A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 57
A (in)decisão


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal! 

Sabe aquele ditado: “Depois da tempestade, vem a bonança”?

Então… É o caso desse capítulo.

Só que não é uma tempestade qualquer, já que a previsão do tempo adiantou que teremos um mal entendido DAQUELES, com direito a uma crise de ciúmes do Peeta.

No entanto, como o ditado diz, “vem a bonança” também!

Preparem os guarda-chuvas! Eis a nova fase!



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Por Katniss

MUITOS ANOS DEPOIS…

Peeta tira o lençol que me cobre, deixando um rastro de beijos molhados nas minhas costas nuas e uma mordida na base da minha coluna.

Sinto seus dedos deslizando por meu braço esquerdo e lentamente desperto, deparando-me com os olhos mais lindos que existem.

— Estava sonhando com você e, quando acordo, você está aqui.

Estico meu braço até seus cabelos úmidos, por ter saído do banho nesse instante, e deslizo minha palma até seu queixo.

Apesar de estar mais maduro e ter perdido seus traços de menino, seu rosto recém-barbeado é suave, tão suave que poderia ficar aqui a manhã inteira. No entanto, a lembrança da noite passada me faz ponderar o quanto também aprecio a ardência gostosa da sua barba por fazer raspando a minha pele.

— Foi um sonho bom? – Ele planta um beijo em meu pescoço.

— Sim, mas a realidade é sempre melhor.

— Quem me dera poder transformar esse sonho em realidade agora mesmo, mas tenho que descer.

— Fica mais um pouco.

— Eu queria muito, mas hoje não posso. É o primeiro dia do curso de culinária para crianças.

— Você não está nem um pouco ansioso, não é? Quer ajuda?

— Está tudo sob controle. – Peeta desliza para fora da cama e abre a gaveta em busca de uma camisa. — Essa vontade de levantar cedo pra me ajudar já é saudade da casa lotada de crianças e adolescentes, Katniss?

O caos cheio de vida provocado pelos nossos pequenos hóspedes se tornou um doce tormento para mim e Peeta todos os anos, desde aquela semana que passamos juntos após o casamento de Effie e Haymitch.

Ao menos uma vez por ano, os filhos de nossos amigos se reúnem em nossa casa por alguns dias.

E chamá-los de crianças é apenas modo de dizer, pois Luke, Leo, Finn, Elliot e Maysilee já estão no início da adolescência.

O tempo está passando tão rápido que logo estarão a um passo de saírem de casa para frequentar a Universidade e construir suas próprias vidas, e nunca teremos esse tempo de volta com eles. Então, nós os encorajamos a ficar conosco sempre que quiserem.

Mesmo os menores, como Lily e Thomas, os filhos mais novos de Delly e Thom, e Victoria, a menina sapeca de Johanna e Max, têm espaço e são acolhidos e bem cuidados em nossa bagunça aconchegante.

Basta me lembrar do barulho deles pelos cômodos na última semana para sorrir.

É pena que já se foram. A ausência de todos aqueles sons me faz suspirar. Era o som da casa cheia e feliz. E o silêncio de agora é o som da saudade.

Esse sobrado enorme perde um pouco o sentido. Tão quieto. Tão inabitado. Nem consigo disfarçar direito minha desolação.

Sempre que eles retornam para seus lares, permanecer em casa e perceber esse vazio me desmonta por completo.

E, nessa última despedida, eu vi neles, principalmente nos mais velhos, uma tristeza nostálgica por aqueles dias estarem chegando ao fim, por deixarem aquele pedaço de infância para trás. Eles foram a alegria em pessoa durante essa temporada.

— Sinto falta da algazarra deles, mas sinto falta também de ter você só pra mim, sem preocupações com horários, atividades, refeições… – enumero.

O colchão afunda mais uma vez com o peso de Peeta.

— E sem preocupações quanto a onde e quando namorar em paz. – Peeta volta a me fazer carícias, roçando seu nariz em minha orelha, mas infelizmente olha para o relógio e vê o adiantado da hora.

— Não vai dar tempo nem de tomar um chá antes de sair.

Solto um suspiro sentido, que sai quase como um lamento do fundo da garganta.

Ergo os olhos para ver a fronte de Peeta franzida em confusão.

— Está tudo bem?

— Está. É só um sentimento estranho.

— Acho que sei o que é. A casa está grande demais – supõe ele, traduzindo o que estou sentindo e fazendo meu estômago revirar um pouco, por ser a mais pura verdade. — Mas vamos torcer para que seja por um tempo curto, não é? Durma mais um pouco e não se esqueça de se alimentar bem. Você está um pouco abatida. Talvez seja o caso de ir ao médico para ver se está precisando de alguma complementação com vitaminas e, deixe-me ver se eu lembro o nome… E ácido fólico. É isso!

— Do que você está falando?

De uns dias pra cá, Peeta tem feito essas recomendações e tomado esses cuidados com meu descanso e minha alimentação de modo muito mais frequente.

— Até quando você vai ficar guardando segredo, Katniss?

— Como assim?

Ele apenas pisca para mim, com um sorriso gigantesco, deixando-me completamente desorientada.

Peeta me beija uma última vez e sai do quarto.

— Você também sente falta de ter a casa inteira apenas pra você, Dandelion? – pergunto, coçando atrás das orelhas do bichano enroscado às cobertas.

Miau. O gato se espreguiça e torna a se deitar.

— Vou tomar isso como um sim.

Dandelion foi o presente que ganhei de Finn há alguns anos. Eu e Peeta não estávamos querendo outro animal de estimação, especialmente após a partida tão dolorosa de Buttercup.

No entanto, quando Finn surgiu com uma bola de pelos completamente branca, como um dente-de-leão na fase final da floração, foi amor à primeira vista.

Eu me enrolo sob o edredom macio e Dandelion, que já está novamente espichado na cama, ajusta ligeiramente sua posição à minha, ronronando.

— Ai, Dandelion, eu não sei exatamente do quê eu sinto falta.

Repentinamente, surge em meus pensamentos a ideia de que está em minhas mãos a decisão que fará cessar esse sentimento desagradável de vazio.

E essa ideia vem acompanhada de uma ansiedade que me consome, algo insaciável.

Estou pensando em ter filhos? Esse é um tema sobre o qual sempre penso.

Mas estou realmente considerando que isso aconteça? Ao menos nos últimos dias, a resposta é sim.

No entanto, eu não sei se vou conseguir levar essa minha súbita vontade adiante. Não seria justo dar a Peeta falsas esperanças.

Eu só sei que, a cada dia, fica mais intensa essa dor em meu peito pela falta de uma risada infantil no ar, pela ausência de pequenos pés correndo por todo o lado.

Como posso sentir falta de alguém que nunca conheci? Como isso é possível?

Antes que isso me abale ainda mais, fecho meus olhos, implorando para que, ninada pelos sons suaves do gato manhoso, eu adormeça rapidamente.

É lógico que o sono não volta, apesar de eu insistir em continuar deitada.

No entanto, preciso me levantar quando o telefone toca.

— Alô?

Bom dia, Katniss. Eu gostaria mesmo de falar com você. – O sotaque da Capital já me deixa alerta. — Você está bem? Como está sua saúde?

— Dr. Aurelius. Bom dia. Estou bem, no geral.

Isso me tranquiliza bastante, especialmente pelo motivo da minha ligação… É um tanto embaraçoso, mas você precisa saber que existe a suspeita de que houve uma troca indevida nos medicamentos que você usa. O possível erro está nos remédios fornecidos na última remessa.

— O q… O que isso significa?

— Infelizmente, os medicamentos podem não fazer o efeito esperado.

— Isso é muito grave!

— Sem dúvidas. As consequências podem ser terríveis para a sua saúde. Você teve alguma recaída depressiva?

— Não, mas... – Não consigo raciocinar direito, pois apenas uma preocupação fica latejando em minha consciência: os remédios com efeito contraceptivo faziam parte dessa encomenda.

— Eu recomendo que suspenda o uso das medicações até que tudo seja esclarecido. Eu preciso também que você me informe o número do lote dos medicamentos para checarmos se realmente houve algum problema... Tudo bem, Katniss? – A voz ao telefone agora é apenas um som distante e abafado. — Katniss?

— Dr. Aurelius, preciso desligar. Eu telefono depois.

Alguns fatos recentes cruzam a minha mente. Enjoos matinais, sensibilidade em relação a alguns aromas e muito sono.

