Strangers escrita por Nayou Hoshino


Capítulo 1
Oneshot




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Estava imóvel a mais de cinco minutos, esperando o momento perfeito para agir. Meu dedo hesitava sobre o botão enquanto o ser à minha frente mexia-se de forma delicada e ainda desconfiada. Mesmo que a minha presença já devesse ter se misturado com a paisagem ao redor, ele ainda conseguia capta-la, era como se estivesse se mantendo atento em mim desde que me agachei ali. Sentindo a minha idade começar a clamar para ser respeitada na forma de uma dor escruciante no fim da coluna, pressionei o botão de forma precipitada, assustando o pequeno esquilo com o flash da câmera.

— Merda... — Soltei um suspiro, cobrindo a lente com a pequena capa circular de plástico e me levantando, ouvindo um estalo alto ao esticar os ossos do meu corpo

Para um fotógrafo, o fim de sua carreira se dá de três formas: ou ele não consegue mais enxergar, ou não consegue mais ter a firmeza de apertar o botão no momento certo ou não consegue mais se abaixar num dia de sol para fotografar as coisas mais simples. A forma como meu joelho doía depois de ter ficado flexionado por meros dez minutos me fez temer pelo meu futuro. Talvez começar a caminhar ou correr pela orla da praia fosse uma boa ideia afinal... Sempre que eu tentava, a corrida se transformava me uma sessão de fotos do mar, dos banhistas ou até mesmo de algo mais conceitual como uma garrafa de água enterrada pela metade na areia.

Soltei a câmera e a deixei cair até ser travada no ar pela fita que a prendia ao redor do meu pescoço, aproveitei que minhas mãos estavam livres e penteei os cabelos com os dedos. Os fios, que já haviam começado a ficar grisalhos, haviam se embaraçado e caído sobre meu rosto por conta do vento. Era melhor eu me apressar, tinha que chegar no píer antes do pôr do sol, esse tinha sido meu objetivo ao viajar para um lugar tão longe e tão frio. Pessoalmente, sempre preferi o sol escaldante e o gosto salgado que a água do mar deixava na pele quando passava tempo demais na varanda do meu apartamento.

Enquanto caminhava pela calçada movimentada, pude vê-la. Parada ali no beco à minha esquerda, tocando o muro como se esperasse algo dele que não fosse continuar parado ali oferecendo-lhe apoio. O vento batia em seus cabelos acobreados, fazendo com que seus cachos balançassem ao redor de seu rosto de perfil como se fossem a majestosa juba de um leão da savana. O contraste dos fios com o ambiente cinzento e urbano ao seu redor tocou minha alma de artista, minha percepção aguçada já havia idealizado e enquadrado a foto antes mesmo de eu conseguir alcançar a câmera que pendia na altura do meu estômago e posicioná-la.

Olhei pelo visor, a imagem perfeita para compensar o fiasco que havia sido minha ultima foto. A imagem perfeita para apagar a visão de fotógrafo mediocre que eu vinha tendo de mim mesmo...

No milésimo de segundo em que pressionei o botão com firmeza e decisão, senti os olhos da jovem se chocarem contra os meus. A seriedade de seu olhar foi gravado pelas lentes, transformando a fotografia suave e distante em algo muito mais pessoal.

Passei a mão pela minha barba mal feita, constrangido por ter sido pego. Ela poderia ter ideias erradas sobre o que eu estava fazendo, até na policia eu já havia parado por conta desse meu mau hábito de fotografar estranhos... Não podia ir parar em uma novamente, ia acabar me atrasando para a fotografia do pôr do sol que há tanto vinha planejando. Apenas reencaixei a tampa da lente e caminhei confiante em direção a ela, que se mantinha ali, com a mão direita no muro mas com os olhos fixos em mim. Ela parecia aliviada conforme eu me aproximava, o que era uma reação estranha. Nunca imaginei que uma jovem bonita, em um beco, ficaria aliviada por um homem da minha idade se aproximar após ter tirado uma foto dela...

