Apocalipse: O Sino de Jade [CcL 9] escrita por Lady Lanai Carano


Capítulo 1
Capítulo Único - Xibalbá e o Sino de Jade


Notas iniciais do capítulo

Hello! ;D
Preciso que vocês leiam essa nota com atenção.
No meio da história, existem muitos termos maias. Eu tentei explicar todos ali mesmo, mas tiveram alguns que, se eu colocasse uma explicação, o texto ficaria poluído. Colocarei os significados deles nessas notas, para que você fique inteirado ;D
Xibalbá: bom, esse é um lugar importante, e acho que dispensa apresentações, mas como o termo aparece logo no começo, não faz mal falar o que é ;D Xibalbá é o submundo maia, para onde os mortos vão. É cheia de monstros e campos de tortura (muito agradável para passar as férias!)
Uinal: os maias são famosos pela sua matemática e pela precisão no calendário. Um uinal é correspondente ao período de 20 dias, importante para a precisão dos cálculos de dias e anos maias.
Baktun: assim como o uinal, baktun é um período de dias. Porém, corresponde a 144 mil dias (aproximadamente 395 anos)
Hunahpu e Xbalanque: são gêmeos importantes na mitologia maia. A lenda diz que o pai deles jogou com os deuses e perdeu. Como era de costume entre os maias, os perdedores daquele jogo eram mortos (devia ter campeonato mundial disso). Os gêmeos, seus filhos, foram se aventurar em Xibalbá para trazê-lo de volta, mas quase não saíram com vida. Tiveram que ludibriar os governantes de Xibalbá para escaparem.
Entrada para Xibalbá: na península de Yucatán (região do México onde os maias costumavam povoar) existe de fato uma caverna bem macabra; os arqueólogos descobriram ossos humanos e de jaguares, revoadas de morcegos ocupando as paredes e uma complexa rede de templos. Pesquisadores afirmam que os maias provavelmente acreditavam que aquela era a entrada para Xibalbá.
Bom, acabado o glossário, boa leitura!
Beijos de Mel ^^



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— Yatziri! - a mulher gritou, vendo a garota escalando uma árvore, se esticando para alcançar os últimos galhos. - Desça já daí!

— Desculpe mamãe. - O sorriso maroto de Yatziri poderia ser visível até nas profundezas de Xibalbá*. - Mas eu apostei com Itzel. E eu vou ganhar - cantarolou, se erguendo para os galhos mais altos.

— Seus filhos só aprontam, Zulia. - Um ancião da cidade, que auxiliava o xamã Yaxkin, deu uma risada.

— Yatziri e Itzel são minha maior alegria, ancião. Mesmo com dificuldades de engravidar, consegui dois filhos maravilhosos pela bênção da deusa da fertilidade Ixchel. Apesar de serem os gêmeos mais difíceis do mundo.

Itzel era um garoto baixo de pele morena de olhos e cabelos escuros como a noite. Ele observava o progresso da irmã, alheio à conversa de sua mãe com o ancião. O garoto tinha conseguido escalar uma das árvores mais altas da cidade, e ficara se gabando sobre seu feito para Yatziri. Então, sem se impressionar, a garota apostou que conseguiria escalar a mesma árvore em menos tempo que o irmão gêmeo.

Concentrado, Itzel contava o tempo de Yatziri, enquanto rezava, esperançoso, para que o deus do vento Pauahtun a derrubasse. De jeito nenhum que ele iria deixá-la mandar nele por um uinal* inteiro, como tinham apostado!

Graciosa como uma jaguatirica, Yatziri alcançou o topo da árvore, equilibrando o pouco peso sobre os galhos finos. Deu um sorriso convencido para Itzel e cantarolou sua vitória, se embrenhando na copa da árvore.

— Eu te odeio. - Itzel bufou, mas franziu a testa. - Espere. Eu acho que fui mais rápido que você.