Não posso estar grávida. Não sem me preparar minimamente pra isso. Não sem me decidir. Não sem estar certa de que eu posso e quero. Não por conta de um erro da Capital.

O simples pensamento se sobrepõe ao meu parco autocontrole. De repente, eu me sinto pesada e, em segundos, entro em pânico quando um gosto amargo sobe até minha garganta.

Corro até o banheiro e despejo o que está provocando meu mal estar na privada. Fico de pé com dificuldade e agarro a borda da pia, enquanto espero que as náuseas e tonturas me abandonem.

— Isso não pode estar acontecendo! – grito, minha voz ecoando pela porcelana.

Após longos minutos, quando meus batimentos cardíacos já estão menos acelerados, ligo de volta para o Dr. Aurelius, que atende prontamente e me explica mais ou menos o que aconteceu.

Um novato no laboratório equivocou-se com números de lote, receitas médicas e embalagens e eu posso ter recebido tudo corretamente, com os rótulos trocados, ou pode ter vindo tudo errado mesmo.

Relato para o médico os sintomas que identifiquei recentemente, evidenciando a dúvida quanto à possibilidade de estar grávida.

Tudo o que você descreveu é bem comum no início das gestações, mas isso somente será confirmado com os exames próprios, que você pode fazer no Distrito 12 mesmo. De qualquer modo, é importante cuidar da sua saúde e da sua alimentação. Vou receitar um complexo vitamínico que contém também ácido fólico…

O médico diz o nome do remédio e eu o anoto num gesto quase automático, pois congelo ao ouvir o nome da mesma substância que Peeta mencionou. Ácido fólico.

O que meu marido está sabendo que eu não sei? Por que razão Peeta acalentaria a ideia de que estou grávida, fazendo planos, sem me contar nada? É notório que ele vem cuidando de mim em excesso, mas o que isso tem a ver com o que acabei de descobrir?

Não gostaria de fazer nenhum exame e despertar a curiosidade das pessoas a respeito de uma possível gravidez.

Desde que eu e Peeta nos casamos, há muita especulação a respeito e, bastaria qualquer movimento meu nesse sentido, para a imprensa vir me atormentar com força total.

Decido buscar a ajuda de Delly para que ela compre testes de gravidez para mim. Assim, ninguém desconfiaria do que está se passando comigo.

Eu me arrumo e, num piscar de olhos, estou batendo na porta de Delly, que se surpreende ao me ver, mas não parece tão surpresa com o meu pedido.

Antes de responder ao meu apelo, Delly se ergue rapidamente ao ouvir o pequeno Thomas resmungar, enquanto tira uma soneca no quarto dele.

A loira está sozinha em casa com o filho mais novo, pois Thom levou Lily para o curso na padaria e os filhos mais velhos, Leo e Luke, foram passar o fim das férias no Distrito 4, na companhia de Finn.

— Então, é verdade? – pergunta ela, com um sorriso enorme, ao retornar do quarto do Thomas.

— O que é verdade?

— Recentemente, Peeta me fez muitos questionamentos sobre sintomas de gravidez e cuidados na gestação – revela Delly animadamente. — Foi engraçado, porque, conforme eu ia falando, ele ia confirmando com a cabeça, dando a entender que você estava tendo todas as reações que eu tive… Oh, Katniss, ele está tão feliz com a troca dos medicamentos.

Disfarço como posso o choque que é para mim receber tal informação.

Então, Peeta sabia de tudo… E há algum tempo. Meu estômago embrulha e cubro minha boca com minhas mãos.

— Você está bem? Parece um pouco pálida – repara Delly.

— Fiquei com ânsia de vômito.

— Vem comigo até o banheiro, Katniss!

Chego ao banheiro a tempo. No instante em que me inclino sobre o vaso sanitário, tento imaginar em como Peeta pode estar envolvido no erro do laboratório.

Que artimanhas aprontou aquele padeiro que, nesse momento, eu detesto amar tanto?

Quando passa o pior, Delly me leva até a sala. Ela deixa o cômodo após me oferecer um copo d'água e, ao voltar, toca mais uma vez no assunto dos testes de gravidez.

— Não é preciso comprar nenhum teste, Katniss. Antes de ficar grávida do Thomas, eu fiz um estoque com diversos tipos e marcas. E não usei todos, pois descobri logo que estava esperando meu caçulinha.

Delly estende para mim uma sacola com diversas caixinhas e, numa de suas mãos, uma embalagem aberta.

— Você pode fazer esse teste agora. Imagino a sua ansiedade!

— Eu não sei se devo…

— Ai, tudo bem… Você deve estar esperando pra fazer quando estiver com o Peeta, não é? Acho que a ansiosa aqui sou eu!

As palavras de Delly, em vez de me demoverem da ideia, acabam me convencendo de que é melhor fazer esse teste bem longe do Peeta, porque estou furiosa com ele.

Mal consigo segurar a haste do teste aberto por Delly. De volta ao banheiro, sigo as instruções e aguardo os cinco minutos mais longos da minha vida. Como resultado, há apenas um tracinho desenhado no pequeno painel branco que seguro em minhas mãos trêmulas.

— E então? – Delly questiona antes mesmo que eu abra a porta.

— Deu negativo.

— Você está bem? – pergunta do corredor. — É bem decepcionante isso, não?

Uma mescla de sentimentos arde em meu peito. Eu não sei o que pensar sobre o resultado do teste. Não sei se estou aliviada, feliz ou… Decepcionada.

Abro a porta e Delly me ampara, segurando meus ombros.

— Não se preocupe, Katniss. Esse não é um resultado cem por cento confiável. O teste talvez tenha sido feito cedo demais.

— Sério? Eu… Eu vou levar os outros testes comigo para usar nos próximos dias.

— Faça isso. E não desanime!

Após me despedir de Delly, meus pés caminham por inércia em direção à nossa casa, mas minha mente me ordena a ir à padaria para falar com Peeta, para o bem de ambos. Eu não posso ficar remoendo essa história durante o resto do dia. Preciso de esclarecimentos.

Assim, com muita força de vontade e resistência, giro para o outro sentido.

Na praça, encontro Tessa, uma das professoras da escola, que foi buscar os filhos, que participaram do curso ministrado por Peeta, todos felizes e com as barrigas estufadas de tantas guloseimas que comeram.

— O curso do Peeta foi um sucesso. Ele leva muito jeito com crianças. Eu sempre acreditei que os filhos de vocês serão crianças de sorte! – afirma ela. — E Peeta tem estado particularmente feliz esses dias… Será que temos novidades a caminho? Se for isso mesmo, que o bebê venha com muita saúde!

— Ah… Obrigada, Tessa – agradeço, abaixando os olhos.

Chegando à padaria, avisto a versão mirim da Delly, a garotinha gorducha, de cabelos loiros e encaracolados, com grandes olhos azuis brilhantes e risada fácil.

— Eu quero muito ter uma pequenina como você! – Peeta exclama, mantendo Lily em seu colo.

Minha respiração paralisa. Peeta beija a face da menina e me lança um olhar tão cheio de felicidade e esperança, que eu tremo de pavor.

Não houve rodeios na mensagem dele. Eu não tenho escapatória a não ser confrontá-lo.

— Corre lá para o seu papai ou você vai se atrasar para o almoço.

Lily dispara em direção aos braços abertos de Thom, que a espera para levá-la pra casa. Ela ainda está ocupada gargalhando como as crianças pequenas fazem, quando aponta pra mim e grita.

— Tia Katniss! Eu não quis aprender a fazer pão com os outros alunos.

— Ah, não?! Se bem que, semana passada, você teve uma aula especial junto com seus irmãos, não foi?

— Sim! Aí, o tio Peeta me deixou pintar.

Seguro a mãozinha estendida e aperto-a calorosamente, sentindo os resíduos pegajosos da tinta recém-utilizada.

Peeta se aproxima e me mostra a pintura que eles fizeram juntos. Em qualquer outro momento, eu teria sorrido abertamente, por ele ser tão adorável.

Ocorre que, nesse instante, eu quero dizer a Peeta como me sinto e esclarecer tudo.

No entanto, não posso derramar minha angústia nele aqui fora, na frente de todos.

Assim, sorrio de modo comedido, principalmente para ocultar meu espírito aflito.

— Venha ver como ficou o terraço da padaria depois que terminou o curso! – Peeta me pega pela mão e sobe as escadas, animado como nunca.