— Boa tarde... — disse num tom simpático e amigável, mas não o bastante para que pudesse ser confundido com um tom de segundas intenções. — Sinto muito por ter tirado uma foto sua sem lhe comunicar mas...

— Tudo bem. — Ela me interrompeu com um meio sorriso, seus lábios finos se curvando e realçando as maçãs do rosto rajadas de sardas.

— Er... Mesmo? — Inconscientemente ergui uma sobrancelha, minhas palavras soaram mais rudes do que eu poderia ter planejado, notei ao vê-la desviar o olhar para o muro.

Acompanhei seu olhar e tentei enxergar o que ela poderia estar olhando, não havia nada ali além de sua mão pálida que se pressionava contra o chapisco e seus dedos compridos que terminavam em unhas brilhantes e chamativas. Voltei o olhar pra ela, a pergunta arranhando minha garganta para se libertar... Artistas são curiosos por natureza. Querem entender o sentido, o objetivo de tudo estar como está e ser como é. Não era diferente comigo.

— Não vai perguntar? — ela disse num tom doce, sorrindo pra mim.

Eu estava parecendo um colegial que chamava uma garota para sair pela primeira vez na vida. Estava tímido e impressionado pela beleza da jovem a minha frente, que se portava como uma mulher confiante e poderosa enquanto não deveria passar dos 25 anos. Me repreendi por isso, sou um profissional que interage diariamente com mais pessoas do que posso contar nas minhas duas mãos. Já fui muito mais sociável e requisitado a alguns anos atrás, isso era verdade, mas não um motivo para hoje ficar sem palavras diante de uma bela dama.

Ri, aliviando a tensão no ar que parecia estar presente apenas para mim.

— Ok, o que você está fazendo? — perguntei finalmente.

— Eu vi isso numa rede social... — Ela olhou para o céu, uma larga faixa azul entre os muros que criavam o beco onde estávamos. — “Coloque sua mão no muro e espere por um estranho, só tire a mão quando já não forem mais estranhos”... Eu precisava de alguém para conversar, então... — Ela olhou para mim com aqueles olhos acizentados mais uma vez, tentando ler na minha expressão o que eu achava daquilo.

— Isso é loucura. — Fui sincero, já que imaginei ser o que ela esperava. — Não era muito mais simples você ligar para um amigo ou falar com alguém na própria rede social?

— Tem coisas que apenas um estranho pode ouvir... — Ela riu e abaixou a cabeça, deixando seus cachos cobrirem seu rosto e esconderem seu perfil de mim.

— Quais seriam as chances de algum estranho deliberadamente se aproximar de você e puxar assunto? As chances de isso funcionar são... — Ri sem pensar, até mesmo um homem das antigas como eu sabe que as relações pessoais, ao vivo, estão mortas.

— Bem, você se aproximou. — Ela me encarou com um olhar vitorioso. — Então acho que funcionou para mim.

— … Touché.

Fiquei a encarando em silêncio por mais uns bons segundos antes de soltar um suspiro, não acreditava no que estava prestes a fazer. Aquele velho ditado do gato curioso que sempre morre no fim nunca me convenceu, então naquele momento ouvir as palavras daquela jovem de quem nem sabia o nome me pareceu imensamente mais importante do que uma foto perfeita do pôr do sol. Coloquei minha mão esquerda no muro próxima da sua e ela arregalou de leve os olhos para mim antes de sorrir agradecida.

— Como você se chama? — Ela colocou uma mecha de cabelo para tras de sua orelha, de forma que conseguisse me enxergar melhor.

— José Marcos. Mas todos ignoram o José. — respondi numa risada, era engraçado a forma como meu nome soava, fazia tempo que não tinha de dizê-lo por completo dessa forma.

— José como o pai de Jesus?