— Foi nada, idiota! - ela gritou, descendo da árvore com agilidade. - Aposto que você nem sabe contar direito, e se embaralhou todo.

— Você que é a idiota da família! - E não demorou muito para os dois irmãos estarem gritando um com o outro. Zulia apareceu e separou-os à força.

— Parem, vocês dois! Que vergonha! Na frente do ancião! Vamos, vocês vão ficar de castigo por hoje. - E arrastou-os pela orelha até sua casa.

— Parece que, não importa que aposta fizermos, mamãe é quem sempre vai mandar na gente. - Yatziri suspirou.

~//~

Os sacerdotes da cidade passaram por lá um pouco depois da confusão. Eles estavam pedindo ajuda às donas de casa e crianças que não estavam trabalhando para levarem oferendas a um grande templo em forma de pirâmide, onde o xamã iria realizar cinco dias de rituais a partir do dia seguinte.

Aqueles cinco dias eram amaldiçoados. O calendário regular, o Haab, tinha o total de 18 uinals, ou trezentos e sessenta dias. Nesse período, Chac chorava sobre a terra e fazia as plantações prosperarem, Itzamna provinha saúde e vitalidade para a população, Ixchel abençoava os ventres das mulheres e Kinich-Ahau iluminava os campos com seu sol caloroso.

Entretanto, durante cinco dias, o mundo ficava sem a proteção dos deuses. No wayeb, como era chamado o pequeno "mês de cinco dias", acreditava-se que eram dias de azar e medo. Por isso, o xamã realizava rituais para tentar chamar as divindades novamente o meus rápido possível e manter o mal longe.

Como parte do castigo que Zulia impôs, Itzel e Yatziri foram obrigados pela mãe a se juntarem aos outros na ajuda aos sacerdotes. Eles prefeririam fazer qualquer coisa além daquilo, mas tinham que obedecer à mãe. Quando o sol estava começando a baixar, os gêmeos levaram cestas de comida e joias até o templo.

Depois de deixarem as oferendas na entrada da grande pirâmide de pedra, Yatziri notou uma caixinha dourada e bonita em meio a elas. A garota cutucou Itzel.

— Olha, o que será que tem dentro?

— Não me interessa. E você também não deveria ficar curiosa, Yatziri. - Mas era tarde demais. Ela já estava abrindo a caixa discretamente.

Dentro, havia uma sineta de cobre, uma peça do tipo que os comerciantes usavam como moeda de troca. Ela era cravejada de jades reluzentes contrastando com o metal avermelhado. 

— O que será que é isso? - Yatziri pegou a sineta, curiosa. - Parece comum. Por que estaria dentro de uma caixinha tão bonita, no meio das oferendas?

— Isso não parece normal... Yat, tem certeza que...?

Ela franziu a testa e tocou o sininho. Eles ouviram um som estranho demais para um sino, algo como gemidos de medo e o barulho seco de metal contra metal. Em um estalo, a peça de cobre sumiu.

— Ah, Yatziri, o que você fez? - Itzel cruzou os braços. - Será que era importante?

— Por que ele sumiu? Esquisito. - A garota analisou as próprias mãos, assustada.

— Esse era o Sino de Jade - uma voz disse, atrás deles. Com um salto, os irmãos recuaram, amedrontados por serem pegos no flagra.

— S-Senhor Yaxkin... - Itzel estava tremendo enquanto dizia aquilo.

— X-Xamã... - Yatziri fez uma pequena reverência assustada. Agora eles estavam encrencados.

— O Sino de Jade é um sino mágico forjado com o cobre extraído de Xibalbá - o xamã disse, solene, apoiando-se em seu cajado. - Todo ano, nós construímos um novo. Lendas antigas rezam que o sino representa o submundo, e que se for queimado como sacrifício durante o wayeb, as criaturas peçonhentas de Xibalbá se manterão longe.

