Young Gods - Interativa escrita por honeychurch


Capítulo 11
Capítulo 10




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h a r re n h a l

O bordado de fato não era o seu melhor trabalho, mesmo assim toda vez que sua septã vinha para dizer algo como ‘as flores estão tortas minha senhora’ ou ‘o bico do seu pássaro está grande demais, minha doce Elyse’ a jovem dama era tomada por um vontade quase irresistível de cegar a mulher com suas agulhas.   Elyse então respirava tão fundo quanto os cordões apertados de seu vestido lhe permitiam, e dizia com um sorriso dócil ‘Obrigada septã Margoty, farei melhor dessa vez’ para que a mais velha se afastasse, agradecida de ter uma moça tão amável quanto Elyse como pupila.

A verdade é que não estava interessada em bordados, ou em qualquer outra atividade que a septã da casa Tully achasse necessária. E afinal, como poderia ser de outro modo, quando toda a corte se mobilizava para o casamento do príncipe com a garota da Campina?

Elyse ainda tinha que se controlar muito para não demonstrar toda a sua raiva com relação ao assunto. E pensar que seu primo nem ao menos se incomodara em lhe dar a notícia, foi Lynesse, que com olhos úmidos e sobrancelhas caídas viera em uma tarde dizendo com voz chorosa.

— Eu sinto tanto minha querida prima, eu... pode dormir comigo essa noite se for fazer você se sentir melhor. Ou talvez eu peça a papai que nos deixe voltar para Correrrio, a rainha não vai se importar, ela não pode.

— Do que você está falando Nessie?

Naquela hora Elyse achou tudo divertido, e no momento seguinte a comédia virou tragédia.

— Você não soube minha querida? Ninguém te contou? Edmund vai se casar com uma princesa, uma princesa da Campina! Ah, minha amada Elyse, vamos para casa, seu coração deve estar partido.

A mão de Lynesse foi em direção ao lodo esquerdo do peito da prima, mas foi afastada por algo muito semelhante a um tapa. Elyse podia ter deixado com que a surpresa fizesse suas emoções virem à superfície, mas ela logo tratou de se recompor.

— Por que meu coração se partiria?

— Porque você o ama! Ele sempre foi seu grande amor, e você seria a rainha dele, e...

— É claro que eu o amo. Você não o ama também? Ele é nosso príncipe, e um dia será nosso rei, e nós o amamos, mas eu jamais esperaria algo além da generosa amizade que ele me demonstra.

— Mas eu pensei que...

— Ah! Você ‘pensou’? Não achava que você pensasse em algo que não fosse Raynard.

Desde aquela tarde Elyse passou a fazer todas as suas refeições nos apartamentos Tully, e raramente saiu dos ditos aposentos. Era insuportável para ela ver cortesões passando, com cochichos e risinhos enquanto olhavam em sua direção. Toda aquela gente desprezível e inconstante que dias antes buscara conquistar seus favores, agora lhe dirigiam escárnio. Elyse queria fazer com que se arrependessem.

Quanto ao seu primo, ela ainda não tinha decidido se ele era um traidor, um fraco, ou os dois. Desde quando ele sabia de seu noivado? Desde quando resolvera não contar nada a ela? Ele ao menos demonstrara alguma resistência com relação ao assunto? De qualquer maneira, Elyse temia que caso o visse não seria capaz de se conter e o arremessaria pela janela para que Edmund fizesse par com a irmã.

— Acho que seu bordado está muito bonito Ely.

Elyse piscou algumas vezes até despertar de suas frustrações e perceber que Wylla estava falando com ela.

— Obrigada, é um presente para o meu irmão.

— Um pássaro comendo uvas? É um desenho incomum para você.

A dama disse analisando o trabalho da amiga. Wylla era alguém que Elyse esperava que lhe daria as costas no momento em que a princesa colocasse os pés na corte.

— Eu já disse, minha querida, é para o meu irmão e não para mim.

Wylla voltou os olhos para o próprio bastidor, mas a agulha não afundou nem duas vezes no tecido antes que ela continuasse, com a voz distante.

— Uvas estão no brasão real, não estão? Uma vez o meistre me disse que um rei proibiu qualquer coisa que mostrasse uvas sendo comidas. Era traição.

