Memória escrita por Mel Bronte


Capítulo 5
Inopino


Notas iniciais do capítulo

Vocês sabem: onde há vida, há esperança. E eu não desisto tão fácil assim, ha!
Boa leitura, tanto para quem está chegando agora quanto para quem ainda permanece aqui sem querer me matar.



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O clima dificultava o caminho já árduo e conhecido. A camada de neve sobre a cordilheira agigantava-se. O cavaleiro armou-se com seu orgulho, e persistiu. Sabia que sobreviveria à travessia, já a conhecia, e ela tornava-se gradativamente menos ameaçadora.

Aquela não era uma visita marcada, não era a rotina. Era fruto da necessidade e do desejo. Todo o seu auto-controle, cultivado durante toda uma vida, era inútil diante daquele anseio.

Shaka de Virgem gostava de definir-se como um homem independente. E ali estava, ajustando mais a capa contra o corpo, colocando o cachecol sobre a boca e o nariz, numa tentativa infrutífera de aplacar o frio, por puro impulso. Por precisar da companhia de outrem.

Cumprira satisfatoriamente a sua missão, o desvio seria perdoado, sabia disto. De certa maneira, era um dos seus privilégios por sua posição como conselheiro do Patriarca: podia agir, dentro de certos limites, sem tantas amarras do Santuário.

Não era um arroubo juvenil, tampouco um capricho, Shaka considerava-se muito além disto, já naquela época. Seu próprio âmago, sua alma, exigia aquilo. Era uma fagulha de reconhecimento contra a qual não poderia lutar: era como se despertasse para aquele fato, como se finalmente reconhecesse em Mu um companheiro. Como se, em um momento, aceitasse que suas almas eram atraídas uma para a outra.

Poderia facilmente projetar-se, como já fizera antes. Toda a jornada, contudo, mostrava-se visceralmente necessária. Não sentia apenas a alma inquieta, seu corpo também clamava por companhia. Franziu o cenho. Ainda não tinha disciplina o suficiente para conter-se. Tratava-se de uma falha imperdoável. No entanto, trabalharia nela apenas depois do encontro pelo qual ansiava. Até lá, precisaria aceitar que certos impulsos simplesmente não se explicam.

Assim como não se explicava a sua disposição para permanecer no frio, sentindo o vento cortar-lhe as pequenas porções expostas de pele, enquanto aguardava uma resposta. Sendo um homem incomum, não necessitava passar pela provação do clima. Tendo a consciência de ser um homem incomum, se recusava a despender energia para sentir-se mais confortável.

— Mu de Áries, está frio aqui fora, deixe-me entrar!

Restava-lhe apenas esperar resposta. Sabia e sentia que os habitantes da torre ali se encontravam.

— Da próxima vez, venha durante a primavera.

Shaka pensou, por um momento, em retrucar. Mas não havia animosidade no cosmo nem na voz de Mu, portanto não começaria um embate verbal. Pelo contrário: quando Mu enfim surgiu, sua voz parecia abafada, quase lamuriosa.

— Onde está aquela criança diabólica?

— Já é noite, Shaka. Kiki está dormindo, e de forma alguma é uma criança diabólica.

Shaka deu de ombros. Não discutiria. Não ainda. E talvez não fosse mesmo prudente. Podia sentir no ar, a tensão que sucedia um transe. Precisaria apenas confirmar.

O tibetano demorou-se um pouco na observação de seu hóspede e intruso frequente. As maçãs do rosto estavam queimadas pelo vento gélido, e ele tremia.

— O que está esperando? Entre. — Fizera questão de soar mais firme. Não desejava Shaka dissecando-lhe a alma mais uma vez.

— É a primeira vez que você me convida para entrar sem a necessidade de justificar o convite com a sua polidez excessiva.

— Nós podemos nos acostumar facilmente até com as coisas mais terríveis.

Não se tratava de uma mera provocação. Era uma constatação. Esperava que Shaka não percebesse. E, mais ainda, esperava não fraquejar diante de Virgem como acontecera no último encontro.

Seria uma tarefa árdua, não se expor. Talvez fosse mais fácil deixar caírem todas as defesas, mostrar-se por completo. Não conseguiria, contudo, não depois de todos aqueles anos, não depois de tudo.