Há farinha espalhada por todo o canto e muitos potes contendo restos de massa crua e recheios. As cadeiras e mesas, que estão sempre muito bem organizadas em dias normais, hoje completam o cenário caótico.

Está tudo fora de lugar. A única coisa que parece estar no lugar certo é o sorriso extasiado de Peeta, que temo desaparecerá ao fim do nosso difícil diálogo.

Quando uma lágrima escorre no canto dos meus olhos, eu a enxugo rapidamente.

— Katniss, o que há de errado? – Os olhos de Peeta se expandem.

— Precisamos conversar.

Suas mãos tentam me fazer olhar para ele, mas eu não quero fitar aqueles orbes azuis. Eu não quero chorar mais.

— Peeta, você sabia sobre a troca dos meus remédios? Desde quando? – questiono.

— Desde que eles chegaram. Você está triste por eu ter estragado a surpresa? É isso?

Minha face perde a cor.

— Surpresa? Então, você fez mesmo de propósito? Você chama isso de surpresa? É uma traição! Das mais covardes… – Eu me exalto e Peeta se assusta.

— Não sei o que você pensa que eu fiz de errado – começa ele calmamente. Pensar? Como ele tem coragem de dizer isso? Não há dúvidas de que ele fez algo errado!—, podemos discutir isso sem ser desrespeitosos um com o outro.

— Eu duvido que eu possa. – Encolho os ombros e estreito os olhos.

— Você está aborrecida comigo? Por quê? – Peeta indaga e aponta uma cadeira vazia.

Ignoro o gesto, porque eu não conseguiria discutir propriamente com ele, se estivesse sentada.

— Delly me disse que você perguntou sobre os sintomas da gravidez e mencionou a troca de remédios – declaro amargamente, sem saber que eu soaria tão raivosa. Mesmo percebendo que não tenho como me controlar, continuo: — E foi há algum tempo!

— Sim – Peeta confirma.

Ele parece tão nervoso e desnorteado quanto eu.

— Eu fiquei sabendo apenas hoje sobre o erro da Capital na troca de medicamentos.

— Eu não entendo. Foi um erro? – inquire ele, abalado.

— Claro que sim! – esbravejo, marcando as veias do pescoço. — Claro que foi um erro.

— E a sua conclusão natural é pensar que eu fiz isso de propósito, como um traidor covarde? – Ele não hesita em repetir minhas duras recriminações. — Não sei qual das notícias é a pior.

— Você fala como se não quisesse que eu engravidasse a qualquer custo.

Noto tarde demais o modo insensível como foram proferidas as palavras.

— A qualquer custo? Katniss, estou ofendido por cogitar que eu seria desleal a esse ponto.

— O que aconteceu, então? Como você sabia da troca dos remédios?

— Eu comparei os rótulos. Eu leio cada palavra neles desde o dia em que você disse ao Dr. Aurelius que não alteraria a fórmula do remédio por enquanto… – Peeta passa a mão sobre o rosto lívido. — Além disso, você fez questão de preencher os formulários e enviar os pedidos de remédios da última vez. E também se ofereceu para pegar a encomenda na estação. Você monopolizou todas as etapas, como se não quisesse que eu descobrisse alguma coisa. Imaginei mil possibilidades… Principalmente, que você havia mudado de ideia e gostaria de me fazer uma surpresa.

Agora compreendo todo o mal entendido que levou Peeta a imaginar que eu tive a iniciativa de deixar de lado os anticoncepcionais.

— Oh, Peeta… Foi tudo uma infeliz coincidência.

— Isso explica toda essa confusão, mas não muda o fato de ter feito uma acusação tão grave.

De pé, ele me encara com seus olhos tristes, que são um poço de decepção. Eu me sinto diminuta e patética por tê-lo tratado de modo tão desprezível.

As lágrimas pendem das bordas dos meus olhos e seu olhar queima em ressentimento e dor.

— Eu fiz um teste e o resultado foi negativo, mas Delly disse que talvez tenha sido feito cedo demais.

— Então, ainda há uma chance de você estar grávida? – Peeta pergunta.

— Sim. E estou apavorada. – Minha voz mal atravessa a distância entre nós.

Imediatamente, a raiva se extingue de seus olhos, sendo substituída por remorso.

— O que você vai fazer se outro teste der positivo?

— Teremos um bebê.

Quase suavizo minha declaração com um sorriso, mas decido não fazer isso. Essa não é uma frase que eu gostaria de formular, não é uma possibilidade que eu gostaria de cogitar. Não dessa forma. Definitivamente, eu não posso me obrigar a sorrir agora.

Peeta, ao contrário, precisa se esforçar para não abrir um sorriso.
Vejo um relance de felicidade cruzar seu semblante, apesar do seu empenho em ocultar qualquer sentimento positivo ou negativo.

No entanto, eu o conheço bem, por dentro e por fora, e também todos os seus trejeitos e expressões.

— Não queria ter dito aquilo, Katniss. Você também não tinha conhecimento de todos os fatos e estava certa ao vir tirar satisfações comigo. Eu é que fantasiei tudo e também tirei conclusões precipitadas.

— Eu não deveria ter julgado você tão mal, muito menos falado aquelas coisas horríveis.

— Não seria você, se não fosse sempre tão sincera e determinada. – Peeta ri. — E eu sou apaixonado por todas essas características. Elas são parte de você.

— Mas o teste pode continuar sendo negativo, Peeta. E eu não vou me esquecer do quanto você estava radiante nessa última semana, agora que sei o motivo.

De fato, algo mudou drasticamente em Peeta. Seu jeito protetor se intensificou de modo exagerado. Seu sorriso irradiava algo diferente. Seus olhos brilhavam intensamente.

— Eu admito que estive no auge da felicidade e, agora que sei que você não mudou de ideia, estou triste, muito triste. – Peeta coloca o indicador por baixo do meu queixo e o levanta delicadamente, até eu olhar para ele. — Mas nós ficaremos bem. Eu asseguro. Não temos que realizar todos os nossos desejos para sermos felizes juntos, não acha? Alguns sonhos podem ficar pelo caminho. – Apesar de tentar ocultar, a voz dele soa com pesar.

O sorriso de Peeta vem menos fácil e eu não posso culpá-lo.

— Peeta… – inicio, mas perco a coragem de admitir que estou na dúvida sobre querer tudo o que ele quer.

O pensamento de que, nesse dia tão atribulado, também cheguei a almejar as mesmas coisas – e a grandiosidade do que isso significa –, deixam-me atônita.

Então, empurro a ideia para o fundo da minha mente, para o mesmo lugar onde eu guardo os meus medos, de modo que fique trancafiada o suficiente para que eu permaneça calada e volte pra casa sem me abrir inteiramente com Peeta.

E me sinto a pior das pessoas quando seus olhos marejados evitam os meus a todo custo.

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Vem aqui dar boa tarde à tia Katniss, Victoria! – Johanna e a filha estão ao telefone comigo. As duas falam através do viva voz.

Boa tarde, tia desmiolada.

— Oi, Vivi! – respondo.

Ela me chamou de Vivi, mamãe!

— Eu ouvi! Como pode isso? Escolhi um nome forte e essa tia desmiolada fica chamando você de Vivi— Johanna reclama.

— É apenas carinho, Johanna! Não é, Vivi?

É sim. Eu gosto, mamãe!— Victoria me defende. — Tia, tia! Quero caçar frutinhas na floresta!

— Ah, você quer colher frutas… Vou separar aquele cesto pra quando você voltar aqui.

O cesto que tem fitinha rosa?

Ah, não! – resmunga Johanna. — Primeiro, você chama minha filha de Vivi, agora fica incentivando a menina a usar fitinhas cor-de-rosa? Estou criando a Victoria pra ser durona.

— Mas ela me disse que era a cor preferida dela!

Katniss, sinceramente, não sei que tipo de feitiços você e Peeta lançam sobre essas criaturinhas! Essa criança só fala em vocês o dia inteiro…

— Peeta é maravilhoso com elas.

Não só ele— elogia Johanna. — Está tudo bem?

— Já tive dias melhores.

Então, é preciso que se lembre de que já teve dias muito piores também. Mesmo assim, você conseguiu sobreviver.— Um burburinho ao fundo denuncia a chegada de outras pessoas no recinto onde estão Johanna e Victoria. — Agora, eu tenho que ir, porque o Finn acabou de entrar aqui com Leo e Luke e eles querem levar a Vivi para passear na praia, mas já está quase na hora do banho.

