O Andarilho escrita por netobtu


Capítulo 20
Capítulo 20




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/68832/chapter/20

            O malabarista rapidamente se virou e constatou que ali estava a morte em carne e osso. Perdão, somente em osso. A morte segurava o Homem pelo pescoço, apertando-o cada vez mais, e agora virava-se para o malabarista, fazendo-o olhar sem os olhos para bem fundo das chamas, as quais chamamos olhos desta morte.

            - O que está fazendo? Largue-o, agora. Não acredito que é você, a própria morte aqui. Por que está fantasiada desta forma? - perguntou o malabarista, em tom sério.

            - O que você quer dizer com fantasiado? Eu sou do jeito que este Homem me imagina. Afinal, estamos no mundo dele, no mundo que ele criou! E você, mais uma vez se aproveitando de uma alma moribunda. Você já teve dias melhores, palhaço! - respondeu-lhe a morte.

            O malabarista ficou furioso com a provocação e, principalmente, por ter sido chamado de palhaço, pois seu rosto ficou intensamente vermelho, por inteiro, após ter ouvido a palavra dirigida a ele. Foi aproximando-se, uma faca em cada mão, da morte e do Homem, que agora estava ficando roxo, quase não respirando, agarrando os braços esqueléticos da morte e tentando se desvencilhar.

            Apesar de ser toda ossuda, a morte era incrivelmente forte, parecia que fazia exercícios físicos diários até. Se fosse uma pessoa comum, com certeza teria uma grande carreira pela frente como halterofilista ou alguma outra profissão onde a demonstração de força fosse incrivelmente necessária. Afinal, este devaneio é um tanto desnecessário, visto que é a morte, portando é óbvio que ela é forte. No final, ela sempre nos vence. E estava vencendo o Homem.

            Passo a passo, vagarosamente, o malabarista ia se aproximando, respirando com dificuldade, tão sufocado quanto o Homem. O cão, enquanto isso, procurava se aproximar da morte, vendo ali vários ossos e foi dar uma abocanhada na perna dela, mas não conseguiu, ao passo em que foi chutado para longe. O malabarista ficou ainda mais furioso, parecia que agora se afeiçoava ao cão, antes sentia um provável ciúme da relação entre o Homem e seu melhor amigo.

            De repente, o malabarista parou e se sentou, no chão mesmo. Agarrou o pescoço com os braços, tentando respirar, mas não conseguia mais, sua visão, que já era fraca (ou diferente, não sei bem dizer, leitor, já que ele não possuía olhos, então só posso imaginar que ele possuía uma fraca visão), agora ia se turvando de vez. Ao fundo, ouvia a gargalhada da morte.

            - Acalme-se, ainda não é a sua vez! Um dia você vai me ver de verdade, na minha forma que você imagina, quando eu estiver no seu mundo, palhaço! Ah, esqueci, você não tem alma, não tem imaginação, não tem seu mundo! Não mais. - ria-se a morte, deliciando-se com aquele momento.

 

- ! -

 

            O Homem estava com a cabeça zonza. Ora via a morte ali, o malabarista jogado ao chão de um lado e o cão de outro, ora via aquela sala branca de antes, ligado a diversos aparelhos, exceto que agora o apito era muito rápido e com um ritmo frenético, diferentemente de antes. Em um dos flashes, viu um homem muito branco vir para perto dele e aproximar-se. Era o malabarista, só que usando um jaleco branco.

            O Homem tentou falar-lhe, mas não conseguiu, havia algo em sua boca, ele não sabia o que era. O malabarista pôs o dedo indicador na frente de sua própria boca torta, como quem pede silêncio. Com a outra mão, sacou uma de suas facas e colocou-a na mão direita do Homem. Depois disto, deu-lhe um tapa na cara.

            - Você pode ser o que quiser. Pense! Crie! - disse-lhe o malabarista, como quem dá um bom conselho.

 

- ! -

 

            O malabarista levantou-se e só segurava uma faca, na mão esquerda. Na mão do Homem, havia uma faca na mão direita, ensangüentada. Com esta mão, nosso protagonista juntou todo o resto de suas forças, ergueu-a a cortou com força, bem na articulação, uma das mãos da morte que o segurava pelo pescoço. A morte gritou, afastando-se, enquanto o Homem estava caído ao chão, arfando, respirando depois de tanto tempo sufocado. O malabarista chegou perto para acudi-lo, o pôs sentado e sentou-se em frente, cruzando as pernas. A morte já preparava para nova investida contra o Homem, mas o malabarista levantou a mão direita, vazia, e a fechou. E então o tempo parou.

 

- ! -

            O Homem estava sentado no chão, encostado na parede. O malabarista estava igualmente sentado à sua frente, as pernas cruzadas. A morte estava logo ali, bem próxima, porém estava paralisada, assim como todo o resto.

            - O que está fazendo? - perguntou o Homem. - Levante-se daí, aquele bicho quer me matar, vamos fugir daqui!

