Um Sussurro nas Trevas escrita por Will, kveronezi


Capítulo 11
O Xamã




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RAMONA

No domingo, assim que o sol desceu dos céus, Ramona saiu de casa. Passou um dia sem sequer falar com Rodrigo é muito menos sair do seu quarto. Sentia-se suja, a culpa atormentava-a. O corpo de Fred completamente mutilado, jogado ao chão daquela forma. E novamente era sua culpa, não conseguiu evitar aquela profanação ao que restou de seu amado. Além de causar a morte dele, não conseguiu evitar que seu velório fosse desastre e seu corpo caísse no chão e ficasse esquecido por horas. Ramona não sabia como conseguiu aguentar a dor insuportável de seu coração nesses dias.

O problema no dia anterior foi explicar toda a situação a polícia. Ela, Rodrigo e outras testemunhas ficaram até as 3 da manhã do domingo depondo sobre os acontecimentos da igreja. Ramona e Rodrigo foram um dos primeiros , o que atrapalhou o plano de ouvir o que os mortais viram, para depor algo parecido. A cada vez que ela ou Rodrigo tinham de explicar a versão deles, os policiais pareciam menos receptivos e mais duvidosos.

Após liberados, foram para casa. Ramona tomou para si a caixa com livros e anotações do irmão e trancafiou-se no quarto lendo tudo que era de algum interesse. Descobriu mais sobre a origem do lobisomem, sobre a fúria que deles se apossava e principalmente o por que desses guardiões da noite existirem. Segundo uma das anotações mais antigas, ao meio do matagal se encontrava a tribo naquela época do ano. Eles eram nômades isolados da civilização convencional e eram raras as ocasiões em que se misturavam. Ainda isolada de tudo e todos, com sua mente transtornada, Ramona estava a procura desta tribo. Sabia que iria acha-la. Algo em seu coração falava que ela pertencia aquela tribo. Ela estava andando sem cuidado, ouvindo o próprio pisar de seus pés.

A sua natureza de Uratha atraiu quem ela menos esperava. Naquela mata afastada, a barreira entre o Reino das sombras e o mundo carnal era ligeiramente mais tênue e espíritos mais poderosos conseguiam transpor a barreira sem dificuldades. E foi o que aconteceu.

Ramona foi arremessada contra um carvalho. Um Espinho de madeira lhe atravessava o ombro direito, o sangue manchando sua camiseta. Fora atacada por trás. O inimigo se aproximou. Um humanoide ligeiramente corcunda. O corpo era cascudo, coberto por longos espinhos de madeira. No lugar de seus genitais, folhas secas cobriam a forma. Os olhos brilhavam verdes. Ramona se ergueu apoiando as costas contra a árvore, olhou com um misto de raiva e medo para aquele ser abominável.

Num pico de adrenalina, a loba arrancou aquela estaca do ombro e assumiu sua majestosa forma de batalha. Diferente do buraco de bala, aquele ferimento custava a fechar. Ela ignorou a dor e avançou contra o homem-árvore. O primeiro golpe atingiu em cheio, fazendo voar lascas de madeira para todos os lados. O espírito mudou de forma num instante. Os espinhos espalhados pelo corpo se deslocavam para os braços e mãos, no mesmo instante ele revidava com estocadas rápidas. Ramona segurou um dos braços mas falhou em tentar segurar o outro , teve o abdome perfurado três vezes antes de estraçalhar o braço de madeira.

Ramona estava em clara desvantagem. Seus ferimentos eram mais graves e o espírito não parecia se incomodar nem um pouco com a falta de um braço. A loba fez menção de um segundo ataque, mas um estampido a fez parar aonde estava. A cabeça do homem-árvore explodiu em pedçaoas e logo em seguida o resto do corpo estourou, deixando para trás apenas um rastro de folhas secas. Ramona olhou e viu o homem com a 12 cano serrado na mão, os casos fumegantes da arma ainda fumaçando.

O senhor, que com certeza já tinha mais de 50 anos, era calvo, o que lhe sobrava de cabelos grisalhos juntavam-se a barba densa e cumprida. Vestia um sobretudo marrom e usava um par de óculos. Estendeu a mão para Ramona.

— Fica tranquila. -sua voz acalmava-a - Agora já está tudo bem. Era só um espírito-carvalho. Os que habitam essa floresta odeiam os Uratha. Teria vencido se não fosse pega de surpresa. -a naturalidade na voz dele chamava a atenção de Ramona.

Ramona retornou à sua forma humana, sem roupas. O senhor se apressou em tirar o sobretudo e jogar sobre seus ombros.

— Obrigada... -Disse envergonhada. -O homem a olhou ao fundo dos olhos e sorriu.

— Você é mesmo a cara do teu pai, garota... Até mesmo o cheiro é igual.

— Conheceu meu pai??? -falou no mesmo instante, apressada e ansiosa com a resposta.

— Marcelo. Um bom homem, mas que infelizmente não conseguiu viver com a culpa. Pelo visto você está nos procurando pelo mesmo motivo. -mesmo com seu tom frio, aquela voz parecia-lhe acolhedora.

— O senhor é da tribo? -sua voz estava cheia de esperanças.

— Sim. Sou Arnaldo, o Xamã,mais conhecido como garras de Marfim. E qual o seu nome?

— Sou Ramona...

— Ramona, filha de Marcelo e irmã de Rodrigo.

— Conheceu ele também?

— Rodrigo é -ele pareceu escolher suas palavras- Uma espécie de membro honorário da tribo. Mesmo não tendo passado pela primeira transformação, eu e os outros reconhecemos o seu sangue de lobo e o tutoramos na sociedade Uratha.