— Tchau, Johanna. Pode ir cuidar da sua menina, que já é muito durona, mesmo gostando de enfeites cor-de-rosa. Beijos em todos por aí!

Desligo o telefone e o rosto divertido de Finn e a carinha esperta da Vivi pairam em meus pensamentos. Penso em como eles vão dobrar a Johanna em dois tempos, com a lábia deles. Automaticamente, um sorriso se forma e meu coração se aquece.

É aquele sentimento conhecido, puro e intenso, que toma conta de mim quando acompanho a eles e todos os outros crescendo e se desenvolvendo, transformando-se em pessoas incríveis, inteligentes e criativas.

Abandono por um tempo os afazeres domésticos com os quais estava me ocupando antes do telefonema de Johanna e subo as escadas até o quarto.

Eu me posiciono diante do espelho. Levanto a bainha da minha camiseta até pouco abaixo dos meus seios e corro os dedos pela minha barriga reta.

Eu me lembro de Peeta falando:
“Katniss, eu nunca teria insistido, se não houvesse percebido que era algo que, no fundo, você também queria.”

Eu neguei isso mais vezes do que posso me lembrar, com todas as minhas forças.

Acontece que é verdade, eu também quero uma casa cheia de vozes infantis, de brinquedos espalhados por todo o lado, de mãozinhas miúdas acariciando meu rosto.

Porém, para conseguir isso, seria preciso me despir de todos os receios já enraizados em mim.

O fato de que estou muito perto de algo assim, o mais próximo que estive na vida, é assustador demais. Acrescente-se aos meus medos ter de encarar a ideia de alterar minhas expectativas sobre a vida e meu futuro.

E, então, através do poder da sugestão – a partir do erro da Capital –, meu cérebro imediatamente começa a imaginar como seria ser mãe e expandir esse universo.

Apesar da minha hesitação e reserva, fui criada numa casa cheia de carinho e de música. Eu sei o que é formar um vínculo vital e diário de amor e eu preciso disso ao meu redor para me sentir plena, do mesmo modo que as pessoas precisam de ar.

É como se esse contratempo tivesse aparecido para mim no momento perfeito. Não necessariamente para que eu pudesse me decidir sobre o futuro da minha família, mas para eu adquirir uma perspectiva sobre a possibilidade de aumentá-la.

Para ser justa comigo, eu sempre imagino Peeta amando seus filhos da maneira como meu pai amava a mim e a Primrose: com canções, beijos e abraços entusiasmados, constantes risadas e muitos momentos com lembretes concretos de adoração paterna.

Não que conviver apenas com Peeta não seja maravilhoso e perfeito. O nosso amor é tudo pra mim. Ocorre que, como todo amor, ele pode frutificar.

Por isso, agora, anos após o casamento, eu me pergunto como pude imaginar uma vida sem isso: numa casa silenciosa, com tudo perfeitamente arrumado.

Como um balde de água fria que afugenta o calor gostoso que estava sentindo em meu peito, a resposta para essa questão é fácil de ser encontrada.

Uma vida diferente da que levo seria um erro e, por isso, nunca foi parte dos meus planos.

Eu já conquistei muito mais do que eu merecia. Jamais serei forte o suficiente para trazer um bebê a este mundo.

Eu simplesmente não posso fazer isso com uma criança. Eu não posso condenar alguém a ter uma mãe tão instável e com um passado tão obscuro.

Como vou explicar os meus pesadelos? Como vou dizer aos meus filhos que sou uma assassina?

Eu não posso ter um filho, sabendo o que sei, sendo quem eu sou.

O remorso marca cada pensamento meu, cada respiração minha. Todos os dias, tenho que reaprender a me desculpar comigo mesma, a me aceitar, a me entender.

Eu tive aqueles sintomas de gravidez, mas, no fundo, acho que não estou grávida. Não me sinto diferente, nem tenho o impulso para emitir qualquer daquelas frases poéticas relativas a um sexto sentido das mulheres que estão gerando uma vida.

Então, é isso… Talvez seja melhor que tudo continue assim como está.

Quando estou desenrolando minha camiseta para novamente cobrir meu ventre exposto, vejo o reflexo de Peeta no espelho a admirar a cena.

Antes que eu possa terminar a tarefa, Peeta me abraça por trás e põe as mãos sobre a pele descoberta.

— Você está imaginando um bebê se desenvolvendo aqui? – ele sussurra em meu ouvido, a emoção transbordando de suas palavras.

As mãos de Peeta sobem por minhas costelas. Com todo o meu conflito interno, meu corpo reaciona mal. Meus músculos se tensionam e arqueio as costas. É algo involuntário, mas dolorosamente repulsivo, bem diferente de como reagiria em outro momento, contorcendo-me pelo prazer do seu toque.

Peeta se ressente e se afasta. Eu me viro devagar para fitá-lo. Seus olhos são duas janelas de uma alma dolorida que chegou ao limite.

— É assim que vai ser a partir de agora, Katniss? Eu não posso mais tocar em você? Pela segunda vez, está achando que quero engravidar você a qualquer custo? Tento ser compreensivo, de verdade, mas isso foi a gota d'água! – Peeta diz asperamente, numa entonação alta, e eu acho que a casa nunca ficou tão quieta. Mesmo o gato está com a respiração presa. — Você está me negando muito mais do que esse contato físico. Você está me negando a sua confiança!

— Eu amo e quero você. Eu confio em você mais do que em mim mesma. Mas esse não foi um dia comum pra mim.

— Nem pra mim! Imaginar que algo como uma gravidez pudesse acontecer… Isso também mexe comigo. Muito. É difícil tentar esconder de você essa fagulha de ilusão que nasceu em meu peito! Eu sou um estúpido mesmo.

— Não, Peeta.

— O problema sou eu? Às vezes, eu me pergunto se o veneno no meu organismo afetaria meus filhos também.

Balanço a cabeça rapidamente e avanço uns poucos centímetros até Peeta, porém ele se afasta.

— Claro que não. Eu já consultei a Dra. Ceres a respeito – esclareço.

— Já? Por acaso, você já se interessou por isso?

— Detesto saber que você pensa que sou tão indiferente assim aos seus apelos. Mas não há um dia sequer em que eu não considere dar um filho a você. Essa ideia me tortura desde sempre.

— Em geral, as pessoas acalentam a ideia de ter filhos. Já você usa o verbo torturar-se… Dá pra notar a diferença?

As gotas formadas por minhas lágrimas tornam ainda mais concreto o meu desespero. A pressão se forma no meu peito e, então, a descarga:

— Eu não sou uma vitoriosa, não no sentido real da palavra! Os Jogos me venceram. Muito antes de eu entrar naquelas arenas, eles já haviam me transformado nesse caco de pessoa, incapaz de querer o que a maioria das meninas acalenta.

— Nós já passamos por tantas coisas boas. Por que tem que continuar a ser assim tão difícil?

— Eu sabia que isso ia acontecer. Era inevitável. Eu o alertei tantas vezes que você me odiaria e se arrependeria por ficar comigo.

— Espere um minuto. Vamos rever os fatos… Salvo engano, não foi você quem acabou de ser rejeitado. Será que sou eu mesmo o arrependido? – Sua expressão rígida não se altera. — Não a odeio por isso e não me arrependo. Eu me casei com você sabendo que não queria filhos. Não tenho o direito de exigir nada. Mas você não pode roubar de mim o direito de ficar triste, de me sentir frustrado por ter falhado nas minhas tentativas de convencê-la.

— Não suporto ver você triste por minha causa. Eu assumi perante todos a missão de fazer você feliz. Eu prometi isso a você.

— O que falta ainda pra você abrir os olhos e enxergar que isso não diz respeito apenas à minha felicidade? Você sabe tão bem quanto eu o que é ver essa casa cheia de risadas e de alegria, sabe o que é se apegar a uma criança e depois vê-la partir, voltar ao seu verdadeiro lar.

— Peeta, eu reflito tanto sobre isso. Nunca deixei de imaginar algo assim acontecendo com a gente. Mas não queria que fosse desse jeito, como se jogassem uma bomba em meus braços.

— E pensar que você cogitou que eu faria isso com você dessa forma… Enquanto eu estava apenas me iludindo, achando que você queria me fazer uma surpresa.

Peeta me dá as costas e escancara as gavetas, recolhendo vários objetos de uso pessoal e algumas roupas.