— Ahm... Sim. — Nunca tinha ouvido essa comparação antes. Era incomum e inteligente a forma como ela juntou as informações de forma rápida.

— Seria interessante se meu nome fosse Maria, não é mesmo? — Ela deu uma risada, cobrindo a boca enquanto o fazia, mas o que me chamava atenção em seu rosto era como suas sardas se ressaltavam com qualquer expressão que ela fizesse.

— Seu nome é Maria?

— Não. É Sarah. — Ela balançou a cabeça suavemente.

— Então Sarah, o que queria tanto conversar que te fez vir para um beco deserto e ficar plantada com a mão neste muro? — Fui direto, contrariando meu hábito de sempre cercar meu objeto de interesse antes de finalmente agir.

— Bom José... A história é comprida. E você parece com pressa. Sua esposa o espera? — Ela indicou a singela aliança em meu dedo anelar com a cabeça.

— Na verdade, já faz alguns anos que ela não me espera. — Olhei melancólico para o pequeno objeto em meu dedo, a quanto tempo eu simplesmente parei de chorar quando o via pela manhã e acordava sozinho na cama? Quantas vezes eu expliquei o porquê de nunca me verem com minha esposa? Quantas vezes expliquei a forma como ela simplesmente não acordou naquela manhã fatídica?

— Eu sinto muito. — Sarah tocou meu ombro e o apertou suavemente, o que fez meu corpo se arrepiar e ela se afastar um pouco surpresa pelo meu gesto.

— Está tudo bem. — Respirei fundo para não me emocionar mais que o necessário, isso não é pra ser sobre mim... — Você tem alguém?

— Alguém me tem, no caso. — Ela deu de ombros de forma simples, como se fosse normal falar aquilo. — O rapaz com quem eu saía me pediu em casamento.

— Meus parabéns. Você deveria estar feliz por ter encontrado um jovem responsável assim, não?

— A questão, é que sempre foi só sexo pra mim. A única coisa que amo são minhas pinturas, e sei que elas não vão querer me prender nessa cidade por conta de “um emprego estável”.

Wow... Por essa eu não esperava. Engoli em seco e acho que fiz uma cara incrivelmente surpresa, pois vi as bochechas da ruiva ficarem quase da cor do seu cabelo quando ela finalmente fez contato visual comigo novamente.

— D-diga isso pra ele então... — comecei.

— Ele deixou essa oferta impossível de ser recusada quando comprou um ateliê em meu nome e convidou todos os nossos amigos para o jantar em que fez o pedido. — Ela cobriu o rosto com a mão livre, pressionando de leve os olhos de forma cansada.

— Mesmo assim. Não deve se sentir obrigada a aceitar. — falei sério, preocupado com o futuro de infelicidades que a estranha poderia ter. — Converse com sua mãe sobre isso, tenho certeza de que ela vai concordar comigo...

— Sou orfã, não tenho sequer pais adotivos. — Ela pareceu notar meu olhar curioso então continuou — Fui deixada no orfanato e lá fiquei até os meus 16 anos, quando me liberaram para viver minha vida sozinha.

— Mas pela lei você só deveria ser autorizada a sair com 18 anos, não?

— Acho que tiveram pena, já tinham perdido a esperança a muitos anos... Assim como eu.

— Nossa... Sinto muito. — Desviei meu olhar, tentado a abraçá-la mas sabendo que não era prudente de se fazer.

— Tudo bem. Se esse fosse meu único problema na vida. — Ela deu uma risada que me assustou, parecia que estava rindo de uma piada que ela própria tinha acabado de contar e eu havia perdido por estar concentrado demais em seu sofrimento.

— Então você precisa da ajuda de um estranho sobre o que fazer com seu noivo... Já que seus conhecidos a achariam ingrata por sequer cogitar não aceitar. Acertei?

— Não. Eu decidi que o deixarei esperando por uma resposta por tempo suficiente para ele desistir de mim como todos fazem um dia.

— Mas...

