O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 38
O Irregular de São Petersburgo


Notas iniciais do capítulo

Olá,

Voltando as postagens de fins de semana, eis que chega mais um cap.
Acredito que, ao final dele, muitas revelações virão, e outras coisas serão elucidadas. Estou curiosa para saber que teorias terão se formado na mente de vocês.


Enfim, uma boa leitura!



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            Já era perto do anoitecer quando Grigori se aproximava da Estalagem Anya, em um bairro bastante popular de São Petersburgo, um tanto afastado do Palácio de Inverno dos Romanov. Fazia um pouco mais de um mês desde que o menino foi forçado a se despedir das mordomias do hotel de luxo onde a Companhia de Teatro estava hospedada. Curiosamente, apesar de sentir falta do chocolate quente e dos bolos de sabores variados servidos todos os dias, o menino pouco se importara. Vivendo naquele local mais pobre, o menino se sentia mais à vontade. Não precisava se policiar o tempo todo a respeito de seus hábitos e de sua educação, apesar de Mr. Holmes sempre chamar-lhe a atenção quando diante de algo indelicado de sua parte, mas isso já acontecia com menor frequência. Aos poucos, Grigori se sentia “domado” pelo detetive, e para sua total estranheza, tal coisa não o incomodava nem um pouco.

            Mr. Holmes lhe dissera sempre para espera-lo na estalagem, e jamais ir ao pub onde o menino sabia, ele se encontrava lutando contra lutadores de rua tal como rinhas de galo e cachorro. O detetive não queria que o menino assistisse ao completo festival de violência e selvageria na qual se metera, mas um aviso jamais era o bastante. A curiosidade impertinente de Grigori sempre prevalecia, e o menino ia ao bar mesmo assim. Na Rússia, o acesso de crianças a tais locares era irrestrito, e isso era algo que irritava o detetive. Naquele tipo de ambiente, Grigori via de tudo um pouco: a violência dos ringues de rua, prostitutas baratas se oferecendo com decotes que deixavam muito pouco para a imaginação, bêbados brigando... Diante da tamanha perversidade assistida pelos olhos atentos de Grigori, Holmes acreditava que não havia coisa no mundo que pudesse ser capaz de chocá-lo.

            E certamente, não uma luta onde ele apanhava bastante.

            Apesar de já ter visto Holmes em ação outras vezes, Grigori sempre ficava apreensivo em vê-lo apanhar. Mesmo que o detetive sempre levasse a melhor, socos eram inevitáveis. Quando acompanhados de um pouco de sangue e hematomas, a apreensão se multiplicava. Mas como acontecido na maioria das noites,  Holmes soube se reerguer e deu em seu oponente russo uma série de golpes rápidos que o levaram a um nocaute, deixando os apostadores e expectadores da luta em polvorosa. Embora fosse a oitava luta vencida por Holmes naquele ringue, todos queriam que o “novato” perdesse.

            Ainda mais um novato que não estava no esquema corrupto de vitórias marcadas.

            Holmes se apercebeu da presença de Grigori quando recebeu um lenço do menino, para limpar o sangue que escorria do canto de sua boca. Antes que pudesse questionar e dar uma bronca no menino quanto ao porquê de sua presença naquele local completamente inadequado, o detetive acabou sendo abordado por um homem bem-vestido, mas de maneiras grosseiras.

            -Tem um minuto? – perguntou. Antes que Holmes pudesse retrucar, ele se viu cercado de sujeitos mal-encarados. Não havia como recusar aquela conversa, ele notou.

            -Grigori, vá para casa. – disse, sendo obedecido prontamente.

            O menino retornou ao cortiço, que no último mês havia se tornado seu lar. Naquele quarto minúsculo, estavam as duas camas de solteiro enferrujadas, um espelho pequeno pendurado na parede, acima de uma pequena mesa com uma bacia branca de porcelana vagabunda e já descascando. Suas malas ficavam em um armário de madeira gasta, próximo a uma espécie de fornalha, que servia para dar um pouco de calor àquele cômodo frente às frias noites de inverno em São Petersburgo. Sobre a cama, o menino esperou por cerca de uma hora, até que Holmes retornasse.

            -O que houve, Mr. Holmes? – perguntou, sempre curioso.