— Sim, todos sabem que você costumava ter longas conversas com o seu meistre. Às vezes a noite.

Elyse continuava concentrada em fazer um bom sombreado em seu pássaro, mas mesmo assim sentiu o olhar enervado da amiga vindo em sua direção, o que a fez sorrir.

— É uma pena que o príncipe não tenha mais nos convidado para nenhum sarau, era tão agradável quando ele o fazia.

Wylla provocou.

— Ele deve estar ocupado se preparando para o casamento.

Elyse respondeu.

— Ah, sim! Eu soube que estão entalhando ‘E’ e ‘N’ nos aposentos que a princesa irá ocupar. Mas é claro que o príncipe não está tão ocupado a ponto de por a meretriz Esossi de lado.

— Me surpreende que você tenha saído tempo o suficiente da torre do meistre para ficar sabendo disso tudo. Você é tão estudiosa.

Wylla bufou e prendeu a agulha em seu bordado antes de colocá-lo de lado e pedir licença para sair dos aposentos, o que a septã concedeu com um bico de descontentamento.

Elyse sorriu satisfeita. Talvez Wylla devesse tomar mais cuidado com quem dividia seus segredos, ao menos se sua intenção era virar as costas para os amigos.

— Acho que também deveria fazer uma pequena pausa, a senhora acha que posso?

Elyse perguntou, já apoiando o bastidor na mesinha.

— É claro minha querida. Pobrezinha, agora você ficou sozinha. Wylla não devia ter saído, não quando Lynesse e Denia foram a cidade. Eu irei me reportar a tia dela sobre esse comportamento, mas agora, eu separei algumas passagens do livro da donzela para clarear o seu espírito.

A jovem dama rapidamente se arrependeu de seu pedido, agora que estava prestes a ouvir a voz insuportável de sua septã, junto com sua péssima dicção. Com terror ela viu septã Margoty abrindo a capa gasta de sua Estrela de Sete Pontas, até que o chefe da residência dos Tully na corte, Carl Percy, aparecesse para salvá-la como um príncipe em uma canção. A empolgação de Elyse durou pouco no entanto.

— Vossa alteza o príncipe de Orkmont está aqui para vê-la, minha senhora.

O homem anunciou.

— Diga o príncipe que estamos prestes a começar serviços religiosos. Septã Margoty irá fazer uma leitura.

Mas Percy não tinha vindo pedir a autorização dela, ele apenas anunciara que o príncipe estava vindo, e no segundo em que Elyse terminou sua frase, Edmund entrou na sala de convivência dos apartamentos Tully. Ela se lembrou com amargor, enquanto fazia sua mesura, que ele era realeza, e a realeza não precisava fazer pedidos a súditos.

— Senhoras.

Ele falou tímido com um leve aceno de cabeça, e ainda que estivesse com raiva, Elyse não podia negar que Edmund continuava sendo o mais doce dos rapazes.

— O senhor gostaria de se juntar a nós em uma leitura? – Elyse perguntou, e depois de receber um olhar repreensivo da Septã, ela continuou – alteza.

— Leitura? Ah, eu não... acredito que talvez outro dia? Gostaria de falar com lady Elyse.

Septã disse um ‘é claro’ antes de se sentar observando a cena, o que obrigou o príncipe a adicionar enrubescido.

— A sós

A mais velha ficou hesitante, se por decência ou curiosidade, Elyse não saberia dizer, mesmo assim ela se retirou junto com Percy e fechou a porta atrás de si.

Finalmente ela e o primo estavam sozinhos, uma condição na qual já tinham estado inúmeras vezes, mas que agora para Elyse tinha o gosto de desconhecido.

Edmund estava na frente dela, longe demais e calado demais, talvez esperando que ela dissesse alguma coisa, mas Elyse não poderia fazê-lo, não enquanto ainda atravessava a névoa dos sonhos desfeitos.

Ela se manteve firme até que ele fosse obrigado a falar.

— Gosto do seu cabelo assim.

O príncipe disse para sua surpresa, pois de todos os motivos que poderiam tê-lo levado até ali, o cabelo dela era o último provável. Mesmo assim Elyse levou a mão até a trança que caia pelo ombro dela, um penteado simples de quem não tinha intenção de se mostrar em público.