— O que está fazendo?

— Vou dormir no quarto de hóspedes. Pode ter havido algum erro em relação aos meus medicamentos também. Tenho a impressão de que posso sofrer uma crise a qualquer momento – justifica ele, apontando um motivo para não passar as noites comigo. — O seu gesto de repulsa doeu mais do que qualquer dos meus ferimentos físicos. E eles não foram poucos.

Eu quero consolá-lo, dizer que tudo o que ele disse é verdade, afirmar que eu gostaria de realmente fazer a surpresa que ele estava aguardando e substituir o seu semblante entristecido por aquela alegria estampada nele instantes atrás.

No entanto, minha apreensão não me deixa emitir nenhum som. Há uma linha tênue que não posso ultrapassar. Preciso ser cautelosa para não tomar nenhuma decisão baseada na emoção e, ao mesmo tempo, é melhor me calar para não magoá-lo ainda mais.

Eu me sento na cama e abraço o travesseiro de Peeta. Respiro fundo e ali está o cheiro dele, que me acalma e me consola.

— No fim das contas, eu sou o culpado, não você. Infelizmente, alimentei essa ilusão, enquanto você não fazia ideia do que estava acontecendo. – Peeta aperta os olhos fechados antes de prosseguir: — Quando se quer muito uma coisa… Deixa pra lá. Esquece.

Ele não completa a frase e nenhum de nós diz uma palavra. Engulo em seco, sabendo que ainda nos amamos, mas que, agora, mais do que nunca, a minha indecisão está nos afetando.

Peeta me estende a mão e eu hesito por um segundo, pensando que ele quer pegar seu travesseiro, o qual não quero entregar. Um intervalo relativamente curto, mas longo o bastante para ele guardar sua mão novamente, devolvendo-a ao bolso em que estava antes de me oferecer essa trégua que, por um segundo apenas e por um motivo inocente, recusei.

Constato com melancolia que, mesmo depois de tudo o que passamos, ainda há espaço para alguém se machucar aqui. E, como Peeta disse, esses ferimentos na alma são piores do que os que sofremos na nossa carne.

Se eu soubesse que aquela seria nossa última conversa frente a frente durante dias, eu teria insistido em segurar sua mão, em saber o que ele queria dizer.

 

¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸

Nos dias que se seguem, Peeta sai de casa mais cedo que o normal e volta mais tarde. Entra em casa pela porta dos fundos e se tranca em seu ateliê de pintura. Seus últimos quadros continuam lindos, mas sombrios e soturnos.

Quando tento algum contato, o simples fato de olhar pra mim parece doloroso pra ele.

Peeta me toca apenas depois dos meus pesadelos, que se tornaram muito mais frequentes e terríveis, envolvendo crianças e mortes horrendas.

Sinto tanta falta de estar perto dele, de ouvir sua voz num tom tranquilo, de ver seu sorriso, de seu olhar amoroso.

Qualquer vida sem Peeta é pior do que qualquer sonho ruim e eu preciso mudar isso.

Hoje, eu preparei um jantar para nós dois, simples, mas especial. Pedi para Greasy Sae me avisar quando Peeta saísse da padaria, porém ele está levando muito mais tempo do que o normal para chegar em casa e já estou impaciente e preocupada.

Eu suspiro profundamente quando a porta dos fundos se abre.

Só uma réstia de luz aparece no vão, revelando para Peeta os pratos sobre a mesa de jantar. As velas queimaram-se quase que por completo e os pingos de cera estão secos em volta do castiçal. Não sei o que está mais frio, se é a comida pronta ou o seu olhar de desapontamento supremo. Em suas mãos, há uma sacola transparente com alguns potes de tinta e um rolo de telas em branco.

Eu pedi a ajuda da Effie para colocar num cordão a pérola que Peeta me deu na arena-relógio. Estou usando o adorno no pescoço e faço de tudo para que ele veja, mas o interior da casa volta a ficar escuro, quando fecha a porta.

Seguro a pequena esfera entre os dedos e sou a primeira a falar.

— Chega de me ignorar. – Eu o intercepto no caminho até a escada. — Você é melhor do que isso, Peeta.

— Estou apenas cansado. Só isso.

— Não está cansado para pintar até altas horas da noite?

— Minhas pinturas são minha válvula de escape.

— Seus quadros novos são maravilhosos, mas eu odeio todos eles.

— Isso não me faz sentir melhor, Katniss. Você deve imaginar o motivo. Eu retrato nas telas o que está se passando comigo.

— Até isso eu faço com você, Peeta? – murmuro, arrependida por recebê-lo tão mal, quando meus planos eram o oposto disso.

— Ah, finalmente! Estava demorando a aparecer a dona de todas as culpas. Por favor, permita-me viver a minha frustração sem colocar mais esse peso nas minhas costas. – Peeta usa um tom ríspido. — Estou decepcionado, sim, mas é comigo mesmo.

— Sinto muito, Peeta. Eu não queria estragar tudo ainda mais – sussurro, quando chego junto a ele, ficando a apenas passos de distância, distância que dói, pois morro por abraçá-lo.

No entanto, devo dar o espaço dele. Seu ar defensivo arrefece também. 

— Eu também tenho que pedir desculpas e quero também dizer que nós vamos encontrar o caminho de volta um para o outro. Apenas não tenha pressa. Isso vai acontecer. Só precisamos ter paciência.

Peeta torna a andar e passa por mim. Eu gentilmente seguro seu braço e sinto que ele usa de todas as suas forças para não ceder. E isso tem um alto preço. Deixá-lo esgotado emocionalmente e propício a flashbacks.

— É melhor você me deixar ir.

Peeta se solta de maneira suave, mas firme. Conforme ele libera seu braço dos meus dedos, usando sua outra mão, tento transformar esse contato numa forma de carinho. Acaricio seus dedos e os entrelaço nos meus, mas ele resiste.

— Katniss, não. Eu preciso mesmo ir e não venha atrás de mim. Era isso que eu queria evitar todo esse tempo.

Preocupação e medo mancham sua voz. Ele vira o rosto. Não vejo seus olhos, mas não preciso e não quero, pois sei que já perderam o brilho e a cor azul.

Peeta sobe as escadas aos tropeços. Fecho meus olhos com força ao escutá-lo bater a porta e cubro os ouvidos ao distinguir os sons da destruição que agora está acontecendo em seu ateliê.

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Nessa noite, nenhum pesadelo me atormenta, pois não pego no sono mesmo depois de horas. Em compensação, meus pensamentos são tão aterrorizantes ou mesmo piores do que um sonho ruim. Apenas no início da manhã, consigo me perder num breve cochilo.

O timbre do telefone soa em meus ouvidos, porém estou tão entorpecida pelo sono e pelo cansaço, que não me animo a atender a chamada. De qualquer modo, o som cessa depois de alguns toques.

Logo após, são os passos de Peeta no quarto que me sobressaltam. Vejo seu vulto em meio à penumbra. Ele abre uma fresta da cortina para entrar um pouco de luz e distingo um copo com água em sua mão.

— Katniss, já acordou? – Peeta indaga baixinho e eu me impulsiono para me apoiar em meus cotovelos. — Acabaram de ligar da Capital. Conseguiram identificar o erro no lote dos seus remédios. Não houve nenhuma alteração na fórmula dos comprimidos, apenas na rotulagem.

— Ah! Ótimo! – despejo, sem realmente pensar no sentido da palavra, pois minha mente ainda está nublada pela falta de descanso.

— Então… Vida que segue. – Suas sobrancelhas se juntam, desesperança e desilusão pesando em sua expressão.

Eu achava que deveria me sentir instantaneamente melhor ao saber dessa notícia. Não entendo o motivo de não conseguir. É bem confuso e doloroso não experimentar, de fato, nenhum alívio.

— Eu devo ter assustado você ontem, mas eu consegui me acalmar relativamente rápido.

— Você está bem?

— Só perdi alguns quadros, mas você não tem o que lamentar, pois não gostou deles mesmo.

— Eram todos lindos.

— Eu não fiquei para o jantar, porque… Bem, eu já estava pressentindo algo ruim. A dor de cabeça estava lancinante.

— Fica o convite para hoje à noite.

Peeta faz menção de falar alguma coisa, mas não leva sua intenção adiante.

— Está querendo me dizer algo?

— Você fez mais algum teste de gravidez? – questiona ao se aproximar da cama.

