Leorio limpava os óculos em silêncio.

Há dias o tempo se passava em silêncio com o futuro médico enfiado nos livros, mergulhado em exemplares de anatomia e reações químicas do corpo. O assunto da vez era o sistema cardiovascular humano. 

Ele suspira, levanta colocando os óculos e anda em direção à pequena cafeteira que havia comprado recentemente enquanto tentava recordar sobre o assunto, até porque todo mundo que teve a oportunidade de fazer o ensino básico deve saber pelo menos que o coração não é tão fofo como desenham nos cartões de dia dos namorados. O café ia sendo preparado e Leorio ia relembrando palavras-chave: Vasos sanguíneos, artérias, coronárias... Como era aquilo que lembrava cabelo? Ah, sim. Capilares. Contrações, CO2, O2, infarto do miocárdio, pressão, hipertensão... Tensão... 

Ele ofega movendo os ombros doloridos, estica a coluna escutando os ruídos pelo deslocamento de suas articulações (Como futuro médico deveria saber que estava sentando do modo incorreto) e geme baixinho por toda a exaustão. Até mesmo o Exame Hunter tinha exigido menos dele, tá que o esforço físico nunca foi seu forte, mas o mental em excesso sempre o derrubou e, aliás... No exame ele não estava só, não era? O café era despejado na caneca enquanto o moreno abria um sorriso torto ao lembrar-se da coragem inocente de Gon, será que ele já tinha mais pistas sobre o pai? Leorio toma um gole tranquilo d- PUTA MERDA! AÇÚCAR!

O amargo passa quando ele enfia desesperadamente uma colher de açúcar na boca. Antes que seu cérebro comece a processar todo o percurso do açúcar em seu corpo e as propriedades da glicose, as lembranças o atacam sem dar escapatória, ele respira fundo e cerra os olhos, permitindo-se divagar uns minutos. Um calafrio envolve sua espinha ao lembrar-se do Zoldyck, trazendo um riso baixo ao silêncio do cômodo. Era divertido como o garoto era um assassino reconhecido no mundo todo e mesmo assim parecia um gatinho ao se divertir com Gon. A dupla perfeita. Leorio ri e toma o café já adoçado se perguntando como estariam os dois. Super evoluídos certamente, com todo esse negócio de Nen que ele "nen" ao menos entendia. 

A imagem do garoto das correntes salta sobre ele... Leorio nega de leve tentando o afastar da cabeça, anda até a escrivaninha, põe a caneca ainda quente ao lado da luminária e olha as horas. Uma da manhã. Ele deveria dormir, mas provavelmente não conseguiria. 

Desde quando?

Desde quando ele dormia mal? Desde quando ele se tornou tão amargo quanto aquele primeiro gole de café? Desde quando ele não dava o passeio matinal só pra comer um bolinho e paquerar a balconista? Desde... Não importava. Ele sacode a cabeça e ajeita os óculos, precisava se focar. Ajeita a luminária e o livro, voltando à leitura. 

"Vale também ressaltar que o sistema cardiovascular humano é classificado como fechado, duplo e completo."

Uma e meia da manhã.

"Manutenção do equilíbrio hidrossalino do organismo."

Duas da manhã.

"Artérias são os vasos pelos quais o sangue flui do coração para os tecidos do corpo sob alta pressão, por isso, são classificadas como vasos eferentes em relação ao corpo (ou centrífugos). Elas pulsam quando distendidas pelo sangue, impulsionado pelos batimentos cardíacos."

Duas e meia... "Por... Porque ando tão abatido? Não estou realizando meu sonho?" "Concentração, Leorio.”

"O coração é formado, na realidade, por duas bombas distintas: o coração direito, que bombeia o sangue para os pulmões e o coração esquerdo, que bombeia o sangue para todos os outros tecidos do corpo."

Três da manhã. 

"Um ciclo cardíaco único inclui todos os eventos associados a um batimento cardíaco, durando cerca de 0,8 segundos."

Três e meia. 

"O ato de ouvir os sons produzidos no interior do corpo é chamado auscultação, e em geral é realizado por meio do estetoscópio. O som do batimento cardíaco origina-se, primariamente da turbulência do sangue causada pelo fechamento das valvas cardíacas. Durante cada ciclo cardíaco, quatro bulhas cardíacas são produzidas, mas, no coração normal, apenas a primeira e a segunda bulha cardíaca são suficientemente altas para serem ouvidas, auscultando-se com estetoscópio." 

     Um movimento brusco faz Leorio pegar o celular ao lado caneca de café já fria e mandar uma mensagem para o celular de Killua: 

'Killua? Como você e Gon estão?' (03h32min)

Idiota. São quatro da manhã e eles já devem (ou pelo menos deveriam) estar dor- O celular vibra em suas mãos e ele quase cai da cadeira: 

'Leorio-kun! Aki é o Gon :3 Kill ta vendo o filme animaido d+ p responder xD Estamos bem e vc?' (03h35min)

'GON! ISSO É HORA DE VER FILME?' (03h35min)

'S, a gnt esperou mto ate dar a hora, mas agr estamos vendo :D' (03h40min)

Leorio ainda pensa em rebater, mas simplesmente desiste e responde: 