— Eu preciso de um estranho para me ouvir até se cansar de mim, sem ressentimentos depois. — Ela me encarou séria por um instante, mas logo seus lábios se curvaram em outro sorriso doce. — Por que estava me fotografando?

— Ah... — Mais uma vez senti-me nervoso e confundi-me com as palavras num primeiro momento. — Eu achei que daria uma bela foto. Sua beleza e o contraste que estava criando contra o ambiente hostil da cidade...

Ela me encarou pelo que pareceu uma eternidade, julgando-me com aqueles olhos amendoados antes de levar sua mão até minha máquina fotográfica, puxando-a de leve e tentando tirar o cordão da mesma do meu pescoço. Eu simplesmente deixei que ela arrancasse a segunda coisa mais preciosa que eu tinha naquele momento da minha vida, deixei ela pegar a máquina e tocar seus botões com aqueles dedos esguios enquanto a câmera fazia sons de que estava sendo ligada. Ela colocou o olho no visor e então eu agi.

— Você precisa tirar a capa da lente para tirar a foto. — Ensinei paciente, retirando a capa pra ela já que ambos só estávamos com uma mão livre.

— Ah... — Ela riu de si mesma, reparei que seus olhos formavam pequenas marcas de expressão quando ela os comprimia durante um riso.

Ela colocou novamente o olho no visor, segurando o objeto com firmeza enquanto o apontava para mim e eu sorria bobo, como se fosse um pai orgulhoso pelo primeiro passo do filho. O flash me cegou por um momento por conta da proximidade. Ela deu mais uma bela risada antes de virar a máquina para que eu pudesse ver a foto que havia tirado.

— Jesus...

— Não, José. Esse é você José. — Ela sorriu para mim.

— Quero dizer... O flash está tão forte que eu não passo de um borrão branco na foto. Tire outra, sem ativar o flash dessa vez. —Sugeri.

— Não, este é você. Um estranho iluminado que se aproximou de mim quando estava prestes a ir para casa e desistir dessa história de “amizade no muro”. — Ela falou com o rosto rubro mas com o olhar confiante e firme no meu.

— Achei que estivesse confiando cegamente nessa ideia.

— Estava, nos primeiros cinco minutos. Mas depois de algumas horas eu já estava começando a me cansar, estava me sentindo invisivel, exatamente como era no orfanato.

— Ficou horas aqui? — Arregalei os olhos surpreso.

— Orgulhosa. — Ela justificou dando de ombros. Observei como ela estava vestida, uma roupa simples de verão feita de uma malha fina, quanto tempo ela se forçaria a aguentar ali apenas para provar que estava certa? Seu corpo magro relaxara desde que eu cheguei, tornando-se um pouco arqueado ao invés da postura forte e ereta que possuía a distância.

— Eu te pago um café, vamos, você merece descansar um pouco.

Ela virou seu rosto pra mim, a cabeça inclinada e os lábios num sorriso travesso. O que me impressionava cada vez mais era a capacidade dela surpreender meus olhos com uma mulher diferente a cada vez que a olhava. Em um segundo ela era uma adulta forte e poderosa, em outro era uma adolescente perdida e desamparada... Mas em ambas as formas sua beleza me encantava, queria fotografá-la num ambiente que condizesse mais com a aura superadora e brilhante que conseguia enxergar em seus olhos quando ela me encarava e sorria.

— Se sairmos daqui, todo o plano terá sido em vão. — ela disse simplesmente e prosseguiu antes que eu pudesse perguntar. — Você tem que continuar sendo apenas um estranho que foi bondoso o bastante para me ouvir, não posso deixar você ser um deles.

— Um deles? — Ergui uma sobrancelha curioso.

— Um dos meus conhecidos, meus amigos... Você tem que ser um estranho José. — Ela sorriu, mas dessa vez de uma forma triste, seus lábios foram formando uma linha reta em um ritmo lento, desfazendo o sorriso com cuidado.

