfrentar Chthon. O correr dos anos, décadas e milênios era um conceito diferente para as fadas e até uma amizade realmente acontecer… Talvez já estivesse indo para sua vida seguinte. Tomou medidas de prevenção, como a adaga de ferro e a tiara, e contava também com boa dose de seus poderes pulsantes e caóticos para escapar caso tudo fosse pelos ares.

Mas isso não a impedia de se encantar com o momento.

Assim que a sola de seus sapatos alcançaram a grama ao centro do círculo, o mundo tingiu-se com outra tonalidade de cor. Agatha e Ebony sumiram. Havia só o verde, o céu do final da tarde e névoa.

De súbito, muita névoa.

Ondas e mais ondas de brumas aproximaram-se da feiticeira. Por se tratar do ocaso, era mais fácil para Wanda voltar para o mundo dos homens. O véu entre as realidades jazia mais fino. Ela permaneceu imóvel, cercada por espesso e gélido nevoeiro, até que ouviu o som indistinto de conversas esparsas. Um idioma que não entendia. Sua pele arrepiou-se em seu pescoço quando uma figura ganhou contornos entre a névoa, uma imagem longe das fadas de histórias infantis.

Era grande. Talvez três metros. Esguia, porém. Magra e de cabelos longos, muito longos e escorridos. Ou então era um manto comprido, com mangas que se confundiram com as pontas das madeixas alvas? Impossível discernir, era tão clara e tão translúcida quanto as brumas e Wanda só conseguia prestar atenção em seus dedos de pontas afiadas e seus olhos inteiramente negros.

Ela piscou lentamente. Sua voz não era nada igual a qualquer coisa que Wanda conhecia, mas ela podia ver que a articulação das palavras em seu idioma era calculada e estranha, pois aquela era uma criatura inumana tentando falar a sua língua.

— Mortal. Não deveria estar aqui.

— Não represento ameaça.

— Não, não representa. — A fada não se afetou pelo sorriso da feiticeira, logo ela que tanto se inspirou na doçura e na persuasão da amiga russa, Natasha. Wanda tentou disfarçar quando engoliu seco. — Você adentrou o portal deliberadamente. Por que tamanha...Ingenuidade?

As consequências daquele ato pairavam no ar.

Deseja nos servir? Dançar durante a eternidade? Morrer? Ou pior?

Essas e mais outras possibilidades jaziam numa lista mental dentro da cabeça de Wanda Maximoff, mas seu coração bombeava rápido e cheio de adrenalina. A magia dentro de si parecia se agitar ao entrar em contato com outra fonte de tamanho poder. O caos e a cor vermelha lhe davam ânimo para que a possibilidade mais estranha de todas se tornasse real:

Que a fada lhe ajudasse.

— Trago notícias do mundo material, senhora.

Uma risada. Dentes consideravelmente pontiagudos. A fada inclinou sua cabeça, o restante da névoa acompanhou seu movimento. Wanda cogitou que haviam mais fadas ali, ainda ocultas ao seus olhos humanos, e subitamente ficou mais ciente do peso da adaga de ferro na bainha amarrada em sua coxa.

— E o que possivelmente poderia nos interessar?

— Montanha Wundagore.

O rosto dela ficou sério novamente. Se desfez de repente, apenas para reaparecer mais perto da feiticeira, agora menor e próxima da estatura de Wanda. A encarava diretamente e seu olhar era tão invasivo que preferia dialogar com uma criatura de três metros. Ao menos ela pode ver com mais nitidez o contorno do que provavelmente seriam suas asas em suas costas.

— Conte-nos mais, mortal.

— Há um deus sombrio na Montanha e sua força ecoa cada vez mais longe. Chthon. A floresta deixou de ser o que era… E há uma forma de banir o deus e recuperar o lugar.

Wanda ainda não tinha uma ideia concreta de como banir Chthon, mas sabia que haveria alguma forma, afinal… Um deus perverso não ficava numa montanha apenas porque sim. Alguém tinha feito isso à ele. Quando e porquê, já era um mistério.

E nenhum desses detalhes ausentes lhe ajudariam a convencer a fada.

— Já houve mais de uma tentativa. E mais de uma falha. Sua prisão de carne não é o suficiente para sequer atravessar a mata.

Prisão de carne? Seu corpo. Céus, ela realmente estava falando de seu corpo mortal.

— Sei que sim, senhora, e compreendo seu argumento. Mas com a vossa intervenção… Poderei atingir meu objetivo e a floresta terá sua liberdade.

A criatura soltou um grunhido furioso, a névoa que compunha sua forma ascendeu numa espiral, esticando-a e esticando-a rápido. Ouviu o som do bater de asas de insetos. Wanda já não sabia calcular quantos metros ela tinha, só sabia que bastava um tapa dela ou menos para ser esmagada.

— Não ouse nos oferecer de volta um domínio que era nosso!