— Xamã... O sino sumiu. Vai acontecer alguma coisa conosco? - Itzel perguntou.

— Todos os sacerdotes são instruídos a nunca tocar o sino. Dizem que o som dele é horrível, um presságio do horror de Xibalbá, porque assim que é tocado, retorna à terra de onde veio, impedindo-o de ser uma oferenda. - O velho deu um sorriso bondoso. - Não se preocupem. É uma lenda. Acredito que nossos rituais serão o suficiente para manter o mal longe.

— Perdoe-me, xamã Yaxkin. Eu fui tola. Meu irmão tentou me avisar, mas não lhe dei ouvidos...

— Eu a perdoo. Agora vão, tenho que consultar o Calendário com o poder da deusa profetisa Ixchel.

O xamã não precisava pedir duas vezes. Abalados, Yatziri e Itzel voltaram correndo para casa, enquanto Yaxkin entrava no templo para ler o futuro.

O velho analisou o calendário circular de pedra, cheio de símbolos e desenhos, e orou para que Ixchel lhe desse luz naquele último dia do ano com os deuses, antes que tudo ficasse escuro. Então, ele arregalou os olhos com o que viu.

Muitas vezes antes, Yaxkin previu apocalipses, mas que se passavam vários baktuns* à frente. Mas aquele em si começava no dia seguinte.

Apavorado, o xamã procurou por mais pistas em suas pesquisas astronômicas e no Calendário. As palavras "Sino de Jade", "Trevas" e "Xibalbá" sempre se repetiam. Pondo a cabeça entre as mãos, Yaxkin tentou pensar com calma. Será que a falta do Sino em meio às oferendas do wayeb desencadearia a maldade de Xibalbá, e o fim do mundo?

Então, o velho reparou em outra palavra que se repetia no calendário e nos livros proféticos, "Gêmeos". E logo soube o que fazer.

~//~

— Esperem! - Yatziri e Itzel ouviram enquanto voltavam para casa. Eles viraram para trás e se depararam com o xamã, esbaforido, se apoiando pesadamente no cajado.

— O que houve, senhor Yaxkin? - Yatziri perguntou, já imaginando que ele mudara de ideia e iria aplicar-lhe uma punição severa.

— Eu consultei o futuro há pouco... - Algo no tom do xamã deixava os gêmeos inquietos, como que esperando o mal presságio.

— O que houve, xamã? - Itzel ajudou o senhor a sentar em uma rocha próxima. Yaxkin ajeitou o longo enfeite de penas na cabeça e falou:

— É horrível. Vocês precisam me ajudar... Não, ajudar a todo o mundo! 

Eles se entreolharam, confusos. Yatziri e Itzel, os irmãos que sempre causavam problemas, agora viam o grande xamã pedindo ajuda para eles salvarem a todos?

— Eu li no Haab... meus estudos das estrelas conferiam também... E eu tenho certeza que Ixchel sussurrou em meus ouvidos antes de partir para seu descanso. O mundo vai acabar no alvorecer do dia seguinte, invadido pelas trevas de Xibalbá, que se aproveitariam da falta dos deuses. Parece que as lendas antigas são verdadeiras; o Sino de Jade é essencial durante o wayeb!

— Perdoe-me, senhor xamã Yaxkin! - Já com lágrimas nos olhos, Yatziri se ajoelhou na sua frente. A culpa e o desespero tomavam conta dela. - Perdoe-me, eu juro que nunca mais serei curiosa!

— Não se preocupe, garotinha. A curiosidade é o combustível para o conhecimento, e o conhecimento é a vida. É a busca incessante por conhecimento que move os seres humanos dia após dia. Não te condeno por isso. Se o destino disse que seria assim, de um jeito ou do outro, assim será. 

— Se não é para punir Yatziri, então por que veio falar justo conosco? - Itzel perguntou, amedrontado.