Uma vez dentro do pagode, não pôde deixar de notar que Shaka trajava roupas pouco apropriadas para o frio. Mu acabou por emprestar algumas de suas roupas, que ficaram um tanto folgadas em seu visitante.

— Agradeço, Mu.

— Falei sério sobre vir durante a primavera.

— Eu sei.

— Você teria a oportunidade de ver as flores nas montanhas, se quisesse.

— Mu… — A censura na voz foi amenizada por um breve sorriso.

O cavaleiro de Áries tentava decifrar o motivo daquela visita. Estaria Shaka querendo surpreendê-lo, ou apenas queria provar um ponto, para mostrar tudo de que era capaz, chegando ali no auge do inverno?

— Mas você não abriria os olhos, não é mesmo? Compreensível, para alguém como você. — Ainda esperou por uma resposta que jamais teria. — Estou certo de que não foi necessidade de reparos na armadura o que te trouxe aqui.

— Está certo.

— Sei que estou certo, Shaka de Virgem.

— Este tipo de fala é uma que eu esperaria de mim, não de você.

Munidos de provocações mútuas, aproximavam-se. Shaka pôde sentir o toque quente e macio da mão de Mu resvalando-se na sua, quando o tibetano rumou para a cozinha.

A importância justificaria o desperdício, Shaka de Virgem repetia para si, enquanto, com certa dificuldade, abria seus olhos. Pestanejou. Nunca era fácil reacostumar-se às luzes e às cores.

Sob a luz das lamparinas e da crepitante lareira, o interior da torre parecia quase fantasmagórico, como se vozes do passado ressoassem pelos cantos da construção, como se as almas condenadas do cemitério de armaduras se acercassem mais e mais.

Queria captar cada detalhe, como frequentemente acontecia quando descortinava o sentido da visão. Com passos vagarosos, chegou à cozinha: Mu pendurava ervas em ganchos no teto e nas paredes. Mais ainda: demorou-se, atento, na figura de Mu.

Acercou-se, sentindo e testando limites. Não queria ser invasivo, não mais do que já era. Não mais do que já fora. Sabia necessitar de toda a sutileza de que era capaz.

Com mãos hábeis, afastou os cabelos lilases das laterais do rosto e colocou-os detrás das orelhas de Mu. Se, com isto, ele não se afastou, significava que poderia continuar. Encostou a testa à do tibetano, as pontas de seus narizes tocando-se.

Assim ficaram por algum tempo, frente a frente, com mãos entrelaçadas e olhares eloquentes. Não ousavam separar-se, embora se movessem para ficarem mais cômodos.

Shaka envolveu os ombros de Mu com os braços. Sorriu satisfeito quando Mu, ainda cautelosamente, abraçou sua cintura. Não necessitava de mais para saber que poderia prosseguir.

Iniciou-se como uma pequena provocação: um beijo na comissura labial, em seguida um selar nos lábios. Pouco a pouco removiam quaisquer barreiras pelo caminho: a entrega de ambos era total.

Não havia necessidade de perguntas, não havia espaço para dúvidas ou culpa. O beijo preenchia-lhes: era o bastante.

E era surpreendente. Em momento algum Mu esperara por aquele gesto. Não esperava tampouco entregar-se tão facilmente.

De alguma maneira, Shaka lograra captar o estado tristemente inquieto de sua alma. E, aparentemente, tentara confortá-lo da maneira que conhecia, da maneira que talvez fosse mais efetiva do que quaisquer palavras.

Se Mu colocasse em perspectiva, aquilo não seria tão surpreendente assim. Imediatamente lembrou-se do dia em que obtivera a armadura de Áries. Lembrava-se com especial intensidade do olhar cortante que Shion lançara-lhe.

— Você tem uma boa capacidade de defesa, Mu, mas as suas ofensivas necessitam de um treinamento mais intenso.

Mu ergueu os olhos, verdes e arregalados, para seu mestre. E esperou. Aquele era todo o cumprimento que receberia de seu mestre, mesmo depois de alcançar o objetivo de todo o árduo treino.

— Está bem, mestre. — Cerrou as pequeninas mãos, e já podia sentir lágrimas em seus olhos, lutando contra a sua vontade de controlar-se. Não choraria diante de Shion.

Anos depois, a memória do peso do olhar de seu mestre naquele momento permaneceria. Apenas anos depois, Mu compreenderia que não era uma repreensão. O peso, que sempre julgara como censura, não passava de receio.