            -Acredito que é tempo de abandonar os ringues. – assinalou o detetive, enquanto limpava seu rosto do suor e do sangue que acumulara no ringue. Sobre a mesa, ele colocou algumas dúzias de rubros, obtidas em sua vitória.

            -Mas você está se saindo bem. Sempre volta para casa com muito dinheiro.

            -E este é o problema. Pessoas ficam insatisfeitas com isso. – disse o detetive. – Mas deixemos essa questão de lado. O que conseguiu de informação hoje?

            O detetive puxou um pequeno banco de madeira, para ficar na mesma altura que o menino, que estava imundo pelas brincadeiras que lhe tomaram todo o dia.

            -Estive brincando com os meninos de...

            -Football, eu presumo.

Embora acostumado a viver com Holmes, Grigori jamais conseguia esconder sua admiração por ver quão bem o detetive conseguia descobrir coisas como o que esteve fazendo ou os locais onde ele esteve por um mero olhar.

—Mas...

—E ainda por cima, você não é um dos melhores jogadores. A forma como a sujeira está espalhada pelo seu corpo sugere que você não joga como artilheiro. Vejo duas marcas de bola em sua barriga, marcas bem fortes, por sinal. Há concentração de sujeira em seus joelhos e cotovelos, o que sugere que você joga se agachando. Portanto, você esteve a tarde toda jogando como goleiro em seu time.

—O senhor é incrível! – disse Grigori, comum sorriso radiante que fez Holmes também sorrir levemente. – Mas ainda assim, eu não entendo. Como sabe que não jogo bem?

O detetive sorriu.

—Goleiro é a posição que resta aos piores jogadores.

Como resposta, o detetive recebeu um travesseiro lançado contra si, facilmente desviado e caindo sobre a bacia d’água.

—Parece que alguém vai ficar sem travesseiro hoje. –disse, ao notar metade do travesseiro submerso na água. – Mas então, não vou mais interrompê-lo. O que de interessante, descobriu?

—Minha amizade com o líder das gangues está progredindo. Eu ajudei os meninos da minha gangue a enfrentar a gangue do outro lado da cidade. Mas dessa vez, nós não nos enfrentamos com socos, mas com football. Eu fiz três defesas como goleiro, e nosso time ganhou de 2X0.

Holmes sempre ficava apreensivo com o que Grigori andava fazendo. Sugerir ao menino que passasse o dia nas ruas atrás de possíveis locais de esconderijo de Esther era uma coisa. Mas há duas semanas atrás, quando o menino apareceu com a idéia de se infiltrar na gangue do bairro para acelerar o curso, o detetive mostrou-se reticente a aceitar. Mas, como sempre, o menino não lhe deu ouvidos, entrando na gangue mesmo assim.

—E o que vem a seguir?

—A gangue perdeu o controle do território do outro lado da estação de trem.

Holmes mostrou-se animado. Aquela área estava marcada em seu mapa como possível local onde Esther pôde ter escondido sua investigação, mas com aquela gangue controlando o local, o acesso era complicado. Agora que os pivetes “aliados” de Grigori tinham obtido o local para si, tudo se tornava mais fácil.

—Perfeito. Ainda essa semana, podemos dar uma olhada por aquele local. Parabéns por suas defesas, Grigori. Parece que subestimei seus talentos como jogador de football. Para comemorarmos, que tal um pouco de Borshch (N.A.: sopa de beterraba, prato tipicamente russo) servida naquele restaurante que fomos semana passada?

O menino se animou.

—Seria fantástico!

—Ótimo. Mas não podemos ir neste estado em que nos encontramos. Vamos tomar um banho e vestir roupas mais limpas.


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—Er, sir., eu posso te fazer uma pergunta?

Holmes e Grigori já haviam terminado sua refeição, um prato quente de Borshch acompanhado de pão e vinho – reservado apenas a Holmes, para pesar do menino, que teve de se contentar com um inofensivo suco. Enquanto aguardavam pela sobremesa, que seria um caldo de frutas, o menino decidiu puxar algum assunto.

—Até duas.

—O quê a sua esposa fazia aqui na Rússia?