— Eu vi, no futuro, algo como "Gêmeos em redenção se tornam guerreiros" e "O destino do mundo está no Sino de Jade". As profecias nunca mentem, meus meninos. Os "Gêmeos em redenção" são vocês. Por mais que me doa dizer isso para crianças, o futuro diz que vocês recuperarão o Sino de Jade, que voltou para a sua "terra natal", o Xibalbá, antes do apocalipse. Ou melhor, devem recuperar. A profecia não diz se vocês terão sucesso.

Silêncio. O xamã Yaxkin esperava qualquer reação das crianças; chorar, gritar, fugir, tremer de medo sob o peso de seu destino. Mas Yatziri e Itzel se entreolharam, com aquele olhar que apenas irmãos entendiam, e disseram, ao mesmo tempo:

— É claro!

— Vai ser tão empolgante! - Itzel bateu palmas. - Nossa vida nunca tem algo muito emocionante mesmo...

— Vai ser tão divertido entrar em uma aventura! Exatamente como Hunahpu e Xbalanque*! - Yatziri disse, empolgada.

— Vocês terão que fazer o que eles fizeram; ir para Xibalbá. É um lugar pavoroso, cheio de criaturas horrendas, morte e destruição. Têm certeza?

— Bom, não vai ser a aventura mais bonita de todas, mas... - Yatziri olhou para o irmão.

— É uma aventura! - Itzel completou, animado.

Yaxkin balançou a cabeça. Ah, a doce e inocente imaginação infantil. O velho sentia falta dessa época.

— Bem, vamos. Vocês precisam de preparação adequada para entrar na Terra do Medo. Sigam-me! - E saiu andando, sem verificar se as crianças o seguiam. Mas ele sabia que estavam.

~//~

— Vamos repassar - o xamã pediu. Os três estavam na entrada de uma caverna escura e úmida; vários avisos pediam para que mantessem distância, visto que acreditava-se que aquela era a entrada para o Xibalbá no mundo dos vivos*. - Vocês precisam voltar antes do pôr-do-sol porque...

— Porque é quando o sol se põe que Kinich-Ahau, o deus-sol, se torna um jaguar e adentra o Xibalbá, adquirindo personalidade mais maléfica que quando ele é um pássaro de fogo, de dia - Itzel o interrompeu, recitando a frase solenemente, como se tivesse decorado; o que de fato fez. - Se ele nos descobrir por lá, nunca teremos chance.

— E também é para mamãe não ficar preocupada - Yatziri acrescentou. - Não queremos que ela surte.

— Correto. Lembrem-se: nunca, nunca mesmo, lutem com alguma daquelas criaturas e deuses. Crianças sem preparo como vocês não têm chance de vencer uma luta séria. As armas que vocês estão levando são pura emergência.

Pode parecer imprudência para alguns, mas para Yaxkin, era questão de sobrevivência. Yatziri ganhara um bastão de madeira simples, uma versão menor e menos elaborada do cajado do xamã, e Itzel tinha uma lança curta com a ponta afiada de obsidiana. Eles não tinham a mínima ideia do que fazer com isso, mas estavam totalmente empolgados.

— Tudo bem, xamã. O senhor disse que o Sino estava logo na entrada, com certeza não seremos vistos por ninguém - Itzel disse.

— Eu iria com vocês, mas como xamã, minha mente é muito mais sensível à misticidade. Certamente ficaria louco só de entrar em Xibalbá.

— Não se preocupe. Vamos ficar bem. Se o futuro diz que salvaremos o mundo, salvaremos o mundo - Yatziri tranquilizou-o. Yaxkin não quis lembrá-los que a profecia nunca confirmou o sucesso deles.

— Vamos lá, Yat. Prometemos que voltaremos o mais rápido possível. - E entraram na caverna.

Depois de andarem por um tempo, toda a luz se extinguiu. Estava escuro, mas alguma coisa brilhou na parede da caverna. Curiosa, Yatziri se aproximou e percebeu que ali havia pedaços de cobre avermelhado brilhante cravados na rocha. 

