O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 19
Velhas Brigas, Novos Problemas




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            Trânsito, trânsito e mais trânsito. Andar de um lado a outro de Londres tornava-se uma tarefa cada vez mais difícil com o passar dos anos. O fluxo de automóveis a disputar espaço com ônibus e os poucos cabriolés  que tentavam sobreviver à Londres de 1910 tornava um tormento o mero deslocamento entre um paciente e outro pelos bairros da cidade. Avistar sua casa da esquina foi um alívio. Watson pensou que a chegada em casa lhe proporcionaria calmaria e tranquilidade, após um dia agitado como aquele, mas não foi isto que o médico encontrou.

            Assim que chegou, ele encontrou sua esposa e suas duas filhas pequenas, aflitas, sentada ao sofá com semblante preocupado.

            -Oh, John! Graças a Deus você chegou!

            -O que houve? – perguntou Watson, enquanto retirava seu chapéu e casaca.

            -Sua filha, Emily, e aquele moleque de Mr. Holmes. Os dois sumiram.

            -Sumiram?! – preocupou-se Holmes.

            -Oh, John. Eu temo para quê perigos será que aquele moleque levou a sua filha...

            -Onde está Holmes? – perguntou Watson, preocupado. Observou o relógio, anunciando serem mais de cinco da tarde. Em breve, anoiteceria... Ele não poderia sequer imaginar sua filha, lá fora, em plena escuridão no coração de Londres, acompanhada apenas de outra criança de sua idade...

            -Parece que ele está investigando no andar de cima. Não sei o que ele viu, mas ele tem certeza de que as crianças estiveram em seu escritório...

            -Em meu escritório?! Mas como?! Eu sempre tranco a porta!

            -Parece, meu caro Watson... – interrompeu Holmes, descendo as escadas. – Que isso não foi o suficiente. Entraram pela janela. E encontrei essa papelada também, no chão do jardim.

            Tomando os papéis das mãos de Holmes, o médico começou a analisar.

            -Isso... Isso estava na gaveta, que sempre deixo trancada...

—Está faltando algum papel em específico? – perguntou Holmes.

—Deixe-me ver... Oh, por Deus, Holmes! Sim, está mesmo! O envelope com o endereço de Rose!

—O endereço daquela desgraçada?! Como pôde guardar qualquer vestígio daquela mulherzinha debaixo de nosso teto?! – questionou Molly, indignada.

—Molly, contenha-se! Meninas, por que não vão brincar lá em cima, hein?

As meninas assentiram, fazendo uma leve reverência ao pai delas e subindo rapidamente. Percebendo que só havia adultos na sala, Homes finalmente interferiu.

—Agora não é o momento para discussões tolas de casais. Já temos um forte indício de onde as crianças foram. Agora, precisamos busca-las. Watson, você se lembra do endereço? Ótimo. Então, vamos chamar um cabriolé.


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            Quando o cabriolé parou em frente ao prostíbulo do qual Rose Willians era a cafetina, o semblante de Holmes e Watson se tornou preocupado.

            O local estava cercado pela Scotland Yard.

            -Por favor, afastem-se. – pedia um rapazinho aos curiosos, no auge de seus quinze anos, que trabalhava como mero soldado uniformizado da Scotland Yard. Seu rosto, entretanto, era muito familiar a Holmes, que sequer precisou de maiores deduções para descobrir sua identidade – ou melhor, a identidade de seu pai.

            -Edward Lestrade, eu presumo?

            O rapaz virou-se para Holmes e Watson. – Sim, senhores. Em que posso ajuda-los?

            -Meu nome é Sherlock Holmes, e este é meu amigo e colega, o Dr. Watson.

            Os olhos azuis do jovem se iluminaram.

            -Oh, Mr. Holmes, é o senhor? É uma honra conhece-lo. Meu pai já me contou muito a seu respeito.

            -Sim, posso imaginar.

            -Como vai Lestrade, meu jovem? – perguntou Watson, educadamente.

            -Um tanto ocupado com o trabalho burocrático da Yard. Desde que começou a trabalhar como Comissário, ele reclama da papelada. Ele sente falta das ruas, e Cornwall não é exatamente um paraíso para um policial.