Holmes quase se engasgou com vinho. Jamais tinha tocado nesse assunto com Grigori. Embora fosse esperado que o menino tivesse curiosidade a respeito de Esther, o detetive não esperava ser confrontado sobre o assunto quando já convivam a meses juntos.

—Ela estava atrás de alguns parentes desaparecidos.

—Vocês não tiveram filhos, não é?

—Não. – respondeu o detetive, com cautela. – Como sabe?

—Notei por sua casa que você não tem filhos. Só deduzi.

Holmes sorriu levemente com a esperteza do menino.

—Deduziu bem. De fato, eu não tenho filhos.

Não em Sussex. Mas há um perdido, aqui na Rússia.

Foi quase um alívio quando o garçom finalmente se aproximou, deixando sobre a mesa duas taças com o apetitoso caldo de frutas, cujo aroma já se mostrava tentador.

—E quanto ao meu irmão? Fico me perguntando quando iremos começar a investiga-lo... – disse o menino, com tristeza, tomando um pouco do caldo de frutas.

—Paciência, Grigori. Assim que eu localizar Esther, iremos localizar sua família. Você tem a minha palavra.

O caldo de frutas foi terminado em silêncio.


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Holmes não costumava dar atenção a pressentimentos, mas nos últimos tempos, ele acabara se deixando levar por eles. Desde o momento que Grigori mencionou a existência de uma Bielokamenaia, o detetive se alarmou. Não sabia o que significava aquilo, mas algo lhe dizia que não era algo bom. E para completar, Grigori lhe alertou a não vestir suas melhores roupas e sapatos quando fossem para lá.

            -Tem certeza? – questionou Holmes, diante de uma entrada de esgoto.

            -Sim, sir. Os meninos disseram ter visto uma presença encapuzada por aqui. Dizem que era um fantasma. Mas o que mais me chamou a atenção foi um deles, que disse ter visto uma mulher loira saindo daqui com uma lanterna.

            -Esther... – balbuciou Holmes. Finalmente chegamos ao local certo.

            -Vamos entrar, então.

            Enquanto caminhavam com esgoto nos calcanhares, ouvindo sons de ratos e água a correr, Holmes decidiu conversar um pouco com o menino, para tentar esquecer um pouco o cheiro insuportável de esgoto e sal apreensão com o quê poderia encontrar.

            -O que é um Bielokamenaia, afinal?

Grigori sorriu. Adorava quando sabia algo que Homes não sabia. Afinal, ele se sentia tão inteligente...

—Um bielokamenaia nada mais é que pedreiras de calcário de séculos atrás, existentes debaixo da terra. Muitas delas estão desativadas. A melhor maneira de adentrar a elas era por ligações no esgoto.

Como diabos Grigori sabia disso, Holmes não fazia idéia – e nem queria saber. O fato é que o menino conseguiu guia-lo até o esconderijo de Esther, que ficava em uma gruta esgotada e tida por todos como “mal-assombrada”.

—Foi aqui que o menino disse ter visto um fantasma. – disse Grigori, levando Holmes a uma gruta deserta. O detetive pediu luz ao menino, e com sua lupa, começou a analisar uma parede. Logo encontrou uma fresa.

Muito engenhoso, Esther. Muito engenhoso.

—Incrível. – disse o menino, surpreso ao ver que era uma porta. Havia uma fechadura, também oculta.

—Segure a lanterna apontada na direção da fechadura. – pediu Holmes, começando a arrombar a fechadura com seu inseparável kit de arrombamento. Após quinze minutos de trabalho, finalmente o detetive conseguiu. Com um clique, a porta se abriu, revelando um cômodo secreto. Usando o fósforo dedicado aos seus cigarros para acender as velas, Holmes pôde dar um pouco de luz ao ambiente.

            -Droga! – exclamou Holmes, quando notou uma parede queimada surgir bem diante de seus olhos.

            -O que foi, Mr. Holmes?

            O local tinha sido destruído por fogo. Holmes sabia da tática. A própria Esther tinha destruído sua investigação, e isso deixou Holmes esperançoso. Se ela fizera tal coisa, sem dúvida conseguira localizar a criança, e fez tudo que pôde para destruir seus próprios rastros naquele país. Por mais que ele sentisse orgulhoso de saber que Esther chegou ao fim de sua investigação, ele sabia que isso tinha destruído suas chances de localizá-la.