A Feiticeira poderia ser covarde e recuar, dando voltas ao redor dos cogumelos para retornar ao mundo dos mortais ou virando sua roupa do avesso. Talvez levasse uma maldição consigo e, mesmo assim, muitos considerariam essa alternativa a mais sensata de todas. Ela, no entanto, deu um passo para frente, seus dedos ansiosos para usar magia.

— Mas não é mais. A entidade Chthon o tomou. A Montanha sangra horrores. Sua floresta está infectada de criaturas vis e fragmentos de portais. Não há nada natural lá.

Silêncio. Calmaria.

— Você está propondo um acordo.

— Um humilde serviço. — Fez uma breve reverência. — Com sua proteção ao longo da floresta, poderei derrotar Chthon e o território voltará a ser livre para todas as criaturas… Inclusive as fadas, senhora.

— Ousadia, eu vejo. Por vir aqui. Por achar que consegue completar sua tarefa. — A fada voltou a ter a estatura de Wanda. Seus imensos olhos pretos carregavam uma expressão cautelosa, um tanto ácida também. A Feiticeira não conseguia ouvir seus pensamentos e não tentaria mais a fundo. Sua aura confundia-se com a névoa. — Desejas um manto para esquivar-te dos inimigos? Um escudo de ossos? Uma arma forjada numa estrela? Um toque que provoque morte?

Um teste.

— Sua gentileza é sem tamanho. Peço apenas minha proteção, a de minha mestra e a de nossa companhia, um gato preto, na próxima lua cheia.

A fada demorou a responder. Contratos com os feéricos não eram coisas levianas a se fazer e Wanda compreendia os riscos perfeitamente.

Concedida, mortal. Enquanto a lua brilhar no céu na primeira noite de lua cheia, tu e os teus estarão protegidos.

— Sua nobreza e compaixão serão sempre lembradas.

— Não te enganes, insolente. Tu tivestes sorte e um pouco de minha consideração. Eu poderia condenar-te a destinos que ainda são narrados com temor em contos e baladas, mas atraístes minha atenção. Geralmente, também não é boa coisa, mas qualquer destino que Chthon te reserve é pior do que a minha mais vil maldição.

Wanda sorriu. A honestidade das palavras da fada era tão afiada quanto suas garras e seus dentes. A Feiticeira também não sabia ser menos inconveniente:

— Se me cabe a humilde palavra, senhora, então qual é a vantagem em me ajudar?

Todas. Se cumprir com tua palavra, fadas terão de novo a sua terra. Se tua tarefa for infrutífera, assistirei o fim de uma mortal arrogante e verei seu corpo nutrir as raízes das árvores.

Não estava fora do que Wanda esperava. Quem sabe por sua própria natureza ou então influenciadas pelas estações severas, como o inverno hostil, que fadas eslavas poderiam ser especialmente… Amargas. Rusalki, Vilas, Leshachikha, Keshalyi, Bereginy… Mas, de qualquer modo, não costumavam ser injustas e toda a interação com aquela em especial trouxe Wanda para mais perto de seu objetivo.

— Sábio pensamento, senhora.

— Posso ter seu nome?

Ah. Uma tentativa de acorrentá-la. Uma regra básica para se lidar com feéricos: Não conceder o nome real, somente oferecer uma maneira para ser chamado. Wanda tinha aprendido isso nas primeiras semanas na casa de Agatha Harkness.

— Vou lhe dizer como pode me chamar, se também puder retribuir.

A fada quis lhe mostrar os dentes, mas não era um sorriso.

— Bruma.

Os olhos da jovem faiscaram.

— Me chame de Feiticeira Escarlate.

Após uma última referência, Wanda aproveitou os últimos raios de sol para fazer seu caminho de volta para o mundo real.

E despertou sob o céu escuro e polvilhado de estrelas.

— Ah, pelo caos! Wanda!

Ebony correu ao seu encontro, miando e ronronando, porém não avançou além dos cogumelos.

— O… O quê?

— Entrar no Reino das Fadas é perigoso, lembra? — Agatha, que pelo visto tinha conjurado uma cadeira de vime para si, levantou-se para cumprimenta-la. — Você ficou horas aí dentro.

— Céus. Só deu tempo de… Ver o sol se pôr. Pareceu… Não, não sei quantos minutos se foram.

— Já passa de meia noite. Deu sorte. — A bruxa se aproximou, ajudando-a a sair do círculo de cogumelos com extremo cuidado. — Muita sorte.

— É, a fada me disse isso.

— Espere. — O gato parou de ronronar. — Eu já estava achando uma completa vitória você sair de lá em pouco tempo, relativamente falando. Você chegou a falar com um ser feérico?

— Sim. — Wanda suspirou. Agora que a adrenalina começava a cair de seu corpo, ela se sentia um tanto cansada, ainda que acompanhasse o ritmo de sua mestra e do bichano. Também pensava que tinha que contar isso pra Nat. E pra Shuri. E James. Quem sabe seu pai. Bem, ela queria contar sobre sua aventura para todo mundo.— E nós temos até a próxima lua cheia para nos prepararmos para derrotar Chthon.