— Obrigada, senhor.

Elyse respondeu, e os dois voltaram para o silêncio de antes. Ao contrário do dia em que nadaram no lago, quando podiam dizer qualquer coisa um para o outro – ou ao menos ela podia– hoje era como se cada palavra em que pensasse fosse arranhar-lhe a garganta caso dita.

Edmund girava ansioso os anéis em seus dedos, enquanto Elyse agradecia por não estar com nenhum dos anéis que ele tinha lhe dado. Todos os presentes que ela aceitara como se fossem promessas e agora a faziam se sentir uma tola.

— Eu vim perguntar sobre a sua saúde. Há dias que não a vejo ou recebo notícias suas, temi que estivesse doente.

A dama Tully não se lembrava da última vez em que estivera doente, mesmo assim ela levou a mão em seu peito arfante antes de voltar a se sentar na cadeira que ocupara segundos antes. Com uma falsa demonstração de tonteira Elyse terminou sua simulação de fragilidade. Se Edmund acreditava que ela estava doente, então que assim fosse. Ela não se incomodava em fazê-lo se sentir culpado.

— Eu estou muito bem, o senhor é muito gentil em perguntar. Por favor, me perdoe por ter que sentar na sua presença.

Elyse viu quando os ombros de Edmund caíram e seu rosto adquiriu um semblante profundamente triste.

A doce e amável Elyse nunca o tinha tratado com aquela rígida cortesia, pois entre eles sempre reinou intimidade e afeto. Conhecendo o príncipe como a jovem Tully conhecia, ela sabia que tratá-lo como se essas duas coisas tivessem desaparecido lhe seria torturante.

— Imagino que você tenha ouvido sobre...

— Sobre a feliz notícia do seu noivado? Sim, e meu coração está muito contente.

— Não está zangada comigo?

— Eu não tenho permissão para me zangar com o meu príncipe, e certamente não o faço.

Elyse tinha suas mãos apoiadas em seu colo, e pacientemente observava enquanto o silêncio de antes voltava, acreditando que não ouviria nada além de sua própria respiração, até que, para sua surpresa, Edmund caminhasse até ela e ajoelhasse no chão diante de si.

— Pois eu lhe dou permissão de fazer e sentir o que bem quiser, e ainda assim suplico que não fique magoada comigo.

Ela não poderia negar, que ter o príncipe ali, jogado aos seus pés implorando, a fazia se sentir muito bem, e Elyse não insistiria para que ele se levantasse.

— Deveria ter outra dama em suas prioridades, outra cuja a aprovação lhe devesse ser mais importante. Do que importa para um príncipe o que eu sinto?

Edmund a olhou com os olhos úmidos que um coração partido resultava, e tomou ambas as mãos que ele achava tão bonitas nas suas.

— Eu juro pelos seus deuses e pelo meu que não era isso que eu desejava, mas se tudo me obriga... Você gostaria que eu colocasse meus próprios desejos na frente dos do reino?

Elyse poderia ter puxado sua mão, mas que danos poderia causar ao coração já partido do primo? Ao invés disso ela encaixou seus dedos nos dele, tocou sua palma com a de Edmund, e sentiu como o príncipe apertava o enlace, temeroso que ela pudesse desfazê-lo.

— E não é isso o que eu quero dizer? As necessidades do reino são tão importantes, e os meus desejos, ainda que eles me tomem por inteira, continuam sendo insignificantes. Que direito eu tenho de me magoar se você os ignora?  

Ele balançou a cabeça em negativa, magoado e ansioso, Edmund parecia não conseguir respirar direito, e Elyse não se compadecia.

— Não, você sabe que isso não é verdade, eu me importo mais com você do que com qualquer outra criatura viva. Você entende, é claro que entende, que essas não são as minhas vontades. Não pode acreditar que eu esteja menos que infeliz com isso tudo, e eu não posso acreditar que queira me ver mais miserável do que já estou.

Tão calmo, tão doce, tão ingênuo Edmund. Elyse não o odiava, e não achava que um dia fosse ser capaz de fazê-lo, mas se ele não fosse tão submisso, ela não estaria tão frustrada.