            -Não me espanta. Ele sempre teve este perfil, além de detestar a mansidão do interior. – completou Holmes. – No entanto, meu jovem, poderia me colocar a par do que aconteceu nesta residência?

            -Chamar este local de tolerância de residência é um elogio, sir. Como sempre, mais um dos frequentadores deste lugar causou confusão. Ao menos, foi o que pensamos quando recebemos o chamado. O problema é que testemunhas relataram que houve um tumulto lá dentro, e também que viram dois sujeitos colocando duas crianças dentro de um cabriolé.

            -Duas crianças?!

—Um menino e uma menina, a julgar pela descrição das testemunhas.

—Oh, meu Deus... – Watson entrou em desespero.

            -O que houve, sir? Acaso conhece as crianças?

            -Uma delas pode ser minha filha.

            -Por Deus! – exclamou o jovem, apreensivo, indo chamar o inspetor responsável.

            -Só podem ser as crianças, Holmes... Só podem ser as crianças...

            -Acalme-se, Watson. Iremos encontra-las, eu garanto. Agora, acalme-se.


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            Após uma busca pela casa, Holmes chegou a conclusão que dois homens levaram as crianças. Um era robusto e forte. O outro era um homem mais magro e jovem, a julgar pelas pegadas. Todos tinham boa condição financeira e tinham passos apressados. Havia cacos de vidro de um copo sujo de uísque, sinal de que as crianças – provavelmente Grigori – apresentaram resistência. Não havia vestígio de sangue, sinal de que nada mais grave aconteceu. A princípio. Os sinais de que as crianças resistiram à captura eram visíveis, até mesmo aos mais leigos, algo que deixou Watson ainda mais preocupado.

            -Será que Emily está ferida, Holmes? – disse o médico, com o olhar fixo nos cacos de vidro espalhados pelo tapete.

            -Ainda não dá para saber.

            Quando Holmes terminava de analisar o chão com sua lupa, um oficial da Yard apareceu de repente.

            -Sir. Encontramos amarrada em um dos quartos do andar de cima uma mulher. Ela diz se chamar Rose Willians.

            Holmes pôde escutar Watson soltar um resmungo, ao saber que teria de rever sua antiga paixão em tal situação preocupante. No entanto, ele sabia que teria de acatar sua presença, mesmo que a contragosto.

            Um tanto descomposta, Rose apareceu na sala de espera de seu prostíbulo, onde estavam Holmes, Watson e também um Inspetor da Scotland Yard.

            -Miss Willians. Eu sou o Inspetor Groove, e estes são...

            -Eu sei muito bem quem eles são. – interrompeu Rose, tentando ajeitar seu cabelo.

            -Bom, poderia nos dizer o que aconteceu aqui? Ao que parece, duas crianças foram raptadas por dois homens, durante a confusão em seu... Estabelecimento.

            Rose parecia encarnar a fúria em pessoa.

            -Aquele desgraçado do Howard...!

            -Então, a senhora sabe quem foi? – perguntou o inspetor.

            -Sim, eu sei. E o conheço, também. Um deles foi o homem daquele retrato, Howard Thompson.

Holmes agravou seu semblante. Ele conhecia bem este nome. Era afinal, um famoso agiota londrino. Não era estranho de todo que uma mulher de gastos tão extravagantes como Rose estivesse endividada a ponto de recorrer a um agiota.

A cafetina continuou.

—O outro eu não conheço. Era loiro, e falava com forte sotaque. Sem dúvida, era alemão. Elegante, mas um tanto agressivo. Foi ele quem bateu em mim e me amarrou.

            -Sabe o que queriam?

            -Howard é um homem a quem devo dinheiro. Ele sabe que tenho uma filha com você, John. Só posso imaginar que ele percebeu a presença dela aqui e imaginou que esta seria uma boa maneira de conseguir arrancar dinheiro. De você, é claro, porque não tenho mais um guinéu para dar àquele calhorda.

            Watson estava corado de tanta raiva.

            -Sua vigarista! Não deveria ter permitido que minha filha continuasse debaixo desse... Desse antro de perdição um minuto sequer!

            -Nossa filha, caso não se lembre. Você precisou de mim para fazê-la. E não fui eu quem a trouxe aqui. Ela veio por conta própria, e parecia estar muito curiosa para saber sobre mim. Aposto que essa sua santa esposa deve ter sido uma verdadeira megera a ela, a ponto de fazê-la se aventurar por Londres atrás de mim.

