Lugares Seguros escrita por Bárbara Martin


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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 O som dos nossos passos apressados sob as folhas secas ecoa pela floresta. A mão de Aaron está segurando a minha firmemente enquanto seus olhos permanecem fixos no horizonte. Nossos corpos se esgueirando pela imensidão verde parecem até raposas. Não sei para onde estamos indo, mas também não me importo. Sei que será um lugar onde não seremos encontrados.

Por mais que agora já não haja ninguém nos perseguindo, — duvido que alguém além dele se arrisque a entrar tão profundamente na parte mais esquecida da cidade — nós ainda sentimos a urgência em nos livrar de todo o peso recentemente instalado em nossos ombros.

A cada metro que andamos sinto minhas preocupações se esvaírem, sendo substituídas por tons de segurança e tranquilidade. A presença de Aaron e a confiança que ele me passa também ajudam.

Eu vejo abutres rodeando nuvens negras acima de nós. Sabe-se lá o que os desdobramentos dessa floresta escondem. Penso que, ironicamente, talvez eles só estejam retratando nossa situação. Zombando de nossas decisões.

Eu vejo altos pinheiros, raros raios de luz se esgueirando por entre as árvores, sinto a fria brisa do outono no meu rosto e a vejo balançar os cabelos castanhos do Aaron. É uma bela visão, devo admitir.

Sinto a cena toda acontecendo em câmera lenta. O pequeno sorriso em nossos lábios, aliviados por estarmos finalmente a sós, nossas mãos entrelaçadas, nossos corações acelerados. Porém, ainda assim, eu sei que essa é somente a calmaria antes da tempestade.

Dia anterior

Domingo, 14 de outubro.

Acordo com o som do meu celular tocando e o puxo ainda sonolento para ver a tela antes de atender. É Aaron e apenas ler seu nome já me deixa mais atento.

— Alô?

— Oi, Ethan. Quero que não entre em nenhuma rede social, o.k.? — Sua voz grave, que geralmente era suave e afável, tem um tom urgente que me preocupa.

— Que? Por quê? — O sinto hesitar do outro lado da linha. — Aaron.

— Postaram um vídeo de nós dois hoje de madrugada.  

Sinto o quarto ao redor de mim se encolher e meu peito começar a ficar apertado.

— Eu tentei denunciá-lo, mas já se espalhou demais. As pessoas estão comentando e eu não quero que você leia nada do que elas dizem.

— Q-Quem postou? O que tinha no vídeo?

— Eu não sei quem foi. — Ele suspira. — O usuário era falso. No vídeo nós estávamos no meu carro nos beijando. Só isso.

— Só isso?! — Me sento na cama, indignado. — Aaron, você sabe como meus pais são. Como a cidade inteira é. Eles simplesmente não aceitam esse tipo de coisa.

— Eu sei, amor. Só estava tentando te acalmar, mas nós vamos dar um jeito, ta bom? Eu vou pensar em alguma coisa.

— Okay. — Tento controlar minha respiração porque sei que ele entende e só está tentando me proteger, mas também não posso conter a sensação do ar em minha volta estar se tornando vidro, prestes a se estilhaçar e cortar meus pulmões e tudo que estiver por aqui.

Escuto batidas pesadas na porta e já sei o que isso significa.

— Tenho que ir. Tchau. — Desligo o celular antes de ouvir a resposta e antes que ele ouça minha porta sendo escancarada por um chute.

— O que isso significa? — Meu pai entra no quarto com uma expressão furiosa, quase esfregando o celular no meu rosto com uma imagem escura de duas pessoas dentro um carro. Eu sei quem elas são. Meu pai também.

Antes que eu possa responder, sinto sua mão queimar em minha bochecha, me fazendo cair no chão. Eu não sabia que ele era tão forte. Que um dia ele me odiaria desse jeito. E eu sei que não é só um sermão ou um susto e depois tudo voltará ao normal. Eu quase consigo palpar sua raiva dessa vez. Seu desprezo.

