O Andarilho escrita por netobtu


Capítulo 3
Capítulo 3




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            Não demorou muito e a chuva começou a cair, penetrando a fumaça negra e caindo pesadamente no chão. Fazia um barulho espetacular de tão alto, já que estava muito silencioso. Se bobear, nem os pássaros que conseguiram voar para longe da destruição se atreviam a cantar perto daquele véu preto e mórbido. E foi com gotas d'água que o Homem despertou. Aliás, foi com muitas gotas.

            O cachorro chacoalhava-se bastante, para tentar eliminar a água do corpo. O pelo que tinha sobrado em sua carne estava ensopado, irritando-o profundamente. Ora, é senso comum os seres caninos não gostarem de ficar molhados, isso o leitor bem há de concordar. E este cão não fugia às regras: estava desesperado procurando um lugar onde se esconder de sua triste sina de ser alvejado por uma chuva torrencial.

            O Homem havia enfim se levantado e o cachorro marotamente foi se esconder entre as pernas dele, procurando se proteger da chuva. Foi quando a realidade finalmente explodiu em seu peito (juntamente com uma possível gripe forte, provocada pela água gelada que descia dos céus): ele estava sozinho, ensopado, com medo e com fome. "Pelo menos a fumaça já está sumindo, eu que não quero voltar a ouvir aquela risada maléfica que ela provocava em minha cabeça", pensou ele, mas foi interrompido de seus pensamentos devido a um enorme ronco provocado por seu estômago. Quero pedir desculpas ao leitor por não ter fornecido muita informação sobre quanto tempo estava este senhor sem comer ou quanto tempo havia se passado desde a catástrofe, mas nem o pobre diabo sabia, o tempo para ele havia paralisado, ele não existia mais, não tinha mais a sua rotina de acordar-parafusar-bar-dormir como tinha antes, então pode-se imaginar que o tempo realmente não estava se movendo, as engrenagens e seus parafusos haviam parado.

            Decidiu que realmente deveria comer algo, mas o quê? Não havia sinal nenhum do que ele poderia digerir por ali, já que areia e água não se comem. A água até enche a barriga, mas não como a comida, pois faltam-lhe os nutrientes. Olhou para o cachorro e passou-lhe uma ideia malvada na cabeça. "Não, com certeza não. Eu acabei de salvar o pobre animal e não vai ser agora que vou matá-lo para comer. Além do mais, ele está bem magrinho, nem deve ter muita carne". Foi pensando nisso que percebeu que o animal deveria estar com muita fome também, talvez não tanto quanto ele estava, mas com certeza estaria faminto.

            "Bom, parado é que minha fome não vai resolver". Começou a caminhar, com o seu fiel companheiro canino ao lado. Ele nem conseguia pensar em como chamar o cão, tanto era sua fome. Aliás, talvez não importasse qual nome dar a ele, já que talvez já tivera outro nome antes da catástrofe, talvez fosse um cachorro adestrado, talvez houvesse uma família que cuidava dele antes e, então, não faria sentido dar ao bicho um nome ao qual ele não atendesse.

            Com a fumaça dissipada, conseguiu ver mais claramente o tamanho do estrago que a provável bomba havia causado. Não sobrara nada ou quase nada daquele lugar, exceto lá longe, um casebre de madeira estava de pé ainda. "Bem que poderia ser um estoque de enlatados", e este pensamento deu-lhe esperança. Pela primeira vez depois da catástrofe, esperança brotava em seu peito, espantando o medo e a angústia que aquele ambiente pavoroso causava.

            Abriu a porta do casebre e lá não encontrou nada, exceto no chão, que ele não identificou de prontidão. Foi até a janela e abriu-a, deixando entrar um pouco da claridade do dia nublado e chuvoso. Então viu que a agitação era causada por um verdadeiro mar de baratas. Uma onda de nojo começou a subir de seu estômago até sua garganta, fazendo-o tontear. "Cascudas, voadoras... tem de todos os tipos destas desgraçadas por aqui!". Uma começava a subir por sua perna, fazendo-o chacoalhá-la para libertar-se delas.

            Já o cachorro achara o máximo encontrar tantos bichos, eram presas fáceis para ele. Pulava de cá, batia a pata de lá e foi matando algumas. As baratas devem ter pensado que era um ultraje um animal grande daquele matar pobres animais que nada fazem para ninguém. Se falassem, talvez tivessem exclamado um estrondoso "Mexa com alguém do seu tamanho, seu animal!". Mas preferiram fugir ao invés de tentar lutar contra o novo rei do pedaço, que conseguira matar umas trinta, enquanto as outras fugiam.

            A náusea do Homem passara e agora era substituída por intensa fome novamente. Ele nem tinha o que vomitar, por isso apenas ficou se contorcendo por algum tempo. Não podia suportar mais a fome, decidiu que era necessário fazê-lo: arrancou algumas quantas ripas de madeira do casebre, encontrou uma caixa de palito de fósforos e um vidro de álcool, ateou fogo nesta fogueira improvisada e arrancou uma farpa de uma outra ripa e foi empalando as baratas, uma a uma e colocou-as para fritar.

            Que nojo!, você deve estar pensando, mas vamos pensar que aquele homem estava morto de fome e sem para onde ir. Seria mais fácil pedir uma pizza, claro, mas não havia pizzaria aberta (ou de pé) em qualquer lugar por perto e estava muito fraco para procurar por outro alimento. E ele já tinha ouvido dizer de um lugar do outro lado do mundo onde o povo comia insetos, como baratas e escorpiões. "Não pode ser tão ruim".

            Abriu a boca e mordiscou a asa de uma, a mão trêmula. Nem sequer havia posto a língua no inseto, e já se viu cuspindo, com um nojo, um asco que ele jamais sentira na vida. "Tenho de ser forte, tenho de sobreviver", e colocou de uma vez uma barata inteira na boca. Tampou o nariz, pois a mãe dele um dia lhe ensinou quando pequeno que, se ele assim fizesse, não sentiria o gosto. Realmente não sentiu, mas talvez porque durara menos do que três mastigações e ele já engoliu a barata. Jogou algumas para o cão, que, feliz com a crocância (que lhe lembrava da ração com a qual estava acostumado), comeu umas tantas. Não era um senhor banquete para o Homem, mas, nas condições em que se encontrava, cada uma lhe dava a sensação de um estômago mais cheio.


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