            -Não ouse abrir essa sua boca imunda para falar de minha Molly! – esbravejou Watson.

            -Watson, por favor, se acalme. – interrompeu Holmes. – Precisamos recuperar as crianças das mãos deste agiota agora. E infelizmente, teremos de contar com a ajuda de Rose. Ela já deu indícios de que o conhece.

            A cafetina concordou.

            -Sim, eu o conheço. E sei onde encontra-lo.

            -Ótimo. – disse Holmes. – Inspetor, prepare agora mesmo seus homens. Iremos precisar de toda ajuda necessária para enfrentar este sujeito.


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            A cantoria de “Tristão e Isolda” ultrapassava as paredes da imponente mansão onde morava o famoso agiota Howard Thompson, nas proximidades do Hyde Park. Em meio ao movimentar desesperado de policiais, Holmes contemplava o som daquela ópera de Wagner, um de seus compositores preferidos. Seus olhos voltaram ao revólver, enquanto a soprano intérprete de Isolda assumia seu momento nos vocais. Uma pena que ele não poderia escutá-la até que restasse apenas o ruído do gramofone, anunciando o fim do disco.

            -Howard Thompson! – berrava o inspetor. – Apresente-se!

            Silêncio.

            -Tem mandado, policial? – perguntou, em voz alta, um dos vários homens que guardavam a casa.

            Watson engoliu em seco. Em seus anos ao lado de Mr. Holmes, ele sabia muito bem o que aquilo significava.

            -Não. Queremos apenas fazer uma... Uma averiguação de uma denúncia.

            -Então, dê meia-volta. Apareça aqui quando tiver algum respaldo para sua sandice. – devolveu o sujeito, deixando o inspetor indignado. Algo na postura do Inspetor Groove fez Holmes ter certeza de que ele era fraco. O detetive jamais se imaginou a dizer isso, mas nestes tempos difíceis e complicados, homens práticos e firmes como Lestrade faziam grande falta.

            -Atirem nestes bastardos. – ordenou o inspetor, causando grande animação nos uniformizados. Watson ficou estarrecido.

            -Mas as crianças, elas podem estar naquela casa e...

            Quatro disparos foram efetuados pelos policiais da Yard. A resposta não demorou a vir. Logo, um tiroteio começou. Holmes procurou se abrigar, sendo obrigado também a, pela primeira vez em anos, colocar seu velho Colt em serviço outra vez, ajudando os policiais no tiroteio.


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Quando o tiroteio finalmente cessou, “Tristão e Isolda” estava no final. Era sempre ruim ouvir uma ópera de tal qualidade em meio a disparos, mas Howard ainda mantinha a serenidade. Fumava seu segundo charuto caribenho, enquanto preenchia seu precioso livro de Finanças. Ao menos s balas cessaram. Howard chegava a cantarolar, acreditando que seus homens tivessem dado conta do ataque policial. Entretanto, uma frase, declarada a berro, trouxe desgosto ao agiota.

            -Polícia! Renda-se, ou invadiremos.

            O sujeito reclamou. Homens incompetentes, incapazes de darem jeito em meia dúzia de policiais... Sem dúvida, ele teria de pagar um bom advogado para se livrar desta encrenca.

            -Podem entrar. Por favor, sejam meus convidados. – ele disse, ainda fumando seu cachimbo.

            Quando mal pôde coloca-lo no cinzeiro, a porta de sua biblioteca foi subitamente arrombada, tombando sob o chão. Entraram, então, cerca de quatro polícias, um inspetor e mais dois homens civis, de idade.

            -Deixarei o recibo desta porta em sua mesa ainda pela manhã, inspetor.

            -Como queira, Mr. Thompson. O senhor está preso por agressão e por suspeita em participação em sequestro. Qualquer coisa que disser...

            -Poderá ser usado contra você e blá-blá-blá. – interrompeu o sujeito, debochadamente. – A mesma ladainha de sempre. Vocês não mudam, né?

            De repente, Watson esbravejou.

            -Onde está minha filha, seu desgraçado? O que você fez com ela?