— Bom. — Agatha abriu um portal para casa. — Não podemos perder tempo, então.

*

A visita ao Kamar-Taj no dia seguinte poderia ser resumida em três palavras por Wanda Maximoff: belíssima, breve e… Estranha no final. No início, ela sabia que poderia esperar algo interessante, já que Agatha Harkness demonstrara tamanho respeito pelo local a ponto de evitar trazer Ebony a fim de não causar nenhuma confusão, mas suas expectativas não chegaram perto da realidade.

A capital daquele país entre a Índia e China era calma e ao mesmo tempo efervescente. As cores das lojas, da multidão e das orações penduradas em tecidos nos templos conferia um tom alegre à cidade, que ainda se recuperava de um terremoto de 2015. No entanto, apesar do trânsito intenso, mal se ouviam buzinas através do som ambiente de inúmeras conversas e sinos ocasionais. Wanda caminhava ao lado de Agatha totalmente mesmerizada, sem saber ao certo que olhar primeiro. Queria gravar tudo na memória, cada aura e egrégora. Imaginava como contaria para Bucky sua visita, pensando talvez em resumir Katmandu como uma cidade de aura com tons terrosos e de telhados bonitos, onde o sol poente incidia de um jeito diferente, contemplativo. Queria também que Pietro estivesse ali e principalmente que pudesse provar uma das comidas apimentadas que tinha visto na esquina ou o refrigerante caseiro de um ambulante.

Sua mestra a lembrou que não estavam na cidade por mero turismo, mas isso não impediu que Wanda passasse as pontas dos dedos numa estrutura de cilindros de orações em sânscrito durante o caminho, muito menos que admirasse os tecidos coloridos pendurados entre uma construção ou outra. Poderia caminhar por horas, sedenta por conhecer tudo, até que já haviam chegado à uma porta de madeira escura e entalhada, tão detalhada quanto as outras que viram na vizinhança. Parecia um lugar comum e na realidade se tratava do centro de atividades de Mestres das Artes Místicas. Agatha não precisou bater, somente pressionou sua mão magra e enrugada na superfície da porta para destrancá-la.

Não demorou para atravessarem cômodos com treliças de madeira e pátios de treinamento com estudantes para, enfim, chegarem a uma construção larga e alta: A biblioteca. Wanda não tinha medo de ser descoberta como “Wanda Maximoff” ou só a “Feiticeira Escarlate”, pois tinha usado feitiços simples e efetivos para mascarar sua aparência. Cabelos e olhos pretos, um nariz um tanto aquilino e elegante. Como ninguém a esperava, era difícil procurarem uma magia em seu rosto.

E ela também vestia azul, se isso contava para alguma coisa.

Enquanto aguardavam o bibliotecário, a feiticeira encarava periodicamente para trás, observando os movimentos das mãos dos alunos, os comandos e exemplos dados pelos instrutores naquele final de tarde. Era diferente do que tinha aprendido,mas igualmente fascinante. Comentou com Agatha:

— Eu me sinto uma criança que só foi ensinada em casa.

— Ora, sua educação tem sido de qualidade, mocinha. Até fez um acordo com uma fada e saiu viva! — A bruxa lhe deu um olhar severo, embora o pequeno sorriso em sua boca denunciasse que achava graça da situação. — Imagine mais como um internato particular.

— Internatos parecem horríveis.

— De fato. — Ela concordou, mudando de ideia em relação a comparação que tinha feito. — E duvido que aqui ou qualquer internato seja tão leniente com seu hábito de comer de madrugada e tomar banhos de duas horas.

— É, acho que prefiro sua casa mesmo. — Wanda riu, depois inclinou o rosto. — Veja. Tantas figuras geométricas coloridas.

— Sim, sim. E os anéis. — A velha completou com desgosto. — Poderá vir aqui para uma experiência de… Intercâmbio estudantil, se quiser chamar desse jeito. Só sejamos discretas, por enquanto. Não queremos interferência do Kamar-Taj em nossa missão, apenas ajuda.

Ela estava prestes a concordar quando o bibliotecário chegou, um homem robusto e de roupas escuras. Ele cumprimentou Agatha com um aceno e logo as permitiu adentrar o local.

— Não pensei que fosse recrutar uma aprendiz, senhora Harkness.

— Nem eu, Wong. Mas… As circunstâncias me levaram a essa necessidade e ela vem se mostrando muito dedicada. Não é?

Wanda apenas assentiu, olhando para baixo. Se afastou um pouco, tentando não cobiçar os corredores e pilhas de livros de conteúdo místico, muitos considerados proibidos. Certos exemplares estavam acorrentados às mesas ou prateleiras que pertenciam. Agatha e Wong discutiram amenidades até que ele questionou o principal:

— O que lhe traz ao Kamar-Taj, senhora Harkness? Não a vejo desde…

— A morte de minha amiga.

Ele concordou de forma silenciosa, em respeito ao luto e ao nome da outra mestra.