            - Fugir de quê? Do seu destino? - o tom do malabarista nunca fora tão sério. - Você não percebe o que é isto aqui?

            - Claro que percebo! É um lugar estranho, a guerra acabou com tudo, surgiram estes seres que parecem vindos de uma imaginação extremamente perturbada!

            - Sim, e esta é a sua imaginação. Muito prazer, eu sou o malabarista, fruto e, ao mesmo tempo, raiz e caule de todo o teu ser neste mundo.

            - Então você é tudo da minha imaginação? Você não existe, é isso? - o Homem estava perplexo, o que é normal, leitor, pois se você tiver certeza de que viu um cachorro com chifres, por exemplo, você vai ficar extremamente perplexo caso te digam que isto é fruto de tua imaginação.

            - Não. Eu existo, mas só para você no momento. Já andei por diversas imaginações, é assim que eu vivo. Sou um Imaginário, um Criativo.

            - E por que não me falou antes? Vamos acabar com tudo isso, deve ser um sonho horrível que eu estou tendo, preciso trabalhar amanhã cedo, pelo jeito.

            - Trabalhar em quê? Sua cidade foi destruída, esqueceu? A fábrica, tudo. Inclusive os parafusos.

            - Pare, pare com isto, eu sonhei que a cidade fora destruída.

            - Aquilo era real.

            - E então aonde está meu verdadeiro eu? Eu estou morto?

            - Ainda não. Mas vai estar. Então é por isso que eu te peço: mate-me antes.

            O Homem levantou-se e se recusou a aceitar aquela proposta, derrubando a faca que segurava, o que fez barulho. Não teria coragem de matar alguém tão próximo a ele, aquilo não fazia o menor sentido. Já salvara a vida do malabarista antes, e não ia matá-lo agora.

            - De forma alguma. - disse o Homem.

            - Você precisa! Só você pode! Eu cansei disso, cansei de não ser eu, de viver na mente dos outros.

            O malabarista então pegou a faca que estava no chão e a entregou ao Homem e fechou os buracos que possuía no lugar dos olhos e pediu, sussurrando ao Homem:

            - Por favor. Faça isto.

            E então o malabarista rasgou sua camiseta, exibindo sua pele acinzentada e sem nenhum pelo para o Homem. Passou os dedos compridos bem no meio do peito, indicando que deveria ser ali. Talvez ali houvesse um coração. O Homem não continha as lágrimas, pois viu ali no corpo do malabarista inúmeras cicatrizes, talvez de tentativas falhas de terminar com a própria vida.

            - Tem certeza? - perguntou o Homem.

            - Não pergunte. Apenas faça. - pediu o malabarista.

            E então o Homem levantou a mão direita, empunhando a faca e desferiu um golpe (acompanhado de um frio cortante e de gritos horríveis) certeiro bem no centro do peito, onde o malabarista havia indicado. A faca cravou ali e o Homem tirou a mão do cabo, ao passo em que o malabarista caiu de costas no chão, arfando. Ouviu-se, saindo de dentro do peito, vários gritos moribundos, pedindo ajuda. O frio passou a ser insuportável.

 

- ! -

 

            O malabarista abriu os olhos, não estava mais no hospício de antes. Estava em uma sala extremamente branca, sem fim e sem começo. Ao longe vinha uma figura andando em direção a ele. A faca ainda estava cravada em seu peito. Era o Homem que vinha ao seu encontro.

            - Então, afinal eu tenho alma. - disse o malabarista, seu sorriso se alargando.

            A morte, fantasiada como o Homem, olhou feio para ele, apertou seu pescoço e o quebrou.

 

- ! -

 

            O frio finalmente passou e o tempo voltou a correr. O malabarista jazia, morto, no chão. A morte agora finalmente alcançara o Homem, o pegou novamente pelo pescoço, olhou bem fundo nos olhos dele e disse:

            - Ninguém escapa de mim. Nem este palhaço escapou. - disse, apontando para o malabarista. - Nem vocês, seres humanos, que se acham o mais fino que há no mundo, conseguem. Podem fugir, tentar me adiar, encontrar cura para doenças, mas eu estou sempre ali, de tocaia, pronta para levar quem acho que já passou da hora de ir. Desde o dia da concepção de cada um de vocês eu já estou vigiando. Sua hora chegou, humano. Adeus.

            Ouviu-se um barulho de osso quebrando, o que poderia muito bem ser do corpo ossudo da morte se esvaindo, mas era do pescoço do Homem, que agora estava quebrado. Sua última visão foi o cão, que o olhava de longe, enquanto tudo ia ficando cada vez mais escuro, até o momento em que a escuridão tomou conta de todo o seu mundo.

 

- ! -

 

            Incalculavelmente longe dali, o cirurgião retirava suas luvas, com o rosto contrariado e triste. Havia perdido um paciente, que estava tendo melhoras. "É o ciclo da vida", pensou, tentando se confortar.

            Ao lado da cama do Homem, que agora estava coberto até a cabeça, uma máquina emitia um apito longo e interminável.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Andarilho" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.