— Tenho que ser um estranho para você poder falar comigo. — Conclui, lembrando-me do que ela havia dito.

— Exatamente.

Notei o olhar dela ir até o chão, encarando suas sandálias de dedo enquanto seu pé se mexia distraídamente. Olhei para o céu sobre nós que começava a tomar tons escuros, tinha perdido a chance de fotografar o pôr do sol perfeito... Mas isso importava ainda? Eu queria ajudar Sarah, abraçá-la e levá-la para tomar uma xícara de café enquanto continuávamos a falar sobre coisas da vida. Mas não podíamos. A partir do momento que tirássemos nossas mãos do muro assumiríamos que não éramos mais estranhos um para o outro e teríamos de nos afastar para seguir nossas vidas. Ela tinha razão.

— Você tem filhos? — ela perguntou sem levantar os olhos.

— Não. Eu e Judith achamos que ainda era cedo e... — Soltei um suspiro e sorri tristemente. — Agora é tarde demais.

— Vocês se acomodaram. Como eu. — Ela me olhou avida, como se tivesse encontrado a resposta que vinha procurando. — Se eu deixar Ben ditar minha vida só porque me é cômodo não agir... Uma hora vai ser tarde demais.

— Foi o que tentei te dizer. — Sorri carinhosamente pra ela, feliz por aparentemente um de seus problemas ter sido resolvido. — Se não o ama, é mais justo para ambos terminar antes mesmo que comecem.

— Você se arrepende? — Ela ignorou o que eu acabara de falar

— Perdão?

— De ter desperdiçado sua vida.

— Não a desperdicei. Cada segundo com minha esposa foram os melhores que poderia ter desejado... Eu a amava.

— Acho que nunca saberei o que é isso.

— Você ainda é jovem, vai encontrar um rapaz para se casar e terão uma vida feliz, vai ver! — afirmei animado, tocando seu ombro nu e notando como ela estava fria. A temperatura tinha caído tanto assim?

— Casar qualquer um casa. Casamento é só uma forma mais duradoura de um estado de comodidade. — Ela riu de forma sarcástica do que eu disse. — Estou me referindo a esse amor que você endeusa até hoje, mesmo depois de perder sua esposa.

— Bom, você ainda tem tempo...

— Isso me foi negado durante toda a vida, não sou autodidata.

Um silêncio se fez entre nós. A vida havia convertido uma garota brilhante em uma pessoa pessimista, a mesma vida que havia tirado de mim a minha doce Judith. Passei anos convencido de que era o único alvo do humor sádico do universo e aqui estava Sarah, sendo uma vítima desde sua primeira lembrança.

— O que você pensou?

— Ahm? — Voltei dos meus devaneios ao ouvir a voz baixa dela.

— Quando me viu parada aqui. Pensou que eu era louca? Ou talvez que eu fosse uma desocupada com algum distúrbio... Ou estivesse bêbada ou algo assim.

— Eu pensei que havia encontrado a foto perfeita. — Falei sincero, superando o nervosismo que elogiá-la me causava desde que começamos a conversar. — Achei que você era o ponto de paz nessa selva de concreto, parada aqui com o sol refletindo em seus cabelos.

O rosto dela foi tomando delicados tons de rosa enquanto eu falava, quando atingiram um vermelho acobreado como o de seus fios ela desviou o olhar e riu baixo, percebi o movimento de sobe e desce das suas costas se modificar de forma quase imperceptível, acompanhado de um fungar que se forçava ao máximo para se manter silencioso.

— Quer saber a verdade? — A voz dela era cheia de angústia e me impedia de mover um músculo que fosse para tocá-la por medo de que pudesse se partir. — O porquê de eu ter de me abrir com um estranho e ter ficado tanto tempo aqui esperando...? — Ela levou a mão livre ao rosto que ainda escondia de mim sob a cortina de cachos acobreados e eu tinha certeza de que era para limpar as lágrimas que não conseguia conter. — Eu sou louca, estou perdida. Mudei tanto para ser aceita e fingi por tanto tempo ser a “Sarah” que agora... Agora eu estou perdida.