— Então aqui é o máximo que os sacerdotes se arriscam a entrar no Xibalbá para pegar cobre e fazer novos Sinos? - Itzel perguntou, olhando para a imensidão vazia à frente deles. Sua voz, estranhamente, não fazia eco.

— Parece que sim. Bom, vamos. O xamã disse que o Sino de Jade não deve ter ido muito longe.

Então, ouviram barulhos esquisitos, como um farfalhar de asas. Com um gritinho nada heroico, os irmãos se abaixaram quando uma revoada de morcegos passou por cima deles.

— Vai ser mais difícil do que parece... - Itzel suspirou e ajudou a irmã a se levantar. Por algum motivo, o susto com os morcegos fez que o medo despontasse. Eles eram crianças. O que estavam fazendo no mundo dos mortos?

O garoto balançou a cabeça, irritado consigo mesmo. É normal sentir medo, pensou, tentando ser lógico. Mas eu e Yatziri somos os únicos que conseguimos impedir que o Xibalbá vá à Terra dos Vivos.

Nossos pequenos heróis motivaram-se pelo pensamento de que salvariam o mundo. Pensaram em sua mãe, nos amigos na cidade, na alegria de viver, enquanto enfrentavam a Terra do Medo. Por mais repulsa que Xibalbá sentisse deles, aqueles sentimentos bons faziam com que Itzel e Yatziri se mantivessem sãos. 

Tentar descrever o Xibalbá com exatidão vai se tornando uma tarefa cada vez mais árdua, conforme os irmãos gêmeos mergulhavam no lugar. Itzel e Yatziri passaram muito mais vezes do que imaginaram por perto de campos de tortura, criaturas vis e ossos de seres humanos. Mas os deuses estavam do lado deles. Afinal, as divindades não seriam nada sem o mundo para cultuá-los, certo?

Acharam a sineta de cobre mais rápido que pensavam. Ela estava jogada sobre o chão de pedra, como se tivesse sido atirada lá, e emitia um leve brilho verde e acobreado. Por mais que os irmãos não tivessem enfrentado nenhuma luta, eles estavam exaustos com a negatividade de lá, e quase desmaiaram de alegria ao verem seu objetivo tão perto.

Foi quando tudo deu errado. Itzel e Yatziri ouviram um rosnado baixo, e se viraram na direção do som, sentindo um arrepio correndo pelas suas espinhas. Do nada, tochas acenderam nos dois lados da caverna, iluminando uma criatura pavorosa à frente deles.

Era um grande felino de pelos dourados, pontilhado com manchas negras. Os dentes afiados apareciam para quem quisesse ver. O jaguar estava com as pernas flexionadas parecia prestes a atacar.

— Não me diz que... Ai, deuses, maldita falta de sorte - Itzel murmurou, erguendo a lança, disposto a proteger sua irmã. - É tarde demais.

— Esse é... - Yatziri encarou, amedrontada, o felino à sua frente. Não, não podia ser. - Kinich-Ahau? Já foi o pôr-do-sol?

— Yat, pegue o sino e fuja! Em algum momento você vai conseguir sair. Salve o mundo!

— É claro que não! - exclamou, mesmo assim agachou lentamente para pegar o Sino de Jade no chão. Assim que o fez, o jaguar, ou melhor, deus-sol Kinich-Ahau, atacou.

Foi como se reflexos sobrenaturais tomassem conta dos irmãos. Cada um pulou para um lado, deixando o felino abocanhar o vazio. Yatziri ergueu o bastão e bloqueou, bem a tempo, um ataque feroz do jaguar. Enquanto isso, Itzel usou a lança para atacá-lo, mas Kinich-Ahau desviou com uma facilidade assustadora.

— Se continuarmos assim, não vamos ganhar nunca. Além disso, ele é um deus importante - Yatziri disse, recuando com o irmão.

