Onírica escrita por Lady Dream


Capítulo 1
Orgãos Numa Caixa


Notas iniciais do capítulo

Fresco, ainda com notas de travesseiro.



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Em treze de junho de 2016. 

Então estou parada em frente ao hospital, e um pouco adiante há um tumulto. Alheia a isto, tiro uma foto da rua, para mostrar qualquer coisa a alguém no What's App. Quando vê a foto, o destinatário me pergunta se estou sendo ameaçada pelo homem com um rifle. 

Só percebo que há alguém com um rifle agora. Está mais adiante, perto do muro alto de cimento, aponta a arma para baixo como quem faz a guarda de uma transação. Aos poucos e pedindo informação, compreendo que ele está resguardando duas mulheres (bem vestidas e maquiadas, embora haja um certo ar inacabado e ao mesmo tempo em sua indumentária, como se tivessem se arrumado para um teatro, não para o dia), e a transação em questão é um roubo. Elas discutem com a vítima que carro levarão, dos dois que estão parados logo atrás. Posso ouvir a morena falar:

— Melhor não levar este, já foi roubado antes, não é? - e sacode a chave de um utilitário vermelho em suas mãos. 

As pessoas ao redor assistem, como se vissem uma performance de rua. Apenas as vítimas estão tensas, as assaltantes, muito calmas. 

Recuo um pouco e pergunto se a polícia já foi avisada, para três mulheres que estão próximas de mim e também assistem. Uma delas diz:

— Não vai ter polícia, isso aborreceria os ladrões. Não queremos confusão, eles vão se resolver logo. 

De fato se resolvem, diante dos olhos apáticos do povo na calçada. As ladras levam o veículo mais vantajoso, acaba-se a cena, todos voltam aos seus próprios afazeres, inclusive as vítimas, eu desconfio. 

Sou deixada com a sensação já conhecida de impunidade e impotência pulsando em meu peito, velhos conhecidos. Penso, "minha nossa, tenho que ir embora logo daqui". 

Mas continuo ali, esperando não sei bem o quê. Vai anoitecendo, e o ponto de ônibus (oh, sim, então esse é o motivo pelo qual as pessoas estão aglomeradas na calçada) vai ficando vazio. Sai uma enfermeira do hospital, pelas portas de vidro. É uma senhora de cabelos gris cacheados; me reconhece e me cumprimenta:

— E sobre os órgãos da sua mãe, como ficou?

— Eu autorizei a doação de todos. - digo automaticamente e um pouco na defensiva. 

Porque sim, esse é o hospital que minha mãe morreu, embora estejamos, no sonho, em uma cidade diferente desta em que se sucedeu o fato. Estamos na cidade em que eu e ela, minha mãe, moramos a maior parte da minha vida.

— Precisei descartar todos - diz a enfermeira, em tom de desculpa - Fiz exames, e ela estava com Vermelhão quando faleceu. 

Pergunto se isso é um vírus. Ela me explica:

— É quando os olhos ficam muito vermelhos e irritados. 

Minha mãe só ficava com os olhos vermelhos e coçando quando estudava muito. Pergunto se é algo como conjutivite. Ela não me responde. Me pergunto se por causa de algo no olho ela teve que desperdiçar todos os outros, que sentido faz isso?

Um carro se aproxima de nós. Reconheço-o, é o da minha mãe, que ficou para mim, mas quem o dirige é o meu ex-padrasto. Alguém está com ele, alguém que é familiar mas que, no sonho, não registro a identidade. 

Meu ex-padastro estica para fora da janela uma caixa de papelão, que pretende entregar a Teresa, a enfermeira, mas como chego até o carro primeiro, ela vem parar nas minhas mãos. 

— É do reconhecimento de órgãos. - alguém me explica. 

Remexo a caixa. Pulmões murchos, azuis e vermelho escuro. Um coração que parece uma bola de soprar vermelha vazia. Pâncreas cor de amarelo mostarda. Estão todos lá, como peças antigas de um jogo de borracha. 

Há na caixa uma cartela branca plastificada, parece-me uma embalagem de CD de instalação, daqueles que vem junto com impressoras novas, ou então uma cartela de lentes de contato descartáveis. 

— São as córneas - Teresa me informa. Meu padrasto complementa:

— Mas não estão ai, porque ficaram no asfalto quando a sua mãe caiu. Mais ou menos por aqui - Indica a área da rua em que o carro está parado - Mas nunca as encontramos. 

O meu eu do sonho não acha estranho que as córneas da minha mãe possam ter caído por ali, mesmo que não tenha sido ali que ela morreu. Eu manuseio a cartela em minha mão, e consigo ver as córneas ali sim, pelo menos uma delas. Há algo branco e carnoso, e na frente, o que parece uma lente de contato cinzenta e dura, ambos boiando em um líquido transparente.

Tenho uma vontade pungente de pedir para ficar com aquilo, como lembrança, mas não digo nada. "Vão dizer que vai apodrecer", eu penso. "E depois vai ser só mais uma coisa que eu guardei dela e nunca vou usar, se acumulando no apartamento."

Até meu eu do sonho sabe do meu compromisso, muito real, de manter apenas coisas de minha mãe que terão um uso pra mim, e o mínimo possível dessas lembranças sem emprego, afinal, vou me mudar e elas ficarão para trás. 

Viro a cartela. No verso, há uma análise da cor dos olhos dela, um termo em inglês, três palavras que não fazem muito sentido juntas, uma deles é 'grim'. 

— Olha ai, algo que a gente nem sabia. - diz meu padrasto, num tom de pretenso 'ponto positivo disso tudo' - A cor dos olhos dela, significa cinza-cebola e... 

Não ouço o resto, porque vou acordando, mas sei que as palavras significam cinza e mel. Essa cor faz sentido no sonho, mas na vida real, os olhos del eram apenas cor de mel, sem cinza nenhum. 

Acordo com uma pena quase impessoal de mim mesma. Sentiria o mesmo se fosse com outra pessoa, a sonhar com os órgãos da mãe morta. Choro um pouco sobre a minha máscara de dormir, mas nem o choro dura tanto agora, nem depois dos piores sonhos.

Afinal, já fazem oito meses e três dias. Alguém no facebook me lembrou o marco alcançado, na sexta-feira. Eu não teria sabido, pois não fico contando. 

Levanto e decido que já é hora de começar o diário dos sonhos tão prometido, e que compartilhá-lo para o mundo, por alguma razão, me incentivará a não abandoná-lo. 


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Notas finais do capítulo

Deixem comentários, responderei com carinho.
Atualizarei à medida que os sonhos vierem.



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