— Todos os dias. Todos negativos.

— Melhor assim… Trouxe isso pra você. Talvez seja esse o caminho para ter você de volta.

Eu assisto estupefata a Peeta puxar uma cartela prateada de seu bolso e me estender junto ao copo.

Abro a embalagem e uma pílula cai na palma da minha mão. Eu a coloco na boca logo em seguida e deixo escapar um soluço estrangulado, expulsando o comprimido antes que eu possa engoli-lo.

Peeta me observa com espanto, assimilando a minha reação e o pequeno círculo branco caído entre os lençóis.

— Isso é um sinal de que esse é o fim do caminho?

— Não, Peeta. Por favor, entenda… – As palavras me fogem, pois não tenho uma explicação.

— Eu procuro entender, mas é difícil quando você não se abre pra mim! De qualquer forma, os remédios estão aqui e eu estou de saída.

Peeta deixa o copo sobre a cômoda e sai apressado porta afora.

— Não há um caminho de volta, pois você nunca me perdeu – balbucio, mas ele pode me escutar, pois seus passos são interrompidos logo após atravessar o umbral da porta.

De qualquer modo, ele segue seu rumo sem retornar ao quarto.

Não tento mais tomar o remédio. Apenas bebo a água que Peeta trouxe, desejando que fosse algo mais forte. Depois, ando em círculos pela casa antes de decidir ir à floresta.

O espelho do quarto chama minha atenção. Eu fito a minha imagem, as mechas escuras do meu cabelo se entrelaçam na trança lateral, os olhos cinzas gelados do meu reflexo olham fixamente para mim.

Tudo igual, mas, ao mesmo tempo, tudo tão diferente.

Isso é bom? Não é o que deixo transparecer. A tristeza em meus olhos é difícil de ignorar. Suspiro, deixando a cabeça pender pra frente.

Uma parte de mim odeia os fabricantes de medicamentos da Capital por terem feito essa bagunça na minha vida.

Outra parte agradece por terem me arrancado da minha zona de conforto e de negação. É pena que por um alto preço, afastando-me de Peeta.

Separo a louça para tomar meu café da manhã, mas eu detesto fazer isso sozinha.

Cada tarefa cotidiana me lembra de que Peeta não está aqui. Como uma ausência pode ser tão tormentosa? Ele está em toda a parte e não está em lugar nenhum.

Tenho que ver e falar com outras pessoas. Saio de casa em jejum mesmo.

Crianças com suas famílias, jovens casais e idosos estão começando a deixar suas casas para iniciarem o dia.

— Katniss! – ouço Greasy Sae me chamar atrás do balcão de seu estabelecimento. — Venha ver a nova decoração!

Atravesso a rua, satisfeita por alguém querer a minha companhia. Procuro um lugar onde me sentar. O estabelecimento é pequeno, não há como escolher uma mesa em que eu não veja ou não seja vista.

Ao menos, posso observar as pessoas que passam pela rua.

Daqui de onde estou, consigo ver a padaria. Está na hora de as crianças irem para a escola. Todas elas, sem exceção, acenam em direção ao interior.

Eu sei que invariavelmente quem está lá nesse horário é Peeta. As crianças do Distrito são vidradas em seu jeito atencioso e paciente, em sua generosidade e em seu desprendimento, que quase sempre o leva a ter prejuízo nos negócios, tantas são as concessões que faz aos pequenos em relação às guloseimas da padaria.

Greasy Sae se aproxima da mesa que ocupei.

— E então, o que achou do novo visual?

— Está tudo muito bonito!

— Troquei os quadros. Daisy me mandou esses mais modernos, que ela pintou junto com o marido.

Há alguns anos, a neta de Greasy Sae ganhou uma bolsa de estudos numa escola de artes da Capital e lá conheceu um outro bolsista, que é surdo. Eles se casaram recentemente numa belíssima cerimônia, silenciosa, usando apenas a linguagem dos sinais.

— Daisy está bem na Capital?

— Muito bem. Você é que não parece estar num bom momento. Peeta também. Depois de uma semana em que só faltava pular de alegria, ele tem andado cabisbaixo.

— Peeta tem os motivos dele.

— Vocês estão precisando de alguma coisa?

— Sae, eu preciso de um chá – desconverso.

— Um chá? Tudo bem, então… De quê, minha menina?

— Canela. – Um dos cheiros que remetem a Peeta. Eu preciso sentir nem que seja o aroma que sempre exala de suas mãos.

— Katniss, talvez você não saiba, mas canela pode ser perigoso para um certo grupo de mulheres

Lembro–me de que, no livro de plantas do meu pai, há uma informação sobre o perigo do chá de canela para gestantes.

— Seja lá o que você pensa que sabe, Sae, eu não estou grávida.

— Isso é uma pena.

— Pra quem?

— Pra mim. Achei que veria você grávida antes que eu morresse.

— Você acabou de me dar mais um motivo pra isso não acontecer tão cedo. Assim, eu adio a sua morte.

Os olhos enrugados de Greasy Sae apertam-se um pouco mais.

— Eu não morreria em paz.

— Não diga bobagens.

— Se eu visse que você realmente não quer isso em seus olhos e em seu sorriso todas as vezes em que brinca ou conversa com uma criança, eu ficaria calada.

Greasy Sae se afasta e, depois de um tempo, despeja o chá numa caneca à minha frente.

Não preciso experimentar para saber que, apesar da sua advertência, ela trouxe mesmo o que pedi: canela.

Aproximo o recipiente do meu rosto, deixando que o vapor acaricie minha face.

O aroma característico da bebida me faz lembrar de como ele é marcante para mim por outros motivos. Os carinhos de Peeta têm cheiro de canela.

Não tomo um único gole. Deixo apenas a superfície aquecida da xícara esquentar minhas mãos e irradiar o calor para outras partes do meu corpo, frias demais pela falta do toque da única pessoa que me faz falta nesse instante, apesar de eu estar cercada de sorrisos e cumprimentos dos outros clientes.

Levanto-me para ir à padaria, deixando uma nota sob a xícara para pagar o chá. Dou alguns passos pela calçada, quando uma enorme figura masculina atravessa o meu caminho.

— Você é a Katniss? O Tordo? – pergunta o homem e só então reparo que segura um grande arco.

Sua pele é muito clara e seus olhos, castanhos, sinal de que não nasceu no Distrito 12.

— Só Katniss mesmo, por favor.

— Como eu poderia esquecer a bela face da rebelião? Você não mudou nada. Aliás, o tempo só lhe fez bem. – Ele sorri de modo sedutor.

— Ah, obrigada. E, com sua licença… – agradeço encabulada, dando um passo para o lado para seguir adiante, mas ele quer continuar a conversa.

— Eu me chamo Trevor. Sou do Distrito 7. Vim conhecer as florestas daqui e caçar. – Ele me estende o arco, que eu seguro e avalio superficialmente.

— É magnífico. Leve e moderno. Os arcos que uso são bem rústicos. Eu abandonei o que usava durante a rebelião.

— Eu adoraria testá-los qualquer dia, se você permitisse.

Vejo Peeta na entrada da padaria, conversando com um casal de crianças e sorrindo. Ele ainda não me viu, pois a figura imponente à minha frente me oculta parcialmente.

— Papai! Papai! Olha quem nós conhecemos! Peeta Mellark.

Trevor se vira para as crianças, que correm até ele. Peeta caminha logo atrás, sozinho, empurrando as mãos nos bolsos e meneando a cabeça para cumprimentar algumas pessoas ao redor. Quando seu olhar pousa em mim, ele faz uma pausa.

O sorriso de Peeta se desvanece no instante em que ele me vê. Minha respiração para e meu coração bate contra meu peito.

Cada passo que dá parece levar uma eternidade, mas finalmente ele está lá, de pé, a apenas alguns metros de distância.

Ele observa Trevor antes de voltar a me fitar. Eu desvio o olhar, tentando encontrar algo que justifique a minha atenção, pois assim Peeta não veria a dor em meus olhos.

— Olá, crianças. O papai conheceu a Katniss – Trevor diz.

— Oi, Katniss!

— Olá! – respondo afavelmente.

— Eu me divorciei há pouco tempo e resolvi fazer uma viagem com meus filhos. Eles escolheram o destino, pois sonhavam em conhecer vocês dois.

— É um prazer conhecer vocês – digo, tentando parecer menos agitada do que estou.