Elyse queria correr os dedos pelos cabelos dele como sempre fazia, mas isso significaria ter que separar as mãos entrelaçadas, e ela não tinha qualquer interesse em se desvencilhar dele, não agora que o príncipe estava tão vulnerável e bem na mão dela.

— Se você tivesse me pedido, eu teria fugido com você, nós teríamos encontrado testemunhas, e um septão. Eu seria sua esposa agora, se você tivesse me pedido.

— E como eu pediria algo que colocaria sua vida em risco? Meu pai não está no melhor de sua razão, e o rei da Campina nunca foi conhecido por benevolência, no momento em que anunciasse você como minha esposa teria um envenenador no seu encalço. Eu não suportaria isso.

Era claro que vendo a situação por essa luz Elyse ficava aliviada de não estar casada, mas Edmund não precisava saber disso, e pensando no que diria, Elyse se lembrou das palavras do insípido Raynard para a irritante Lynesse.

— De bom grado eu conheceria os braços da morte, se antes tivesse conhecido os seus.

A jovem Tully tentou soar o mais sincera possível, e o jovem príncipe pareceu acreditar.

Edmund repousou sua cabeça no colo dela, como já havia feito tantas vezes antes, mas as mãos entrelaçadas continuavam como estavam.

— O tempo virá em que eu poderei mostrar a todos que você é a mais amada. Você é a senhora dos meus favores, e minhas afeições são tão sinceras... – Ele suspirou contra o seu vestido, de maneira tão pesarosa que ela poderia jurar que sentiu a angustia tocar sua pele – Elyse, há tão pouco que eu possa lhe oferecer por ora, e mesmo assim.

O príncipe levantou sua valiosa cabeça onde um dia repousaria uma coroa, e ainda que lentamente, desenlaçou seus dedos dos da prima. Elyse o viu tirar o anel de seu dedo anelar da mão direita. Ele já tinha lhe dado muitos presentes, e entre eles muitos anéis, mas nenhum que pudesse se comparar a esse.

A jóia que o príncipe estava agora pondo na palma da mão dela era o anel oficial do príncipe de Orkmont, aquele que o príncipe herdeiro só tiraria no dia em que o fosse substituir pelo anel de rei.

Haviam casos no entanto, em que príncipes apaixonados deram o anel para suas princesas, como prova de afeto e confiança.

— Eu não poderia usá-lo

Elyse disse quase trêmula. Em seus sonhos ela sempre era parte da realeza, mas em sua vida nunca tinha chego tão perto de uma regalia.

— É claro que pode, e assim todos saberão o quanto eu a amo.

Edmund tomou a mão dela, que tão dedicadamente se fechava protetora naquele símbolo de realeza, e a beijou.

...

c o r r e r r i o

Ele não ouvia barulho algum, e por sua vez não fazia barulho algum. Aquele não era o tipo de lugar que Edmyn gostava, era escuro, baixo e úmido, mesmo assim o cavalheiro fazia o seu melhor para se manter calmo.

Aquele era um antigo depósito da pequena vila onde estava. Anos antes os aldeãos o usaram para guardar cerveja, vinho e óleos, mas hoje abandonado, o lugar não guardava nada que não fosse poeira, teias de aranha e todo tipo de sujeira.

Ed queria sair dali, mas não podia simplesmente abandonar sua missão, não importava o quão desconfortável fosse, ele sabia que no fim encontraria recompensa em sua própria satisfação.

Com um pouco de alivio e surpresa misturados Edmyn Tully ouviu um barulho atrás de si, ao se virar ele viu a pequena figura de uma menina loira correndo em sua direção oposta. Não foi difícil alcançá-la, e quando o rapaz Tully tocou os pequenos ombros da pequenina, ela soltou um grito apavorado, e também o avental imundo onde carregava comida.

— Calma, calma minha querida, está tudo bem.

Ele disse tão suave quanto era capaz ao se ajoelhar para ficar da altura dela. A menina só olhava para o cabo de sua espada.

— Está com medo disso? – Edmyn perguntou divertido ao dar dois tapinhas na bainha – Não precisa ter medo. Um cavalheiro precisa de uma espada, mas apenas para defender belas donzelas como você.

Com a mão enluvada ele toucou a ponta tão tristemente suja do nariz da menina, e sorriu vendo as reservas da criança se afrouxarem.