— O xamã Yaxkin disse que nunca teríamos chance. É melhor corrermos. - Mas assim que se viraram, deram de cara um um pássaro gigantesco, todo enfeitado com joias e pinturas. Sangue escorria do seu bico afiado. Yatziri se esforçou para manter a calma, mas começou a gaguejar.

— U-Um pá-pássaro no Xib-balbá... V-Vucub Ca-caquix, um dos governantes d-do Reino d-dos M-Mortos... - Ela odiava aquilo, mas estava realmente com medo. Diziam que Vucub Caquix era um dos piores deuses-reis de Xibalbá, e que cobiçava ardentemente uma posição no panteão principal dos deuses.

O jaguar e o pássaro se encararam. Desde os tempos antigos, ambos tinham uma rivalidade, já que Vucub Caquix almejava o lugar de Kinich-Ahau como deus-sol. Mas isso não mudava o fato de que ambos faziam parte do grupo de regentes de Xibalbá, e que tinham que desempenhar sua função: punir as pobres almas que adentravam no Mundo dos Mortos.

— Dois humanos não são páreo para eles - Yatziri choramingou, colando as costas na do irmão, encarando o jaguar. Itzel ergueu a lança na direção do pássaro.

— Apenas deuses combatem deuses. Isso sempre acontece nas histórias. E mesmo que um humano o faça, nunca é sem consequência.

Yatziri encarou o sino na sua mão. E teve uma ideia. 

— Itzel, eu tive uma id... - A garota foi interrompida por um ataque simultâneo dos dois deuses sobre eles.

O garoto enfiou a lança dentro do bico aberto de Vucub Caquix, impedindo-o de fechá-lo sem quebrá-lo por causa da ponta afiada. Mas as garras ainda estavam intactas, e logo arranhou o peito de Itzel, que soltou um grito.

Yatziri teve ainda menos sorte. Ela cometeu o erro de impedir força com força, e fincou o cajado no corpo de Kinich-Ahau. A peça de madeira quebrou ao meio, e o jaguar saiu ileso. O animal pulou sobre a garota, enfiando as garras em seus ombros. Uma dor aguda se espalhou pelo seu corpo.

Seguindo seus instintos, Yatziri rezou para que o bondoso pássaro de fogo que Kinich-Ahau costumava ser durante o dia protegesse a ela e  a seu irmão. Então, a garota agitou o Sino de Jade com força.

Os sons esquisitos já não eram mais tão estranhos. Era o som relaxante de árvores farfalhando, de pássaros piando, barulhos familiares. Barulhos da Terra dos Vivos.

Sorrindo, Yatziri fechou os olhos e se sentiu enchendo de vitalidade, assim como Itzel. Como a garota esperava, o Sino sumiu um um estalo de sua mão, mas se sua ideia estivesse correta, não precisaria se preocupar com isso. 

Ouvindo um último rugido indignado do deus-jaguar, os irmãos caíram na inconsciência.

~//~

Quando acordaram, os irmãos estranhamente não se sentiam exaustos. Na verdade, nada doía; era como se nada tivesse acontecido. Mas eles lembravam de tudo.

Yatziri e Itzel estavam em frente à entrada para Xibalbá, no meio da floresta. Se levantaram e se entreolharam.

— Onde está o sino? - Itzel perguntou.

— Vamos falar com o xamã. Tenho uma ideia de onde esteja.

Então, juntos, os gêmeos andaram para longe daquele lugar agourento que quase tragara suas vidas. Por sorte, conseguiram sair da floresta sem se perderem. O sol estava se pondo, mas Kinich-Ahau já estava em Xibalbá. De qualquer maneira, eles estavam em cima do horário que o xamã lhes impusera.

Voltaram, ansiosos, para o templo da cidade onde moravam. O xamã Yaxkin estava lá, segurando uma caixinha dourada.