— O prazer é todo meu. Quer dizer… Nosso, não é, meus filhos? Se quiser me dar a honra de me ensinar suas técnicas de caça, posso conhecê-la melhor também…

— Conhecer melhor? – Peeta questiona, um tanto indignado, dando um passo à frente.

Eu desenrolo meus ombros para trás e olho para o outro lado da rua, tentando mostrar minha indiferença nesse momento embaraçoso.

Trevor não demora seu olhar desdenhoso em Peeta, porém mantém um ar de desafio.

— Peço desculpas pela sinceridade, mas acabei de sair de um divórcio e posso reconhecer de longe um casamento em crise.

— Acho que esse não é um assunto a se tratar na presença dos seus filhos – murmuro, apenas para Trevor escutar, o que é, em parte, um erro, pois Peeta se enfurece ainda mais quando, com um meio sorriso atrevido, esse desconhecido ao meu lado dá a entender que estou trocando segredos com ele.

Trevor parece longe de se sentir intimidado com a ira que está provocando, o que deixa Peeta ainda mais revoltado.

— Katniss… – Peeta e Trevor dizem juntos.

Os dois instantaneamente se calam e se encaram de modo hostil, fazendo o silêncio ficar ainda mais pesado.

As crianças inicialmente riem da situação, mas logo reparam que Peeta e o pai delas perderam a amabilidade e o bom humor de minutos antes.

— Se vocês me dão licença, preciso ir até meu escritório na padaria – Peeta se despede e caminha com passos firmes.

— Eu preciso ir também, Trevor. Adeus, crianças.

— Vejo você na floresta, Katniss! – Trevor anuncia em alto e bom som, de modo que sua voz também alcance Peeta.

Entro no escritório logo atrás dele e nem mesmo há tempo de ser notada pelos funcionários.

— Se eu não visse e ouvisse, não acreditaria. Você encontrou o pacote completo. Caçador, divorciado, com filhos. Tudo o que você precisa.

— O que você está insinuando, Peeta?

— Interprete como quiser. – Ele dá de ombros.

— Para com isso, por favor – suplico.

— O que mais chamou sua atenção nele? A sinceridade e a humildade, talvez? Ou foi o sotaque do Distrito 7 que cativou você tanto assim?

— Você não pode estar falando sério.

Peeta se senta na cadeira acolchoada que fica de frente para a mesa coberta de documentos, os quais ele organiza atentamente, sem olhar pra mim.

— Vamos mudar de assunto? Isso é desnecessário. Eu nunca mais vou ver aquele homem.

— Como assim? Você não vai levá-lo pra caçar? Tomara que ele não seja tão barulhento quanto eu para andar pela floresta – debocha o loiro, enquanto carimba alguns papéis sobre sua mesa como se os estivesse castigando.

Comprimo meus olhos com irritação e a raiva esquenta minha face.

— Quer saber? É isso o que eu vou fazer. – Apoio as mãos sobre a mesa e fico de frente para Peeta. — Vou à floresta agora mesmo e estou torcendo para encontrar meu novo amigo.

Eu me sinto vitoriosa por apenas alguns segundos. Logo após, a sensação de triunfo desaparece. Meu orgulho e culpa parecem sair pelos meus poros, não me deixando nem um pouco aliviada, somente vazia. Algo está faltando. Minha revolta não me preenche em nada.

— O que está esperando? Que eu vá pegar sua jaqueta de caça, para não perder mais tempo?

Ele sai do escritório e eu não o sigo imediatamente, apenas me aproximo da porta. Alheia à minha presença, Amelie comenta:

— Que lindas aquelas crianças do Distrito 7… E você se deu tão bem com elas, Peeta! Eu não entendo como você e Katniss ainda não têm filhos.

— Não queira entender, Amelie.

— Se fosse eu, já teria providenciado um be… – Ela interrompe o próprio raciocínio, envergonhada. — Desculpe-me a intromissão. Falei sem pensar que talvez seja por causa de problemas de infertilidade. Muitos casais têm mesmo dificuldade para engravidar – Amelie insiste e isso é algo bem doloroso, apesar de ela comentar sem maldade.

Peeta fica tenso e olha para trás. Amelie, então, percebe que estou ali e faz uma expressão muito preocupada.

— A infertilidade desses casais é natural e não tem nada a ver com a nossa, Amelie. A pior infertilidade é a do coração.

Peeta tem consciência de que disse a pior das atrocidades pra mim. Sem se virar em minha direção, ele respira fundo e pisca rapidamente, como se estivesse prestes a chorar. Vejo seus lábios começarem a formar meu nome, mas me recuso a ouvir.

Corro para fora e, longe das vistas de todos, arrasto-me até a floresta. Ao contrário do que disse a Peeta, fico feliz por não encontrar ninguém.

Uso como passagem uma abertura diferente na antiga cerca eletrificada, para que ninguém possa vir à minha procura, e caminho a esmo mata adentro, cega pelas lágrimas.

Paro alguns bons metros adiante para descansar e, sentada no chão, escoro minhas costas numa árvore frondosa.

O resto do dia transcorre e, conforme o sol avança no céu, posso distinguir os diferentes matizes de laranja tingindo o horizonte. Uma imagem que Peeta adoraria repetir em um de seus quadros.

Recosto minha cabeça no tronco da árvore e sinto minhas pálpebras pesadas pela falta de uma boa noite de sono.

Fecho os olhos e a exaustão não me permite mais abri-los. Estou naquele estado de semiconsciência, sem definir ao certo o que é devaneio e o que é factual.

Minha mente continua trabalhando, num turbilhão de reflexões que vai aos poucos se acalmando, quando eu o imagino com pincel e tinta, todo sujo com diversas tonalidades, ao lado de uma pequena menina, também coberta de manchas coloridas…

Como seria a nossa vida?

Não seria somente cheia de suas cores e seus risos. Haveria o meu lado obscuro e meus gritos de pavor.

E quando a menina completasse doze anos…

Katniss, você foi a última a ser sorteada. Você mudou isso há mais de uma década. Esse passado não pode mais impedi-la de conhecer os seus filhos.

Primrose?

Ela se senta ao meu lado com naturalidade, como se fizéssemos isso juntas todos os dias dos últimos anos. Espreito ao redor e não há névoas, nem uma luz diferente. Estamos mesmo no meu refúgio, na floresta.

Deslumbrada, estico meus dedos para tocar seus cabelos e sua pele perfeita. Seus olhos azuis continuam sinceros e atentos e me hipnotizam, como dois caleidoscópios de contas brilhantes.

Meus pensamentos estão mais lentos, mas Prim parece impaciente para me confidenciar muitas coisas.

E, pra isso acontecer, você precisa fazer as pazes com o seu marido urgentemente! – Ela dá risada. — O Peeta com ciúmes de você é tão engraçado…

Eu não achei graça nenhuma, Prim.

Ah, Katniss! Só assim pra ele abandonar o jeito certinho dele. Mas ele será um grande pai. E você, uma grande mãe.

Eu sei que ele seria um pai maravilhoso. Mas eu?

Você sim! Tão dedicada, amorosa…

Você tinha orgulho de mim, patinho? Mesmo depois que fui para os Jogos?

Sempre me orgulhei de você, Katniss. Minha admiração e minha gratidão são infinitas.

Eu perdi você…

A saudade machuca e é pior do que qualquer ferida, eu sei. Mas você não pode mudar o passado, apenas aprender com ele. E você fez tantas coisas importantes em seu passado também! A sua inteligência deu frutos… Você e Peeta saíram juntos da primeira arena. A sua coragem deu frutos… Você foi o rosto da revolução. Por que o seu amor não pode dar frutos? Olhe para as transformações em Panem, você ajudou a conquistar tudo isso! Nosso passado de sofrimentos já nos tirou tantas coisas. Não permita que prive você e Peeta disso também.

Prim, isso é como um sonho tão distante.

Um sonho que pode ser real. Basta você permitir. – Ela apoia a mão em meu rosto e eu seguro seus dedos com força, como se assim ela não pudesse jamais escapulir.

Os olhos de Primrose se desprendem de mim e se fixam em um outro ponto. Ela sorri de modo angelical.

Você era o meu sonho, Katniss. – Agora uma voz masculina, familiar e acolhedora, ecoa entre as árvores. — E a concretização dele se mostrou muito, mas muito mais linda que os meus simplórios sonhos… Nada se igualou à alegria de tê-la em meus braços e chamá-la de minha filha.