— A Anciã teria o prazer de recebê-la.

— Oh, sim. — A bruxa riu, desfazendo o clima pesado dali. O som de sua risada se misturou ao ambiente e ao incenso. — Mas ela preferia mais visitar minha cozinha e comer uma fatia grossa de bolo. Não só de chá vivia sua mestra, Wong.

O rosto severo e redondo dele adquiriu tons amenos.

— Eu imagino que não.

— Respondendo sua pergunta… O que me traz aqui é um assunto delicado. Não há necessidade de se alarmar, porém. — Agatha fez um gesto vago no ar, suas palavras desenrolando-se de forma casual demais para o assunto que realmente as suas vieram tratar. — O que preciso é o Bestiário Amarelo.

Houve um momento de silêncio.

— Senhora Harkness…

— Eu sei o que está pensando. E quero lhe lembrar que nenhum problema é grande o demais para mim.

Wanda podia enxergar a dúvida no rosto e na aura sólida do bibliotecário, Wong. Ele confiava na bruxa, mas temia pelo o que ela iria fazer com o bestiário. A necessidade por tal objeto era grave e deveria ser discutida com atenção. Além disso, era seu dever zelar pela segurança dos exemplares da biblioteca.

A Feiticeira inclinou a cabeça. Não podia fazer muito mais do que assistir a conversa, pois tinha ciência de que uma tentativa de manipular Wong era, no mínimo, ingênua. Ele, um místico experiente, provavelmente notaria e seria mais do que uma situação embaraçosa. Ela praticamente podia prever o quanto as relações entre Kamar-Taj e Agatha estremeceriam se fizesse alguma coisa. No entanto, isso não a impediu de torcer pela sua mestra.

— O Bestiário pertence ao Kamar-Taj.

— Ele está no Kamar-Taj. — A velha rebateu, ainda sorrindo. Suas palavras eram duras, por mais que sua voz fosse afável. Não sairia dali sem o livro. — Pertencia a mim e a Anciã, nós escrevemos muitas partes dele e você sabe disso. Trarei de volta em poucos dias, se esta é sua preocupação.

Wong desviou o olhar, seus ombros curvaram-se com um suspiro derrotado. Apenas murmurou, dando lhe às costas:

— Me acompanhem.

As duas trocaram um breve olhar confidente e seguiram o bibliotecário até os fundos da construção, subindo escadas e passando por uma porta fechada por um antigo feitiço. Existiam menos livros naquele novo ambiente, mas mais objetos variados como talismãs, artefatos e ferramentas místicas das quais mesmo o mais novo aprendiz poderia sentir seus poderes. Wong transitou entre as estantes daquele lugar com naturalidade, aproximou-se de um antigo baú. Após gesticular no ar uma sequência de feitiços com traçados brilhantes, ele logo tirou o bestiário dali e o entregou para a bruxa.

— Não sei com qual criatura vocês terão que lidar. — Disse ele, num último e cerimonioso alerta antes de soltar o livro. — Todas fariam o mais experiente mago tremer. Isso seria interesse do Mago Supremo, então eu recomendaria chamar o último aprendiz da Anciã, Stephen Strange.

Tanto Wanda quanto Agatha arquearam as sobrancelhas numa expressão automática, um reflexo incontido que durou menos de um segundo. É claro que ambas entendiam que “Mago Supremo” se tratava mais de um título, principalmente para aqueles que se envolviam na proteção de algum Sanctum ou na coordenação de todos eles, mas… O título ainda soava pomposo demais para o gosto delas.

— Ah. O Guardião da Joia que tapeou Dormammu. Um feiticeiro formidável, é verdade, mas não será preciso. — A velha educadamente dispensou a oferta, distraindo-se com a capa de aspecto gasto, opaco do bestiário. — É tão bom tê-lo em mãos de novo.

E então surgiu um círculo brilhante no ar. Um portal. E dali saiu um homem alto, de postura altiva e semblante sério. O caimento de suas roupas era impecável, um corte tão reto e anguloso quanto as maçãs do rosto dele, e enfim aproximou-se dos três, fechando o portal atrás de si.

— O que seria de meu interesse, Wong? — Indagou ao bibliotecário, porém logo seu foco voltou-se às visitantes. Assim como estava sendo estudada com atenção pelo homem, Wanda podia enxergar as nuances de sua aura com clareza. Era verde, um tom contrastante com sua túnica azul e sua capa vermelha. A cor era tão intensa, líquida e aguçada quanto seus olhos, mas havia ainda algo… Que Wanda não conseguia entender por completo. Uma sensação de familiaridade, talvez? Algo relacionado ao amuleto em seu pescoço, algo tão pulsante quanto a Joia que havia despertado seus poderes há tantos anos. — Oh. Agatha Harkness. É um prazer conhecê-la pessoalmente. Doutor Strange.

Ele fez uma breve reverência, da qual Agatha e Wanda retribuíram com prontidão.