            Ao menos, boa parte delas.

            Entre as cinzas, Holmes encontrou jornais queimados. Guardou fragmentos em uma sacola. Com um bom trabalho de Química, poderia recuperar o conteúdo daqueles papéis e descobrir alguma coisa.

            O problema é que ele precisaria de alguém que, nos últimos tempos, ele queria distância.

            Lev Sokolov.


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            O sino havia acabado de soar. A turma do professor Sokolov já havia deixado a sala de aula da Universidade de São Petersburgo, onde ele lecionava. Não havia mais alunos ao seu redor, fazendo perguntas e comentando sobre a aula, não com a nevasca que caía lá fora e que fizera alguns de seus alunos menos assíduos faltarem. Compreensível, pensou Sokolov. Tudo que ele queria agora era pôr seus pés bem próximos a lareira, ao lado de uma xícara fumegante de chá. Não poderia culpa-los.

            -Mr. Sokolov?

            Colocando seu ultimo livro na bolsa, o professor foi surpreendido por ninguém menos que Sherlock Holmes, que tinha desaparecido no último mês. Chegara a pensar que o detetive tivesse desistido de sua busca por sua esposa, mas lá estava ele para provar o quão persistente era.

            -Folgo em vê-lo, sir. Cheguei a pensar que tivesse desistido, depois da morte inesperada de Daniel Jenkins.

            O professor percebeu que a menção do ocorrido fez o detetive entortar o lábio em desgosto. Isso reforçou suas suspeitas de que o encontro de Holmes com Jenkins foi um completo desastre.

            -Não. Minha investigação não poderia cessar apenas porque perdi uma boa pista.

            -Bom, que outro raciocínio esperar de um homem de sua fama senão este? Se desistisse tão facilmente, não seria o aclamado detetive dos livros, seria? Mas diga-me, o que te traz até aqui novamente?

            Enquanto aguardava a resposta do detetive, Sokolov percebeu que os olhos de Holmes se voltaram para o conteúdo escrito em seu quadro-negro. Ao perceber que atraíra a atenção do acadêmico, o detetive decidiu se explicar.

            -Este ano, li um artigo em alemão a respeito da descoberta de um cientista japonês chamado Umetaro Suzuki. Parece que ele conseguiu extrair um complexo de nutrientes hidrossolúveis a partir do farelo do arroz.

            Apesar de saber que Holmes tinha formidáveis conhecimentos em Química, Lev Sokolov não pôde deixar de se espantar com o tópico levantado.

—Incrível ter tomado conhecimento de tal coisa. Tal artigo não chamou muita atenção da comunidade acadêmica. Poucas pessoas, mesmo químicos especialistas, sabem de Suzuki.

—De fato. É uma pena que tal erro de tradução tenha impedido o devido mérito a Suzuki. Este “ácido abérico”, como ele chamou, me pareceu ser a primeira isolação de um complexo de nutrientes. Mas, cedo ou tarde, alguém reproduzirá o mesmo feito. No fim das contas, o único pecado deste cientista foi não ter nascido europeu. Bom, deixando para lá as divagações, recentemente eu também li um artigo a seu respeito, onde você discute a respeito de propriedades nos alimentos que podem ser isoladas e colocadas em um mecanismo que você chama de “superpílula”. Creio que Suzuki lhe servira de inspiração, não?

Sokolov pareceu ofendido.

—De forma alguma. Eu tenho trabalhado há quase dez anos nisto, e bem antes daquele japonês comedor de arroz.

—Hum... – limitou-se a dizer Holmes, sem retrucá-lo, voltando seus olhos aos rabiscos no quadro-negro de Sokolov. – Creio que este é o composto que está tentando criar, não?

Os olhos de Sokolov se irradiaram.

—Sim, de fato o é.

—Vejo que você interessa por plantas peculiares, para dizer o mínimo. Pois vejo claramente que, levemente oculto em sua fórmula deste composto, está os nutrientes de plantas da América, a julgar pela composição química.

            -Como sabe?

            Holmes curvou levemente os lábios, mas não a ponto de sorrir.