Pai? – Eu giro meu tronco e, atrás de mim, avisto o sorriso bonito, a pele cor de oliva, os olhos cinzentos como os meus e o amor paterno incondicional que emana deles.

Após alguns instantes de mútua contemplação, Primrose pigarreia levemente, chamando a atenção do nosso pai. Os olhares dos dois se cruzam e, com essa comunicação sem palavras, ele assente e volta a falar pra mim:

Filha, não adianta racionalizar muito. A nossa mente é detentora da razão, porém, muitas vezes, é o coração quem acerta. – Meu pai bate levemente em seu próprio peito e se agacha perto de mim e da minha irmã. — E o seu coração nunca errou. Você preparou o mundo para seus filhos chegarem. Preparou a sua casa e escolheu o melhor pai para eles. Seu corpo e seu coração já estão preparados também.

Meu pai roça o polegar em minha bochecha.

Você cuida de todos. Você cuidou de mim. E eu não poderia ter sido mais feliz – Prim afirma, irradiando sinceridade.

Eu não consegui protegê-la, Prim. – Olho para minhas próprias mãos. — E vocês não conseguem ver as manchas dos erros que eu cometi?

O sangue que você está procurando está nas mãos de outras pessoas. – Meu pai cobre minhas mãos com as suas.

Eu não quero que meus filhos paguem por meus erros. Não quero que recaiam sobre eles as consequências do que fiz.

Como nós, eles terão orgulho por você ser quem você é – garante meu pai.

Tomar conta de mim foi uma imensa responsabilidade. Uma responsabilidade que não era sua, mas que você assumiu. E, mesmo depois de eu já estar mais crescida, quando fui sorteada na colheita, você tomou para si o pior dos destinos. E do pior você fez o melhor. Eu gostaria muito de ver você fazer isso e muito mais… Com os seus filhos, Katniss.

Acho que o Peeta não acredita mais que eu seja capaz disso. Ele deu a entender que meu coração se tornou infértil.

Meu pai solta uma de suas gargalhadas gostosas e Prim lança a ele um olhar de repreensão, mas prende os lábios para conter um sorriso. Quando meu pai se recompõe, ele diz, com ares de sabedoria e uma boa dose de seu característico bom humor:

Filha, quanto ao meu querido genro, eu sei que vocês andaram se magoando nos últimos dias… Saiba que o amor nos faz capazes de coisas incríveis. Por outro lado, o ciúme abre um leque de atitudes das mais absurdas – Meu pai balança a cabeça. — Então, por favor, perdoe o seu marido ciumento… Ele está sofrendo também. Eu sempre acreditei que não é o desespero que pode ferir o coração das pessoas, mas a esperança. Peeta está machucado, filha, porque ele é movido pela esperança.

Cerro os olhos e, então, as cenas se reproduzem em minha cabeça numa velocidade alucinante. Todas as vezes em que Peeta salvou a minha vida, direta ou indiretamente, literalmente ou não.

Eu preciso falar com o Peeta!

Arregalo os olhos novamente, buscando a aprovação do meu pai e da minha irmã.

Meu pai confirma com um gesto de cabeça e beija os meus cabelos demoradamente. Em seguida, Prim envolve seus braços em meu pescoço e deixa um beijo em minha testa. Depois, de pé, ambos se dão as mãos e se afastam até um ponto em que quase não posso vê-los, de onde declamam juntos:

Nós amamos você! Honre a nossa memória com a sua felicidade!

Então, eu finalmente acordo. Acordo mesmo, não apenas desperto do meu sono. Acordo para pôr fim à minha indecisão.

Está ventando bastante e a sensação de frio percorrendo minha pele é mais desagradável do que revigorante, mas é quase um alívio ser atingida pelo ar gelado e saber que estou viva e que posso consertar algumas coisas.

A imobilidade temporária deixou meus membros dormentes e minha camiseta fina não combina com o frio do fim de tarde. Para completar, não faço ideia para qual direção que eu havia corrido.

Os últimos raios de sol me ajudam a me orientar. Enquanto olho para cima, lembro-me das palavras do meu pai e de Primrose para mim em meu sonho. Ao contrário do que sempre pensei, o sentimento que brota não é difícil de processar.

Sem lágrimas. Sem obstáculos. Meus pés me conduzem ao caminho de casa.

— Eu quero ser mãe!

Dizer a verdade e em voz alta é, ao mesmo tempo, inquietante e uma libertação. Todo esse peso, guardado por tanto tempo, é lançado ao vento e me faz sentir mais leve, mais certa de que não vou voltar atrás.

Passando pela casa de Haymitch, vejo que Peeta está lá dentro e os dois estão conversando. Nenhum deles me vê na rua. Então, eu me esgueiro até estar ao lado do batente, tomando coragem para chamá-los.

— Agora temos que nos concentrar em como vamos encontrá-la, garoto!

— Eu sou um idiota por dizer algo tão horrível pra ela. Katniss tem todo o direito de nunca me perdoar… Ela é como uma tempestade.

Peeta acaba de pronunciar essas palavras e, sem me conter, eu adentro a sala de Haymitch.

Eu nem lhe dou uma chance de argumentar, apenas agarro sua mão e o arrasto para fora da casa de nosso mentor, ignorando o fato de que Effie, Elliot e Maysilee, que acabaram de chegar, estão nos observando boquiabertos.

— Docinho, olha lá o que vai aprontar com o garoto! Você está com arco e flecha ao seu alcance? – Haymitch ironiza, mas não me dou ao trabalho de responder.

Apenas paro de puxar Peeta quando estamos dentro de nossa casa.

— No que você está pensando? – pergunta o loiro, confuso.

— Sobre o quanto eu tenho sido injusta com você.

— O que quer dizer? Eu que fui injusto antes de você sair correndo.

— Estou sendo injusta, sim, pois nunca lhe dei a chance de ser quem você quer ser. Nós dois sabemos o quanto você quer ser pai… E o ótimo pai que você pode ser.

— Katniss, eu escolhi você. Eu escolho você todos os dias. Nunca vou me interessar por outra pessoa que queira me dar filhos.

— Mas você sabe que quer mais do que eu sempre ofereci. Você pode negar o quanto quiser, mas eu sei perfeitamente o que se passa em sua cabeça.

— É isso o que você quer ouvir de mim? Que eu desisto de nós? Katniss, é você quem dá sentido à minha vida.

— Eu não quero mais fazer isso…

— Não! Você não pode me jogar nos braços de outra mulher por esse motivo! – Peeta me corta em desespero antes que eu conclua minha frase, deixando no ar algo que eu não tinha a intenção de dizer e eu não seguro o riso. — Não estou entendendo mais nada. – Seus olhos de safira tentam desvendar uma resposta, olhando para minha face sorridente.

— Você não me deixou concluir. Eu não quero mais fazer isso… Sozinha.

Em um movimento lento, eu guio sua mão para o meu abdômen, deixando-o saber sobre o que estou falando. Nosso bebê.

— Eu não posso ficar sem ver você feliz, sem ter o seu sorriso… Quero dividir com alguém a missão de fazer você feliz.

Peeta abre a boca e tenta formar palavras, levando o que parece ser uma eternidade para coordenar seu cérebro com suas cordas vocais.

— Você está sugerindo que… – Ele olha pra mim e fixa o cinza dos meus olhos, as suas íris azuis dançando de alegria, mas não finaliza sua frase.

No espaço onde a resposta deve estar, eu murmuro:

— Um filho.

Peeta ri e olha para baixo, para onde estão nossas mãos unidas e, dessa vez, não se preocupa em esconder a empolgação com a minha resposta. Quando ergue os olhos para mim, a bela covinha de seu queixo faz uma de suas aparições.

— Katniss, você mudou de ideia. Verdadeiro ou falso?

— Verdadeiro… Eu causei tanto sofrimento e levei tanto tempo para perceber que você faz todas as minhas regras virarem exceção. Eu não queria me casar… E o que aconteceu há anos e continua acontecendo todos os dias desde então? O nosso casamento – respondo à minha própria pergunta. — Eu nunca quis ser mãe. Mas agora eu quero. Eu quero muito. Eu preciso de um filho seu, Peeta.


 




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Notas finais do capítulo

Oi de novo!

Finalmente! Vivaaaaa!

Espero que tenham gostado das reviravoltas até chegarmos aqui nesse momento…

E que venham os bebês!

Um Feliz 2018!

Beijos!

Isabela