— Confesso que sinto alívio em saber que não se apresenta só por Mago Supremo. — A bruxa comentou, achando graça ao mesmo tempo que suas palavras eram um tanto ácidas. Seu sorriso, ainda assim, era gentil. — É uma bela capa, rapaz. Não vejo um tecido vivo há anos.

Doutor Strange pareceu desconcertado somente por ter sido chamado de rapaz, já que era clara a idade em seu rosto. Deveria ter mais do que trinta, trinta e cinco anos talvez. Quem sabe o cavanhaque o deixasse com um aspecto mais maduro também. Havia já uma parte grisalha em seus cabelos escuros, mas para Agatha ele não passava de um jovem.

— Agradeço. — Respondeu com educação, depois o peso de seus olhos caiu sobre a figura de Wanda, que por sua vez manteve a expressão neutra, o queixo reto como se não estivesse com uma camada de magia acima da pele. — E você… —  Foi a vez dele arquear a sobrancelha. Tinha notado algo errado, é claro. Estava na ponta da língua dele, a Feiticeira sentia o seu pensamento afiado, calculado. — É... diferente do que eu imaginava da aprendiz da senhora Harkness.

Interessante, ela concluiu. O que quer que Strange tivesse pensado ou desconfiado sobre si, deixou passar. Wanda só conseguia divagar as razões pela qual ele teria feito isso, pois ele não parecia ser do tipo leniente. E ela queria cavar essas motivações mais a fundo, sem ser capaz de conter a impulsividade de sua língua:

— Ouviu falar muito de nós?

— Aqui e ali. — Ofereceu uma resposta evasiva para depois desviar ainda mais o assunto. Colocou as mãos, curiosamente um pouco trêmulas, atrás do corpo. — O Bestiário Amarelo, eu vejo. Aulas intensas, não?

Agatha assentiu:

— Nós dois entendemos que conhecimento nunca é demais.

— Aulas… Práticas?

— Deseja ser meu aprendiz também, Strange?

Os dois riram de forma breve, uma risada um tanto fingida e um tanto nervosa. Ninguém queria ceder tão fácil.

— Proposta tentadora. Não vou interferir nos seus assuntos, só quero lhe alertar que há alguém eliminando feiticeiros.

— Estou ciente. — Disse a bruxa com pesar. — Mordo fez algumas vítimas. Mas não se preocupe, Doutor. Lido com caçadores de bruxas já há alguns anos.

Wong riu e a face de Strange também adquiriu tons amenos.

— Sim. Então… Tomem cuidado. E não hesitem pedir ajuda a mim, ao Kamar-Taj ou qualquer outro Sanctum, Harkness. Espero continuar as relações amigáveis entre nós, assim como tinha com minha mestra.

— Espero também. Agradecemos a hospitalidade, não é mesmo?

Sua mestra esperava que Wanda respondesse, mas a Feiticeira demorou um segundo a mais para esboçar qualquer palavra com a boca. Estava ocupada tentando compreender o porquê o amuleto de Strange lhe atraía tanto e qual era a motivação dele em não comentar sua real identidade. Ele era inteligente, coisa fácil de notar… E também muito bem versado nas Artes Místicas, portanto ela imaginava que Strange tinha algo em mente para deixar a situação passar assim.  

— Sim, Agatha.

— Partiremos agora. Não podemos nos alongar aqui. — A bruxa pegou a mão de Wanda, trazendo-a de volta para a realidade. — É um prazer conhecê-lo, Strange. E é um prazer revê-lo, Wong. Sinto que… nos veremos de novo em breve.

Uma reverência final, educada e rápida. A bruxa mal gesticulou no ar para abrir um portal para sua casa, um portal completamente diferente daquele que Strange abrira minutos atrás. Tinha névoa lilás e não revelava o seu destino. Strange pareceu ligeiramente impressionado, mas Wong apenas soltou um comentário espirituoso:

— Ainda sem o anel, senhora Harkness?

— Usarei varinhas antes de aneis.

Ela riu e conduziu Wanda para dentro do portal. Antes que desaparecessem entre as ondas do nevoeiro mágico, a Feiticeira deu uma última olhadela para trás, encarando Stephen Strange diretamente nos olhos. O mago encarava de volta.

Sabia quem ela era. E talvez estivesse tão desconcertado quanto ela ao pressentir algo no futuro.

*

Em casa e sem seus disfarces mágicos, Wanda confessou suas impressões sobre Stephen Strange para Agatha. A jovem esperava algum tipo de iluminação ou palavra que lhe oferecesse ao menos alguma ótica diferente para a questão, mas sua mestra apenas lhe disse para não se preocupar com tal coisa no momento.

Um mago com título pomposo e intenções misteriosas era a última coisa que as duas tinham que lidar agora que iam atrás de um deus perverso… E Wanda foi obrigada a concordar com isso. As duas preparam chá, além de uma xícara de leite quente para Ebony. O gato preto, no entanto, não deu-lhes muita atenção. Tomou o leite e foi se deitar em outro lugar, com imenso desdém estampado em seu nariz. Ainda estava irritado por não ter sido levado ao Kamar-Taj e isso seria motivo para birras futuras.