            -Como entusiasta da Química, eu já estudei algumas dessas plantas. Mas não estudei propriamente suas capacidades nutritivas. Estudei seus poderes narcóticos. Inclusive a coca, que você está utilizando aqui. – disse Holmes, apontando para um conjunto de elementos químicos rabiscados no quadro.

            -Povos andinos utilizam coca para facilitar a absorção de oxigênio pelo pulmão no ar rarefeito. Há benefícios em sua utilização.

            -E também malefícios. E dependência química é um deles. – disse Holmes, aparentemente irredutível, olhos absortos no quadro-negro.

            Ele lembrou-se, naquele momento, dos impactos das agulhas em seus braços. Das sensações. Enquanto drogado em casa, lembrou-se de Esther, a lhe repreender vagamente. Um dia, seu coração bateu mais rápido. Holmes tentou respirar, mas não conseguiu. Era como se estivesse se afogando. Lembrava-se de ter tentado engatinhar, ridiculamente, até a porta. Tentou gritar por socorro, mas sua voz mal conseguia escapar de sua garganta, tendo sido reduzida a um estrangulo. Até que ele ouviu algo cair no chão, e a exclamação “Adonai!” e “Watson!”. Ele não teve dúvidas de que era Esther a lhe resgatar do que alguns médicos chamavam de “overdose” e que o detetive experimentava pela primeira vez, após décadas como usuário.

            Depois do susto, veio a viagem à Cornwall, onde vivia um velho amigo de Watson. Noites em claro, suando em febre, sentindo a garganta seca. A ausência da droga em seu organismo por meses o deixava trêmulo, nervoso. E lá estava Esther, a cuidar de si. Seu amigo, Watson, também. Depois daqueles meses em Cornwall, Sherlock Holmes jamais voltou à cocaína e morfina. A solução 7% havia sido riscada definitivamente de sua vida.

            -Você deveria riscar a coca desta sua “superpílula”.

            Sokolov não parecia satisfeito com a sugestão de Holmes.

            -Não posso. As demais substâncias provocam letargia, e a coca contrabalanceará, fornecendo mais euforia, concentração. Ninguém comprará um produto que nutre, mas que te deixa lerdo, preguiçoso. Se não me engano, você já usou cocaína, e sabe do que eu estou falando, não é?

            É nesses momentos que eu odeio Watson, por ter tornado minha vida um livro aberto a qualquer um.

            -Sim. Já fui usuário de cocaína. – admitiu Holmes.

            -Então, reconhece que ela é... Estimulante, não é?

            -Sim, e viciante na mesma medida. Tão viciante que não a uso mais.

—Estou tentando identificar e então neutralizar o elemento da coca que provoca a dependência química. Quando fizer isso, minha superpílula será bem-aceita, e provavelmente conseguirei uma patente farmacêutica e este remédio será um grande avanço medicinal. Bom, embora esta nossa discussão sobre a minha superpílula seja “estimulante”, eu ainda estou curioso em saber o que deseja de mim.

—Gostaria de usar o aparato químico desta universidade para um experimento. E nem pense em pedir algo em troca. Você e seus “camaradas” me devem, desde o fracasso envolvendo Daniel Jenkins. Não pense que me esqueci que vocês usaram a minha procura para alcançar seus objetivos em detrimento do meu. – retrucou Holmes, rispidamente.

Lev Sokolov ergueu uma sobrancelha.

—Você sabe ser persuasivo, Mr. Holmes. Está bem, me acompanhe. Terá todo o laboratório da Universidade à disposição. Espero que o aparato esteja no mesmo nível que o de sua morada em Baker Street.

—Você é péssimo com ironias. – o comentário de Holmes arrancou risadas de Sokolov.

—Um defeito russo, creio eu. Venha, me acompanhe.


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            Não estava nos planos de Holmes ter a companhia de Sokolov, ao menos não por tanto tempo. O detetive queria privacidade para realizar seu experimento com as folhas queimadas resgatadas do esconderijo de Esther, mas o químico russo parecia ignorar, sentando-se ao seu lado e observando o detetive trabalhar enquanto fazia um ou outro comentário sobre sua presteza com os aparatos, ou sobre o quanto Holmes seria valioso na Academia de Química. Mal sabia ele que Holmes há muito deixara sua contribuição, sob o pseudônimo de John Sigerson.