—Sua filha? – o criminoso riu. – Oh, mas é claro. Deve estar se referindo à filha daquela cafetina caloteira. Pois bem, cheguei a pensar em realmente sequestra-la. Não me olhe com essa cara, inspetor. Pensar não é crime. Bom, continuando. Só pensei, mas nem precisei fazer qualquer coisa. O alemão me pagou o bastante só pela oportunidade de levar o menino que nem precisei gastar minhas energias com a menina. Ele acabou levando os dois.

—Que alemão é este? – questionou Holmes, com grave suspeita.

—Adianta dizer o nome? Provavelmente é falso. Só sei que ele é alemão porque reconheço aquele sotaque de longe. Pois enfim, todos aqui sabemos que eu não serei preso coisa alguma, que meus advogados em breve providenciarão minha soltura, antes que você termine de redigir qualquer inquérito contra a minha pessoa. Mas irei poupar aos senhores dos detalhes de sua incompetência e reafirmar que as crianças não estão aqui, se é o que desejam saber.

Calmamente, Holmes tomou a palavra.

—Há relatos de testemunhas de que adentrara em um cabriolé acompanhado deste alemão e dessas crianças... Mas sabe uma coisa que não vi, enquanto adentrava à sua humilde morada, Mr. Thompson? Eu não vi nenhum cabriolé em sua garagem...

Thompson ficou sério.

—Só falarei agora na presença de meu advogado, senhores.

—Foi o que eu pensei. – concluiu Holmes, vitorioso. – Inspetor, hora de apagar as luzes e disfarçar nossa presença aqui. Tenho certeza de que o cabriolé que levou o alemão e as crianças em breve retornará. Duvido muito que um homem como Thompson iria emprestar seu cabriolé a um estranho por muito tempo.

E Holmes estava certo. Em menos de trinta minutos, um cabriolé estacionou diante da garagem de Thompson. Quando adentrando, o cocheiro logo foi recebido pelos oficiais da Yard. Percebendo que estava cercado, ele não viu outra alternativa senão contar a verdade.

—Eu não sei o nome do sujeito, senhores. Só percebi que era estrangeiro. Eu os levei até o armazém 35, em Fulham, e os deixei lá.

—Ele estava sozinho?

—Sim, parecia que sim. Mas ele tinha um revólver. É tudo que sei.


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Thompson disse que pensou em sequestrar, mas acabou não fazendo isso. Ao chegar ao local, com tais intenções, acabou topando com esse sujeito que, por motivos desconhecidos, queria o mesmo que ele. Ele ofereceu dinheiro o bastante para que Thompson desistisse do sequestro da menina, e levou as duas crianças. Mas Thompson deixou bem claro que ele oferecera a menina. Ou seja...

Esse alemão estava atrás de Grigori.

—Gostaria muito de reviver os velhos tempos, meu caro. Mas confesso que não sob tal situação, com minha filha em perigo. E então? Pensando em como agir, Holmes?

Holmes concordou, mentindo. Estava encafifado com o desenrolar do caso que se apresentava diante de seus olhos. Tudo parecia ser uma completa incógnita, e essa incógnita sempre o levava a Grigori.

Pensar no ataque de Quebra-Ossos e de Boehl contra Grigori como uma eventualidade ou coincidência tinha se tornado algo remoto. Cada vez mais que o conhecia, mais Holmes o desconhecia. Como um russo como ele poderia ter parado em Sussex, sendo ainda uma criança? E porque homens tão perigosos o queriam?

—É tudo culpa minha, meu caro Watson. – disse Holmes repentinamente.

—Não se culpe, meu caro. Esta situação poderia ter acontecido a qualquer um e...

—Não, Watson. Eu menosprezei a situação de Grigori. Tudo que aconteceu em Sussex, quando eu o conheci... Eu julguei como fatos isolados, mas claramente não são. Uma áurea de perigo cerca aquele menino. Mas eu menosprezei, ou melhor dizendo, não quis ver isso. E o que faço? Coloco-o dentro de sua casa...

—Holmes...

—Saiba que farei de tudo para corrigir meu erro, meu caro Watson. Eu vou trazer sua filha sã e salva. Mesmo que isso custe a minha própria vida.


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Notas finais do capítulo

E no próximo cap: como estão as crianças.

Obrigada por acompanharem e até o próximo cap!!!



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