Não que elas não estivessem acostumadas com dramas felinos.

As duas seguiram para a sala particular de Agatha, a sala de espelhos nas paredes, almofadas de cetim roxo e velas. Sentaram-se uma de frente para a outra sem grandes cerimônias, por mais que o momento pedisse uma pausa e certa contemplação. O Bestiário Amarelo repousava entre elas, ainda selado.

A mestra passou as pontas de seus dedos velhos sobre a capa gasta, cada ruga e marca do Bestiário despertando uma lembrança nela. Alguns pensamentos eram altos demais para a Feiticeira Escarlate deixar de ouvi-los, outros eram sussurrados e não passavam de um murmúrio indistinto no vento. Esse era um desses momentos. Ela não queria invadir a cabeça da mestra para entender o que sua mente tão sábia pensava, então arriscou com palavras:

— Ansiosa?

— Sim. Um pouco, mesmo com esse coração velho. Estou admirando também. — Seu sorriso foi saudoso, dolorido. — Sinto falta dela, Wanda. Eu, ela e Madame Teia sabíamos nos divertir.

O coração da sokoviana apertou-se dentro do peito. Não sabia quem era Madame Teia, mas compreendia o que era saudade. Ela levantou, pegou a almofada e sentou-se ao lado da bruxa, abraçando-a de lado. Agatha sempre tinha o perfume de lavanda e incenso em suas roupas roxas.

— Eu…  Eu sei como é.

Ela pressionou a mão contra a sua, calma. Houve uma longa mm pausa antes de Wanda questionar:

— Por que… não foi atrás do Bestiário antes, Agatha?

— Eu sabia que lidava com algo antigo, menina, mas não tanto. — Ela confessou, dando de ombros. — E o livro é mais para consultas, então nunca me dei ao trabalho de memorizar todas as informações. Já faz tanto tempo… Bem, vamos abri-lo, sim?

Wanda se desenrolou do abraço e ajudou sua mestra a abrir o livro.

A obra não era tão volumosa ou pesada assim, não tanto quanto esperava. No início, haviam assinaturas, por assim dizer. Não eram nomes, porém. Eram cores e duas delas lhe chamaram a atenção, amarelo e roxo. Wanda deu um meio sorriso e continuou a folhear o bestiário recheado de figuras intrincadas de inúmeras criaturas, seres que Wanda nem cogitava existirem - apesar de sua criação cheia de folclore. Viu asas pintadas de uma cor dourada, quase como ouro maciço. O azul da água parecia querer escorrer das páginas.

Ao contrário dos bestiários medievais, não havia uma linha moralista no livro ou parábolas. A obra era um guia de encontros com essas criaturas, detalhando datas, locais geográficos ou astrais, assim como as ocasiões em que foram vistas. O idioma não foi uma barreira, felizmente, já que o bestiário era revestido de um feitiço que o traduzia para a língua de seu leitor. Muitas das criaturas ali descritas não eram nem boas, nem más. Somente existiam e tal existência interferia na vida humana, o que poderia levar a desavenças ou situações diversas que somente feiticeiros poderiam lidar. É claro, também haviam deuses desconhecidos, nomes que ela teria que treinar a pronúncia muitas vezes se quisesse falar da maneira correta. Alguns eram invocados em momentos de dor, outros para infligir dor. Em certas páginas, Agatha a orientava a passar o dedo acima de pequenos símbolos na parte direita, que faziam a figura das feras saltarem das páginas e colorirem o ambiente.

Wanda não sabia exatamente a ordem que o bestiário seguia, mas não era alfabética. E então notou que era dividido por cores, uma particularidade… Um tanto quanto conveniente para sua intuição. Começava no amarelo. Ela pensou em Chthon e achou a cor vermelha.

As velas do ambiente tremularam quando leu as alcunhas do ser:

Chthon

 

Aquele que Segura a Escuridão

A Grande Sombra

O Adormecido

O Que Há Embaixo

 

Ph'nglui mglw'naft Chthon K'lay wgah'nagl fhtagn

 

Diferente das páginas anteriores, não existia um desenho, uma forma definida e pintada. Só… Uma massa amorfa, uma nuvem preta e dois pontos de intensa cor vermelha. Olhos, Wanda concluiu. E eram tão reais que parecia encarar a criatura viva no papel.

Um arrepio desceu sua coluna, enquanto Agatha prendeu a respiração ao seu lado.

Não haviam informações extremamente detalhadas sobre a entidade, pois as suspeitas indicavam que era tão antiga que vinha de uma época anterior a da escrita humana. Uma sombra que sempre esteve lá, desde o instante em que surgiu o Sol. Os relatos vinham de pessoas que ouviram histórias de terceiros ou testemunharam pessoas que invocaram Chthon.