— Eu vim por isso, Xamã! -sua esperança apenas crescia- Eu preciso entender melhor a minha natureza espiritual. Eu preciso me livrar da culpa!

— Posso te ajudar com o seu lado espiritual, Ramona. Mas a redenção é uma jornada que se faz sozinha. Venha. Vou te mostrar algumas coisas...

Essa é uma história real.

Há muitos milênios, existia Pangeia. Ninguém sabe ao certo se Pangeia foi uma era ou um lugar, mas ela existiu e teve seu fim. Espíritos viviam em meio a carne, da mesma forma que homens e feras podiam desbravar o Reino das Sombras. Era o Eden, o paraíso primordial. Era aonde a natureza mostrava a face mais bela de sua selvageria. Predadores eram predadores e presas eram presas e o sangue quente banhava a terra.

A beleza encantadora desse paraíso laçou o coração de ninguém menos que a própria Lua. Mãe Luna – Amahan Iduth – A nossa mãe. Tomando para si a forma da mais bela das mulheres carnais, Luna caminhou pela terra aproveitando as maravilhas daquela terra, seus pretendentes eram milhares. Mas apenas um ganhou os olhos de Luna: Urfarah, o Pai-Lobo. Ele era o predador perfeito, o senhor das comarcas entre a sombra e a carne.

Mãe Luna viu nele o que não encontrou em mais ninguém e os dois se amaram. Luna deu a luz a nove filhotes de lobo, seres parte carne e parte espírito. De Luna, essas crianças receberam o poder de mudar de forma, tal qual ela faz. Do Pai-Lobo receberam a força, os sentidos e a velocidade que superam a dos predadores carnais. De ambos, receberam poderes espirituais, pois ela era a Rainha das Sombras e ele o Senhor das Comarcas.

Após dar a luz, Luna voltou aos céus, e o Pai Lobo formou a Primeira Alcateia. Ensinou aos seus filhos os costumes dos homens e dos lobos. Os instruiu sobre a carne e o espírito. Os primeiros Urathas tomaram o posto de Guardiões das Comarcas, sob o jugo do Pai Lobo e ali se iniciou uma era de ouro a nosso povo, pintada de escarlate com o sangue de nossas presas.. Éramos os predadores supremos. Éramos incumbidos de derrotar qualquer coro de espíritos, rebanho de animais ou tribo de homens que crescesse demais e se tornasse perigosa. Alguns deram-nos problema, seja pela magia que usavam ou por serem mais numerosos. Mas ao fim, a Alcateia sempre se sobressaía. O problema das eras douradas é que sempre há um fim derradeiro. A cada nova ninhada, o Pai Lobo ficava mais fraco, seus dentes perdiam o fio e cada vez mais espíritos furtivos enganavam seus sentidos. O que acontece a uma Alcateia quando começam a escapar presas por causa de um alfa fraco e lento? Duas coisas: ou a Alcateia morre... Ou substituem o alfa.

Foi o que aconteceu. Todo espírito tem uma interdição: leis invioláveis que regem sua própria natureza. E a interdição do Pai Lobo vinha de seu senso de dever. Enquanto não houvesse alguém para tomar teu lugar, ele não poderia fechar os olhos, de modo que se alguém se erguesse contra ele, nem mesmo conseguiria defender-se. Ninguém mais óbvio para tomar seu posto se não seus próprios filhos.

As lendas diziam que se alguém se opusesse ao Pai Lobo, ele usaria suas poderosas garras e presas para destroçar seus oponentes. Exceto se eles tivessem a intenção de destrona-lo. A sua própria natureza o tornaria impotente para se defender, o deixando a mercê dos algozes. Tamanha traição seria fatal. Os Urathas entenderam que para derrotá-lo, teriam de atacar para matar. E o fizeram.

Com seu último suspiro, escapou um uivo que abalou os dois mundos. Homens se esconderam chorando, temendo-o daquele que uivou, daquele que inspirava o medo em seus corações. Espíritos esconderam-se em seus antros, temendo o que quer que pudesse ter abatido o poderoso espírito-lobo. O lobo que desferiu o golpe fatal foi morto no mesmo instante pelo impacto emocional daquele uivo e, sua amante Luna, gritou angustiada e amaldiçoou para sempre todos os filhos que teve.

O uivo do Pai Lobo incitou tempestades, fez a terra se abrir, e os dois mundos por fim cindiram. O paraíso dos predadores ruiu. Essa foi a Derrocada. Desde então, somos os Destituídos. Chamamos de irmão os homens e os espíritos, mas nenhum deles nos responde de volta e é isso que somos. Predadores das florestas de concreto e aço. Urathas.

A história contada por Arnaldo diante do fogo levou Ramona a outra época, outro lugar. As emoções que Arbaldo sentia ao contar a história era passado para Ramona, como cada dor, cada sentimento, fosse sentido como uma lembrança. Fez com que ela entendesse o que de fato era. Por que estava ali. Já estava devidamente tratada e vestida.

— Eu serei seu mentor com prazer, Ramona. Te ensinarei os caminhos da carne e do espírito para proteger os que ama. Para responder o chamado do teu sangue. Muita coisa vai mudar daqui pra frente. -sua voz fez com que suasse como uma promessa ou um alerta- Sei que suas emoções sempre foram fortes, da alegria à tristeza. A tendência disso é piora.. Sentirá mais fome por carne. Também vai sentir os hormônios em fúria. Se tiver um parceiro é melhor ele estar preparado -abriu um sorriso brincalhão.

Ramona lembrou do namorado, mas não falou nada, apenas assentiu. Estava com medo pelas mudanças que viriam, mas ansiosa pelo treinamento. Ela sentia que Arnaldo, de alguma forma, estava conectada com ela, mas além de tudo, Ramona estava disposta a domar o monstro dentro de si.


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