— Por hoje, está dispensado dos treinamentos. Nos veremos mais tarde, Mu de Áries.

Mu sentiu o coração afundar com o que viu. O esboço de um sorriso no rosto de Shion. Era um lampejo, quase irreal, mas era quase uma expressão de satisfação. Quase se esqueceu, com o misto de susto e felicidade, de que seu mestre não mencionara nada sobre tratar-lhe as escoriações. Era uma passagem, Mu de Áries sabia, a partir de então precisaria cuidar-se sozinho.

O Patriarca retirou-se, com toda a sua imponência, para postar-se em seu devido lugar e assistir ao embate subsequente. Em nenhum momento seu pupilo despregou os olhos de seus movimentos, na espera de algum novo gesto, de alguma outra palavra. Os deuses sabiam o quanto queria deixar seu mestre orgulhoso. Shion, contudo, dava a impressão de que se orgulharia apenas com a perfeição. Mu ainda era demasiadamente imperfeito.

Sentou-se na arquibancada. Embora, naquele dia, fosse alguém vitorioso, sentia-se derrotado. Levou a mão à bochecha, havia ali um pequeno corte. Não era grande, mas o ardor no local incomodava um pouco. Rapidamente, sua atenção foi direcionada para os passos vagarosos porém firmes que seguiam em sua direção.

Shaka, o recém-consagrado Cavaleiro de Virgem, sentou-se a seu lado, com olhos fechados e postura ainda mais solene. Tocou-lhe a mão, tateou-lhe o rosto, e demorou-se onde havia cortes.

— Por que está triste, Mu? — Uma pergunta dentro de uma afirmação. Shaka não perguntava o quê acontecia, perguntava porquê.

A sensação de ser intensamente observado incomodava-lhe um pouco. Mas era Shaka, afinal, o que talvez tornasse as coisas um pouco mais fáceis.

— Eu sei que deveria estar contente, afinal consegui a armadura, mas… Minhas técnicas ainda são imperfeitas.

— Oh.

— É tudo o que você tem para falar?

Estender-se nas palavras não estava nos planos de Shaka, que envolveu o ombro de Mu com um abraço, e aproximou os lábios de sua bochecha, bem abaixo do machucado. O tibetano, por sua vez, tomado pela surpresa, abraçou Shaka.

— Não deveria se preocupar tanto, Mu de Áries. — Shaka ofereceu-lhe um sorriso radiante. — Tenho certeza de que você conseguirá aperfeiçoar-se como cavaleiro.

Shaka sempre falara como se tivesse mais idade do que realmente tinha, desde quando eram crianças. Mu considerava este um hábito adorável: Shaka parecia uma miniatura de um idoso rabugento. Evidentemente, Mu também troçava de tais manias.

Permaneceram ali até que Mu corresse para cumprimentar Aiolia. Depois, cada um teria que ocupar seu próprio templo: era mais um dos rituais de passagem.

Naquela época, era agradável lidar com Shaka. Eram crianças, afinal, mesmo imersos no ambiente do Santuário, mesmo sendo cavaleiros. Tudo parecia infinitamente mais simples sem o peso da perda e das traições.

Ainda que se delineassem os contornos das tragédias, naquela época de inocência, Mu pensava que poderia ignorar suas premonições. Não mais.

Shaka tomou as mãos trêmulas entre as suas, retirando delicadamente a xícara de uma zona de perigo.

— Olhe para mim.

Mu sustentou o olhar por um átimo, antes de voltar as orbes para o chão, envergonhado: não era a primeira vez naquele mesmo dia. Para Shaka, foi o suficiente. Nunca antes vira uma expressão de dor tão intensa nos olhos de Mu. Nunca antes calara-se diante disto.

Calou-se pois sentia ressoar e doer. E doía pois fazia com que se lembrasse de que, sob a fachada de guerreiro altivo, repousava um coração compassivo.

A convivência ensinara-lhe que seria melhor esperar até que Mu estivesse disposto a falar. Isto se algum dia o tibetano resolvesse abrir-se, de fato. A Shaka, só coube uma certeza: demoraria mais alguns dias antes de retornar ao Santuário.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigada por seguirem aqui. Tentarei trazer os próximos capítulos em breve, mas vocês sabem como é, não posso prometer nada.



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