— Escute, eu sei porque você está aqui, é porque lá em cima existem homens que querem ferir você. Mas eu não sou como eles, eu quero ajuda.

Edmyn puxou de dentro da cota de malha um cordão com um rubi na ponta. Os olhos da menina se iluminaram ao identificar um amigo depois de tanto tempo fugindo de inimigos.

— A noite é escura

O cavalheiro disse.

— E cheia de terrores.

A menina respondeu antes de lhe dar um rápido abraço. Seu olhar se encheu de esperança.

— Essa comida – Edmyn continuou – Você estava levando para alguém não estava?

Ela confirmou com a cabeça.

— Eu preciso saber onde eles estão. Vamos sair daqui, vamos para o sul, onde nenhum rei vai querer nos machucar.

A menina o puxou pela mão, até onde não só sua família, mas tantas outras esperavam pela liberdade.

...

Quando Elyse lhe dizia que era mais fácil apanhar moscas com mel do que com vinagre, ele achava que aquilo não passava de um pensamento sentimental e inútil do qual mulheres tão facilmente se viam sendo vitimas. No fim, Edmyn agradeceu por ter posto fé no bom senso da irmã.

Se isso não convencesse Bennard a fazer dele o futuro senhor de Correrrio, nada faria.

A garotinha que o tinha ajudado tanto, tinha riscos no rosto que corriam como vermes de seus olhos até o queixo. O caminho que lágrimas deixaram depois de terem lavado a sujeira do rosto da menina.

Edmyn não sabia dizer se ela estava chorando porque se encontrava amarrada em um tronco com outras crianças, com lenha em seus pés, ou porque tinha sido graças a ela que Edmyn formara pelo menos dez fogueiras apenas com seguidores do Deus Vermelho.

— Ei você! – Ele gritou para o guarda que colocava mais um facho de madeira ao pé das crianças amarradas – Menos lenha. Na verdade, quero que corra e diga para que tirem um facho de cada pira.

O homem o olhou um pouco confuso, e ainda sem soltar a madeira.

— Mas senhor, com pouca lenha a pira vai queimar mais lentamente... eles demorarão mais até encontrarem seu fim.

— Ah, mas eles gostam de fogo, é por isso que estão morrendo.

Seu guarda foi obrigado a se retirar com sua consciência, enquanto Edmyn foi deixado com o revigorante som de gritos e choros de protestos daqueles que logo seriam consumidos pelas chamas.

Fazia sentido, no final das contas. Aquele deus era, o então chamado ‘senhora da luz’, e seus fiéis voavam como mariposas na direção dessa tola ilusão, nada mais justo que terminassem queimados.

Edmyn se lembrava de quando era pequeno, e em um dia a noite escapou do quarto. O gatinho de Lynesse havia resolvido fazer o mesmo, e de tão dócil, o animal viera pedir carinho aos pés de seu companheiro fugitivo.

O garotinho que o jovem Tully havia sido correra até as adegas de Correrrio, onde ninguém ia a noite, e o gato o seguira. Depois foi tudo tão simples, amarrar as patas do animal, suspende-lo em um gancho e finalmente chamuscar a pele dele com um archote.

O gato de Lynesse se debatia e gritava, enquanto Edmyn cuidadosamente aproximava as chamas apenas o suficiente para queimaduras não fatais. Quando o animal morresse a diversão acabaria.

O cheiro de queimado que vinha dos pelos e da pele, os gritos agudos, o modo como a criaturazinha se debatia, deixaram o garotinho Tully mais feliz do que qualquer presente que o pai ou a mãe tivessem lhe dado, e apenas quando ficou com muito sono, e o Sol já ameaçava nascer, que Edmyn pusera o archote contra o pulmão do gato por tempo suficiente para que ele morresse.

No dia seguinte, naturalmente Lynesse ficou desesperada atrás de seu bichinho, e de maneira alguma fora capaz de encontrá-lo. Edmyn aproveitou um pouco das lágrimas e lamúrias da prima, e só depois de uma semana ele colocou o corpinho chamuscado, e meio apodrecido do gato aos pés da cama. Ele então esperou a noite toda perto da porta do quarto, apenas para ouvir os gritos de Lynesse quando ela acordasse. A prima não o decepcionou, e o espetáculo que fez chamou toda a família para o quarto na tentativa de acalmá-la. Edmyn nunca rira tanto em toda a sua vida.