— Deu certo, senhor xamã? - Yatziri perguntou, ofegante por terem corrido o caminho todo.

— Sim, o Sino de Jade está aqui dentro. - O velho ergueu a caixinha que segurava. - Mas eu não entendo como ele simplesmente apareceu aqui. Ele não estava em Xibalbá?

— Eu... Enquanto estava lá, eu e Itzel fomos atacados por bem... Dois deuses - Yatziri murmurou.

— Deuses! Como sobreviveram?

— Ainda não sabemos - Itzel disse, analisando o próprio corpo, espantado com a falta de ferimentos.

— O que importa é que conseguimos. O Sino de Jade pode ser usado como oferenda normalmente, não é, senhor Yaxkin?

— Sim, claro. Mas eu ainda quero saber o porquê dele ter aparecido de repente.

— Itzel disse, enquanto lutávamos, que apenas deuses combateriam deuses, e comecei a divagar sobre essa ideia. Bom, eu pensei que, como o Sino de Jade era feito de cobre de Xibalbá, quando tocado na Terra dos Vivos, trazia mau augúrio vindo do Mundo dos Mortos. Mas o Sino também é feito de jades da Terra; o que aconteceria se eu o tocasse em Xibalbá?

"Meu palpite estava certo. O Sino trouxe a vida do mundo dos vivos, a vitalidade dos deuses, por conta do material terrestre do qual é feito: a jade. Não sei muito bem o que aconteceu, mas parece que ele trouxe efeito contrário de Xibalbá, as boas-novas e esperança. Isso deve ter nos protegido e, de alguma forma, nos trazido para fora.

"E também, foi como uma batalha entre os deuses da terra e de Xibalbá. Como Itzel disse, deuses contra deuses"

— Que garota perspicaz - o xamã comentou - E por que o Sino voltou?

— Acho que ele pertence a ambos os mundos, então quando é tocado em um, retorna ao outro - Itzel disse.

— Exatamente - Yatziri assentiu. - E então, senhor Yaxkin, a previsão do apocalipse mudou?

— Nenhuma profecia muda, minha querida. O que muda são os detalhes que, antes não compreendidos, passam a fazer sentido. Eu fiquei acompanhando o Haab e me esforçando para adentrar o mundo Oculto, mas não tive resultado. Até agora, quando vocês saíram. Foi como se estivesse sempre lá; "Os Guerreiros Gêmeos recuperarão o Sino de Jade e o Apocalipse será evitado".

— Podemos voltar para casa? Estou com fome - Itzel reclamou, seguido por sua irmã.

— Vão crianças. Eu só peço que não comentem nada com ninguém. Eu acredito que se a população souber que o mundo era para acabar amanhã ficaria muito abalada.

— Pode deixar, xamã Yaxkin - Yatziri falou, alegre, e se despediu do xamã junto com seu irmão. Então correram para casa, já imaginando a bronca que levaria da mãe por supostamente escapar do castigo.

O mundo maia sobreviveu por muitos wayebs depois disso. Um Sino de Jade foi construído pelo xamã Yaxkin, mas uma sineta permanente, que seria usada em caso de extrema emergência. O Sino de Jade era popular entre os aventureiros que vieram a seguir, que sempre imploravam ao xamã para levá-lo em suas expedições impulsivas para Xibalbá.

Muitos e muitos anos depois, mais precisamente no século XVI, os espanhóis tomaram aquela terra e deram um fim em vários livros e artigos religiosos maias, entre eles, o Sino de Jade. O artefato ainda está repousando em algum lugar desse mundo, esperando para ser tocado e levar outras pessoas em aventuras inesquecíveis pelo mundo maia.

Quem vai saber quem serão os próximos?


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Notas finais do capítulo

E então? Gostaram?
Eu, particularmente, estou apaixonada pela cultura maia. Quem sabe eu não trabalho com ela de novo?
Obrigada por ler!
Beijos de Mel ^^