            -Potássio, magnésio... – observava Sokolov. – O que pretende?

            Retirando de uma sacola um punhado de folhas de papel queimadas, Holmes arrancou uma exclamação abismada de Sokolov.

            -Muito engenhoso. – ele disse. – Creio que isto esteja relacionado à investigação quanto ao paradeiro de sua esposa, não?

            Holmes não quis responder, se concentrando em preparar o composto de ácido sulfídrico para colocar sobre o papel. Enquanto espalhava as folhas sobre a mesa, Sokolov decidiu lhe dar uma dica.

            -Boa parte desses papéis sofreram queimaduras graves, duvido que vá conseguir recuperar alguma coisa. No entanto, acho que este tem alguma salvação. Ainda que pouca.

            Mais uma vez, o detetive optou pelo silêncio. Lançando as gotas cuidadosamente sobre o papel, e depois, prosseguindo com a folha branca, recostando-a sobre a superfície molhada do papel queimado. Após segundos de reação, finalmente o conteúdo se revelou...

            -Parece que são rabiscos... Anotações... “Fazenda em Ecaterimburgo = ?”

            -Curioso... – assinalou Holmes. Ele não quis falar em voz alta, mas naquele momento Holmes se lembrou instantaneamente das últimas palavras de Daniel Jenkins, “da última vez que tive notícias da criança, ela estava em Ecaterimburgo com...” Com quem? O monstruoso oficial da Okhrana não viveu o bastante para contar, mas em seu interior, Holmes tinha certeza de que Esther chegou ao nome. E isso o animou.

            Seus olhos voltaram-se outra vez ao papel queimado, onde ele pôde se surpreender com outra descoberta.

—Ao lado desta coordenada geográfica, está escrito “contatar Vlad Sokolov”, acaso este não é o nome do seu sobrinho?

            Sokolov parecia atônito, e curiosamente abismado pela descoberta.

            -Eu nunca soube que ela contatou meu sobrinho Vladimir, Mr. Holmes. Posso te assegurar de que... – tentou se justificar o cientista, desesperado. O olhar gélido de Holmes dava poucas esperanças de que seria bem-sucedido.

            -Não me assegure de nada, Sokolov! – interrompeu Holmes, furioso. – Acredito que isto atesta o quão longe de ser confiável você é. Assim como seu camarada Koba, você me usou. Queria matar Daniel Jenkins para beneficiar sua “causa” e conseguiu o que queria, e por minhas mãos. Decerto Esther deixou escapar alguma menção a Jenkins e você e seus camaradas se beneficiaram disso, criando toda uma trama mal contada quando minha esposa sequer o procurou.

            -O senhor está enganado, Mr. Holmes, eu...

            -Eu tenho mais de trinta anos de trabalho como Detetive Consultor Privado, Sokolov. Já lidei com criminosos de toda sorte, já precisei confrontá-los, interroga-los. Sei distinguir um mentiroso quando diante de um, e posso te assegurar uma coisa: Daniel Jenkins não estava mentindo para mim quando disse que não viu a minha esposa. O que só atesta que você mentiu para que seu Partido conseguisse colocar as mãos em Jenkins.

            -Está me acusando agora? Eu, que te emprestei o meu laboratório para realizar este seu pequeno experimento? O que irá me acusar depois? De ter provocado o desaparecimento de sua esposa?

            Irritado com o cientista, Holmes recolheu as folhas de papel e se levantou, sem olhar para trás. Cada vez mais, ficava claro que não havia uma pessoa sequer em quem confiar na Rússia.


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Notas finais do capítulo

Então, parece que chegamos a algumas conclusões, ainda que um pouco vagas. Que Esther terminou a investigação, mas precisou destruir seus rastros -não dá para ter um bom pressentimento com isso, né... Isso sem contar a palavra "Ecaterimburgo" surgindo outra vez. Parece que é a chave.

E desculpe-me os goleiros, mas todo perna-de-pau fica no gol. Rsrsrs Grigori que me perdoe.

E se eu fosse o Vlad, tomava cuidado... Holmes tá muito furioso com os bolcheviques. É bom o jornalista se cuidar.

Até o próximo FDS!



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