Se um gatinho foi capaz de lhe trazer tanto divertimento, ele quase não poderia esperar pelo o que cinco dúzias de pessoas não fariam.

— Por ordem do decreto de vossa majestade, o augusto rei Benard o primeiro, pela graça dos sete, e pela benção do deus afogado, senhor das Ilhas e dos Rios, os praticantes da pérfida feitiçaria vermelha são culpados de traição, sendo a pena a morte pela fogueira. Hoje eu, Edmyn, filho de Elmo, nascido na casa Tully de Correrrio, faço cumprir a lei, e que aqueles com maldade no coração saibam que as ordens de nosso senhor soberano, Benard da casa Hoare, são sagradas, e a insubordinação jamais será tolerada. – Ele olhou por um momento para os septões que terminavam o trabalho de ungir os condenados com óleo sagrado em um último ritual não requisitado antes da morte – Que os deuses tenham piedade de suas almas.

Terminando a tediosa parte oficial, ele pode apreciar o rosto de pavor de alguns aldeões que estavam ali para assistir a execução. Pegou o archote das mãos de um de seus guardam e estava pronto para o grande final de sua empreitada.

A primeira pira estava apenas com crianças, e a menininha que o guiara pela mão agora não era capaz de olhá-lo, ela abaixou a cabeça com pesadas lágrimas pingando de seu rosto.

— O fogo vai secar essas lágrimas meu bem.

Edmyn disse com um sorriso, seu braço abaixando o archote para encontrar a lenha.

Infelizmente para o rapaz seu gesto foi interrompido pelo som de cascos que batiam violentamente contra a terra, em uma corrida determinada. Rápida e desacompanhada vinha lady Jenny com o penteado arruinado, cabelos soltos, um vestido simples, e o manto qualquer, simples demais para ser dela.

Ele não sabia o que a mãe tinha vindo fazer ali, mas mesmo assim foi tomado pela vontade de pô-la para longe com pedradas. Como ela poderia ousar interromper o momento dele? E ainda pior, fazê-lo parecer um garotinho ainda tendo que ser assistido pela mãe?

— O que você quer?

Edmyn perguntou entre dentes, tão baixo quanto possível, apenas para que sua mãe de aparência descomposta ouvisse.

Lady Jenny ofegante, tirou o cabelo do rosto e lhe estendeu uma mensagem já com o lacre quebrado.

— É de Elyse – a dama disse com o pouco ar que tinha – e é urgente.

Ainda que aquilo o fizesse se sentir estúpido, Edmyn tinha que admitir que não era capaz de ignorar sua irmã ou qualquer um de seus pedidos, seria tão impensável quanto ignorar seus próprios pensamentos, então com um rolar de olhos ele devolveu o archote para o guarda e pegou a carta, onde a caligrafia impecável de Elyse dizia.

“Para meu amado irmão Edmyn.

Espero que esteja bem de saúde e de espírito, assim como eu me encontro. A pedido do príncipe, hoje eu lhe escrevo. Para vossa alteza, a morte tão cruel dos praticantes da fé vermelha, é razão de uma imensa dor. Como você bem sabe, qualquer coisa que draga angustia para Edmund, parte o meu coração de tal maneira que não sou capaz de suportar. Então eu peço, pelo carinho que nutre por mim, que não seja autor de sofrimento para nosso bom primo, e que assim preserve minha felicidade.

Sinceramente, Elyse.”

Ele se arrependeu de ter lido, porque sabia que não poderia simplesmente deixar passar o que Elyse lhe pedia. Ele sabia muito bem que ela seria capaz de suportar a morte de um ou outro estranho, e até gostaria de ter as lágrimas de um Edmund vulnerável em seu ombro, mas ela estava pedindo e ele não poderia suportar a decepção na irmã caso não lhe atendesse.

— Da próxima vez eu vou abater cada corvo que se aproximar – Edmyn disse irritado para a mãe – Dê uma desculpa aos aldeões, e mande todos esses traidores para o exílio. Espero que Benard se comova com os chiliques do filho tanto quanto minha irmã faz, caso contrário vamos acabar sendo enforcados com nossas próprias tripas.

 


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