'Estou bem sim, só meio cansado. Estudando muito. Vocês têm notícias do Kuruta?' (03h42min)

'Ele ainda t atras da trupe, mas soube q parou um pouco p treinar +' (03h48min)

'E você sabe onde ele está?' (03h49min)

'Ele n disse' (03h52min)

'Certo obrigado pela notícia! Boa noite e bom filme para vocês dois.' (03h53min) 

'D nd, b noite, Leo-kun' (04h01min)

Leorio encarava a tela do celular até a mesma perder parte do brilho, o fazendo tocá-la para que acendesse novamente. Ele respira fundo e abre a conversa com Kurapika, não estava nem ao menos online. Teria que ligar. O nervosismo preso em sua garganta era tão ruim quanto não saber a resposta daquela matéria que você estudou feito condenado. Como seria ouvir sua voz depois de tanto tempo? E o que diria? "Alô, como vai sua vida procurando a Trupe? Show de bola?" Ridículo. Não tinha nada a dizer... Tudo que vinha em sua cabeça só irritaria o loiro e lhe faria se sentir pior ainda. 

E esse é o momento em que ele percebe que suas artérias estão sendo altamente distendidas pelo seu sangue, impulsionando loucos batimentos cardíacos. Malditos vasos eferentes... Pelo menos lhe mantêm vivo. A respiração pesa e as mãos suam de leve, o fazendo perceber que o fechamento de suas valvas cardíacas estava simplesmente causando a maior turbulência já causada em seu sangue, e não só a primeira ou a segunda bulha poderiam ser ouvidas, e sim todas elas, sem ajuda nenhuma de estetoscópio, se é que isso seria possível. Se não fosse, ele era a exceção com toda certeza. 

"Fechado, duplo e completo". Aquela frase não lembrava somente o sistema cardiovascular para o moreno. Lembrava o próprio Kuruta. Frio, sem abrir seus sentimentos e frustrações para ninguém, fechado para si mesmo. Seu temperamento normal e calculista, junto com seu outro lado, o furioso dono dos olhos escarlate, último de sua tribo, tendo uma personalidade praticamente dupla. Mas... Completo. Com cada detalhe... Mesmo sem demonstrar nem ao menos uma alteração no ritmo cardíaco ao ver Leorio... Ele era completo para o moreno. Um exemplo a se seguir. 

O celular já tinha a tela escura novamente e Leorio o encara, tendo seu rosto refletido no espelho negro. Um riso baixo e irônico ecoa pelo cômodo, ele estava simplesmente detonado. Olhos fundos, roupa e cabelo bagunçado, completamente devastado pelo cansaço... Não. Não pelo cansaço. Pela solidão. Ele nunca tinha feito o estilo lobo solitário... Só aprendeu a conviver com isso quando seu melhor amigo morreu, mas mesmo assim... Sentia falta. Sempre sentiu. Esse rombo infinito em seu coração (bom, não seu coração em si já que ele não é o órgão responsável pelos sentimentos e sim- tanto faz Leorio) nunca sarou uma ferida que nunca esteve à disposição dos fantásticos anticorpos e cicatrizantes que um corpo saudável tem. E provavelmente nunca estará... Porque o único cicatrizante real que Leorio conhece... não quer nem saber pelo que o moreno passa. 

É tudo muito rápido e nem ele mesmo entende direito. Seu corpo levanta abruptamente e o celular é jogado em cima da mesa, derrubando a caneca de café, fazendo o líquido negro espalhar e molhar as páginas de seus livros. Mas ele não se importava. Pela primeira vez não estava nem aí. Não sentia vontade de rir e ignorar tudo como sempre fez. Até que o café escorre pela escrivaninha e molha a tomada da luminária, causando um curto e desligando a mesma imediatamente. O escuro acolheu a dor do hunter, mas não era o suficiente. Leorio põe a mão no peito, sentindo seu coração... Aliás... Seus dois corações... Direito e esquerdo. Mas ele não sentia isso. Era como se faltasse algo ali. Um pedaço importante... E tanto faz a biologia e se os sentimentos vêm do cérebro... Quem diria que o divertido Paradinight era tão incomodado assim com definições biologicamente incorretas. 

Mas foi necessário somente um. Somente um ciclo cardíaco para Leorio perceber. 

Perceber finalmente que toda essa não vinha simplesmente da solidão... Mas da saudade. 0,8 segundos, foi tempo o suficiente para que ele procurasse desesperadamente o celular por cima da bagunça que causou. A janela já mostrava os primeiro raios de sol, tingindo o céu num tom púrpura como nos filmes. Mas ele não apreciou a imagem. Agarrou o aparelho celular e sem nem ao menos pensar digitou o número do garoto de olhos escarlates. Saudade. Tanta saudade que já o afogava há dias sem que ele nem ao menos percebesse. O som de chamada toca e a sensação é de que todas suas artérias estavam dilatando o suficiente para explodir. Os batimentos poderiam ser escutados do recepcionista do hotel e ele viria reclamar provavelmente. O terceiro toque da chamada é o suficiente para que Leorio recobre sua noção. Cinco da manhã. Que merda ele estava fazendo ligando para Kurapika? 

Ele afasta o celular da orelha para desligar e escuta uma única palavra que destrói todas suas intenções de desligar. 

"Alô?"