Não raramente, pessoas que sucumbiram à insanidade ou apenas morreram.

Receptáculos para seu poder imenso. Hospedeiros. Homens e mulheres possuídos.

Teorias simplesmente informavam que era uma das fontes primárias de energia sombria, um ser que deu origem a inúmeros demônios e seguidores. Um parágrafo dizia que outras forças existentes tentaram bani-lo através de um devorador de deuses, mas alguns pontos divergiam no decorrer da história. Uns diziam que as escrituras que Chthon deixara serviam ainda de conexão do deus com a humanidade. Outros falavam que Chthon havia efetivamente sido banido, devorado, e as escrituras eram somente um resquício de seu poder. Havia quem falasse que as escrituras sequer existiam.

No entanto, sua interferência parecia palpável numa lista de eventos e um deles chamou a atenção imediata da Feiticeira. Ocorreu na Era Medieval, num local não especificado. Um grupo de feiticeiros tentou invocar Chthon para auxiliá-los em seus próprios interesses, mas mal imaginavam que a deidade não tinha obrigação de obedecê-los. Percebendo o grave erro que cometeram, a líder do culto se sacrificou para aprisioná-lo num único ponto, já que não tinha meios de bani-lo para sempre. Chthon permaneceu selado numa montanha, dizia-se, onde depois surgiu uma ordem de criaturas e cavaleiros que buscavam mantê-lo aprisionado para a eternidade.

Ou até a próxima tentativa de Chthon derramar-se sobre um novo receptáculo.

Wanda piscava sem parar, segurando forte demais o bestiário. Sua boca jazia seca, seu estômago afundava dentro do corpo. A imagem de seus sonhos vinha à tona, uma montanha coberta de névoa. Wundagore, onde… Onde ela e Pietro nasceram. No final da folha, uma única frase que ouviu-se de Chthon, ainda incorporado em outro hospedeiro:

“Almas fracas tem um sabor adorável”

 

— Chthon deseja meu corpo para se manifestar na Terra. É por isso que minha mãe, minha mãe biológica, estava desesperada pra nos salvar. E é por isso que Natalya voltou.

— Wanda… — A voz da idosa saiu arranhada da garganta, áspera e dolorida. — Eu lamento tanto. Talvez isso seja perigoso demais.

— É horrível. Indescritível. — Ela fechou o Bestiário Amarelo, sem aguentar mais encarar o par de olhos vermelhos na página. — Não posso nem falar disso com meus amigos, com James ou meu… Pai.

— Eu sei, sei. Natalya irá entender se…

Wanda franziu os cenhos para aquela afirmação e interrompeu a frase de sua mestra:

— Não, eu não disse que vou desistir. Chthon está quebrando o selo que o mantém aprisionado pouco a pouco, então a tal ordem que queria impedi-lo simplesmente não fez um bom trabalho. Aliás, nunca ouvi falar coisa do tipo na Montanha Wundagore. Nada além de histórias agourentas.

— Menina. Não estamos falando aqui de uma criatura viva, sólida. Não é Arnim Zola ou qualquer inimigo que tenha enfrentado antes. Se uma entidade dessas somar-se ao seu corpo, seus poderes… Não posso imaginar o que não faria.

— Ele pode ser aprisionado de novo. Já foi feito antes.

— E não sabemos como.

Os poderes da Feiticeira Escarlate faiscavam em suas íris.

— Mas é possível, assim como discutimos antes. Adormece-lo. E você mesma disse, não há problema grande demais.

— Wanda… Eu apenas temo por você.

— Ah, Agatha… Se eu não fizer isso, quem vai fazer?

A idosa assentiu, lágrimas querendo cair da beirada de seus olhos. Wanda a abraçou forte por longos segundos, numa tentativa de acalmá-la enquanto seu coração rugia quente, escarlate. Wanda não permitia ninguém ferir sua família ou qualquer um que amasse, nem homens que se achavam acima dos outros, nem Estados, preconceitos ou “leis”.

Nem deuses.

Recordou-se das cartas do Tarot e elas, ou ao menos duas delas, lhe pareceram extremamente literais: O mago. O diabo.

— Vamos, querida. — Agatha se desfez do abraço, sua expressão agora confiante. —Temos que nos preparar até a Lua cheia.

*

Faltavam poucos dias. Ebony estava preocupado com o desenrolar da história de Chthon e a mudança de seu comportamento era notável. Poupava Wanda de seus pequenos atos de rebeldia e palavras debochadas, fazendo o possível para ser um gato manso que lhe acompanhava nas sessões de leitura e meditação, enquanto Agatha seguia com seus chás e com doses de uma poção que serviria em troca do sacrifício para entrada e saída da Montanha.