— Como assi-

— Não sei mais se sou essa pessoa que está falando com você agora ou se essa é a Sarah que cansou de tanto guardar decepções... — Ela olhou pra mim, havia raiva e confusão em seu olhar. — Eu sou louca e estou perdida, mas você viu beleza nisso, José. Você conseguiu me ver debaixo disso tudo, quem eu acho que sou pelo menos...

Ela afastou um pouco a mão do muro, hesitando nos primeiros centímetros mas logo conseguindo reunir forças para retirá-la por completo. Levou essa mão até o lado esquerdo de meu rosto, mesmo com a barba mal feita eu conseguia sentir a textura de sua pele maculada pelo chapisco do muro. Eu não conseguia tirar minha mão do muro, sentia que se me afastasse como ela fez eu não aguentaria e despencaria. Em uma conversa eu pude ver uma musa forte e confiante se transformar em uma criança perdida, uma linha tênue a mantinha segura em sua bolha e eu havia conseguido cortá-la ao meio, libertando pouco a pouco a insegurança e o medo que ela tinha da vida. Entendi porque ela finalmente havia afastado a mão do muro. Naquele momento, eu não era mais um mero estranho. Tampouco era “um deles”. Eu podia ver em seus olhos a verdade, naquele momento eu era o que ela já tivera de mais próximo de uma família.

— Tire uma foto minha. — Ela apertou a câmera entre meus dedos, pude sentir sua pele fria e a forma quase imperceptível como ela tremia. — Aproveite enquanto a Sarah não está aqui, não sei quando poderemos nos ver de novo...

Nos ver de novo? Sarah? Não conseguia esconder a confusão que meu rosto transparecia, mas acatei seu pedido. Livrei minha mão da sua e afastei a outra mão do muro para ter mais estabilidade. Coloquei o olho no visor e a vi ali, uma mulher completamente diferente da primeira que eu fotografara. Uma mulher frágil e desprotegida que apanhava do mundo mas queria ser retratada assim, queria imortalizar seu eu maculado sem máscaras ou filtros. Ela confiava em mim para essa missão, apenas eu poderia mostrar o que nem ela conseguia ver.

Me afastei alguns passos dela, já que a pouca claridade do fim do dia principalmente ali no beco me forçava a usar o flash. Apertei o botão e o beco se iluminou. Ela sorriu para mim e esfregou os olhos com os pulsos, limpando qualquer vestígio de lágrima que poderia ter ficado ali.

— Acho que agora só nos resta o adeus, José.

— Você vai ficar bem? — Não consegui evitar a pergunta, toquei seu ombro para que ela se sentisse pressionada a me responder a verdade.

— Matarei Sarah. Tudo ficará bem agora.

Ela não disse mais nada, apenas escorregou para fora do meu toque e me deu as costas sem hesitar, seguindo para a calçada movimentada com as pessoas que se preparavam para ter noites divertidas e cheias de bebidas e companhias, camuflando-se entre todos os outros desconhecidos para mim. Eu apenas continuei parado, atônito, ao lado do muro.

A vida é muito mais do que podemos ver, lembro de ter pensado isso várias vezes enquanto conversava com ela. Ela havia conseguido enganar até mesmo meu olhar treinado, mas eu aprendera com Judith que quando o olhar falhava, os ouvidos funcionavam em dobro. E vice versa.

Não me preocupei ao ouvir sobre “a morte de Sarah”. Ela, seja lá quem fosse afinal, era mais forte que a Sarah. Era forte demais para desistir e forte demais para continuar com aquilo, precisava de uma nova vida que coubesse ao seu novo eu. Ao eu que estava imortalizado em minha memória e em minha máquina fotográfica, mas que ela ainda teria que encontrar.


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