Esses dias pareciam escorrer das mãos da Feiticeira. Ela buscava entender o quanto podia de Chthon no Bestiário Amarelo, cruzando informações com outros livros e com sonhos da Montanha Wundagore. Em seu íntimo, sabia que não importava o quanto estudasse, o deus perverso ainda daria conta de lhe surpreender. Apenas conhecimento teórico não lhe daria plenas condições de derrotá-lo com facilidade, pois pessoas mais versadas nas Artes Místicas haviam tentado e falhado. Era uma questão de cautela, mas principalmente de… Puro poder. Então Wanda subitamente ficava mais calma quando se lembrava disso.

Seu coração bombeava sua cor rubra de forma cadenciada, controlada. Sentia-o rosnando fraco, antecipando o gosto da vitória e ela concordava com a sensação quente, agressiva. O caos em si agora se esvaía do corpo de maneiras que Wanda sabia direcionar, canalizar. Mas aquilo seria diferente. Seria libertar qualquer amarra em seu peito e permiti-lo dilacerar a origem de seus sofrimentos.

Quando a Feiticeira fechava os olhos ao mentalizar o seu futuro na Montanha Wundagore, ela só enxergava a cor escarlate, absoluta e incandescente. Ao abrir as pálpebras, suas íris ainda faiscavam, luminosas.

Não disse nada para Natasha, Sam, Steve, Shuri ou James, nada que pudessem temer pela vida dela. Somente… Ligou para eles através da sua pulseira wakandana e vestiu seu melhor sorriso para falar com seus amigos. Ouviu notícias sobre o mundo mutante, desventuras culinárias em Outer Heaven e experimentos da princesa de Wakanda com equipamentos de vibranium. Contou brevemente sobre seus estudos e rotina com ervas e livros na casa de Agatha Harkness. Cobrou aulas de desenho com Steve no futuro. E conversou de forma privada com James Barnes, fonte de seus sorrisos e sonhos doces.

Ela quis derreter quando ele lhe confidenciou que sentia sua falta. Que lia livros que o faziam lembrar-se dela. E que se sentia bem na maior parte do tempo, o principal de tudo. Wanda sempre desejou isso, que ele melhorasse… E céus, o jeito que ele sorria e narrava o dia dele poderia encher o tórax dela de uma alegria líquida que o próprio Sol teria inveja.

Mas os olhos dele também exibiam nuances doloridas. Era um pedido para que Wanda voltasse.

E ela ia.

Wanda também recebeu a carta de volta de seu pai. Ele tinha uma caligrafia elegante e a sua forma de se expressar por escrito era tão eloquente quanto seu jeito de falar. Pareceu especialmente elaborar cada vez que escreveu “filha”, “Wanda” e ela ficou abismada de notar um hesitante “querida”. Ele estava tentando de verdade e Wanda sabia o quanto ele ardia por ter uma relação mais próxima com ela, o quanto desejava que ela o chamasse sempre de pai. Contava sobre o crescimento de Genosha, ainda em construção, e como era grato por Wanda ter lhe ajudado há dias.

Ela mandou mais cartas pra ele. Ainda não conseguia por completo se entregar àquela relação pai e filha… Mas, também era algo que ela iria construir. Tecnicamente, já o tinha chamado por pai diversas vezes. Se referia a ele assim, em conversas com outras pessoas.Imaginava os jantares em família no futuro. Como James iria se comportar e se Steve cederia sua guarda tão fácil assim. Tudo isso a fazia rir e sentir mais falta ainda de seu irmão.

E então chegou o dia. A próxima Lua cheia.

Antes de irem até ao sopé da Montanha Wundagore, Wanda e Ebony assistiram o pôr do sol perto das rosas caninas que tinham florescido ali, depois de alguns rituais particulares da Feiticeira. Flores gêmeas, vermelhas e azuis.

Fizeram silêncio.

Tudo se passava pela sua cabeça. Cartas de tarot. Sorrisos de pessoas amadas. Conceitos de inúmeros grimórios. Nigredo, Albedo, Citrinitas e… Rubedo. Aquele momento sim, seria sua última fase. A última etapa.

Sua provação e ressurreição pelas chamas.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

* Pesquisar a lore de fadas é muito interessante! Gosto muito e adoraria ler mais histórias que envolvessem essas criaturas tão fascinantes. Se conhecer alguma, me manda!
* Rusalki, Vilas, Leshachikha, Keshalyi, Bereginy - são fadas eslavas!
* Assisti vídeos sobre o Nepal pra escrever esse cap hahah e curiosamente tava passando Dr. Estranho na tv há alguns dias.
* Eu venero a Madame Teia dos quadrinhos e desenhos do Homem Aranha.
* Ph'nglui mglw'naft Chthon K'lay wgah'nagl fhtagn - frase de invocaçao do Chtchullu, uma criatura de Lovecraft. Gosto do horror cósmico e espero que tenha descrito bem esse trecho!
* Vocês sabem que tô misturando as origens da Wanda do MCU com os quadrinhos, mas decidi resumir MUITO sobre a parte do Alto Evolucionária e "cavaleiros híbridos/criaturas" que guardam a Montanha Wundagore. Vocês vão conferir isso no próximo capítulo!
* Que tal deixar um comentário? Me faria super feliz!