— O que eu fiz para merecer isso? Foi falta de uma boa surra, foi? — Ele diz quase cuspindo em mim. Não tenho coragem de levantar. — Você não é normal, Ethan. Você sabe disso, não é? Você está indo contra a natureza! Você virou uma aberração.

— Pai, eu... — Tento dar algum tipo de explicação, mas sei que nada bastará.

— Eu não admito que você me chame de pai. Eu não sou pai de bixa.

De todas as frases que ele já me disse, essa foi a que mais me machucou. Sinto meus olhos encherem de lágrimas e abraço minhas pernas quando ele ameaça me chutar.

— O que todos vão pensar da nossa família, Ethan? Você parou para pensar nisso, garoto? Você sujou nosso nome. Você é sujo. Imundo. Não quero mais você morando nessa casa.

Por um momento sinto vontade de não amar quem eu amo. Sinto vontade de ser “normal” e ter um romance superficial com uma garota superficial. Pelo menos assim ninguém me odiaria. Assim seria fácil. Mas por mais que eu tente, o fácil não é para mim. Não posso mudar quem eu sou.

— Pare com isso, Damien! — Escuto a voz de minha mãe chegando até meu quarto e me permito relaxar um pouco. — Ele ainda pode ser consertado. Nós podemos o levar na igreja. Ele é um bom menino.

Aquilo mexe comigo. Me dá forças para reagir.

— Consertado? — Digo incrédulo e me levanto, cansado de ser oprimido. — Não há nada para ser consertado em mim. Vocês não podem e nem vão mudar quem eu sou ou de quem eu gosto; e se isso os incomoda tanto então eu não moro mais aqui mesmo. — Cruzo meus braços e logo percebo o erro que cometi ao não ter corrido assim que terminei a frase.

Um soco de meu pai se segue com um grito de minha mãe.

Novamente estou no chão e sinto o gosto de ferro na minha boca. Olho para meu pai com os olhos arregalados e noto que ele percebeu que foi longe demais, mas agora já estou correndo para fora do quarto antes que ele faça mais alguma coisa.

— Vocês são os monstros, não eu. — Grito antes de sair da casa e bater a porta atrás de mim.

Só um nome me vem à cabeça e é para lá que eu vou.

— Acho melhor nós pararmos um pouco. — Aaron para de caminhar e olha para mim. Agora a luz quase se extinguiu por inteira, mas seus olhos verdes brilham como nunca brilharam antes. — Já é quase noite e é perigoso andar pela floresta no escuro.

— Tem animais selvagens aqui? — Pergunto preocupado. Ele ri baixinho e posso dizer com segurança que esse é meu som favorito.

— Provavelmente. — Ele sorri maliciosamente tentando me deixar assustado. — Mas se ficarmos quietinhos eles não atacam.

Ele se aproxima mais de mim e levanta meu queixo gentilmente. Suas mãos estão quentes e seu toque me faz fechar os olhos em resposta. Ele pressiona seus lábios nos meus, que doem por causa dos cortes e por causa do frio, mas ao mesmo tempo aquecem meu coração temeroso.

— Nós não trouxemos nada para dormir. — Sussurro quando nos separamos.

— Eu sei, amor. Não achei que o lugar era tão longe. Desculpe-me. — Seus dedos deslizam pelos meus braços até minhas mãos.

— Tudo bem. — Sorrio. — Essas plantas e folhas parecem confortáveis.

O som de nossas risadas ecoa pelo lugar, mas aos poucos o sorriso vai sumindo dos lábios de Aaron.

— O que foi? — Pergunto-o.

— Tem certeza que quer fazer isso? Sumir para sempre?

— Você sabe que, para mim, sempre foi você. Você é tudo que importa para mim e se eu não posso ter isso naquela cidade então eu não quero fazer parte dela.

Ele dá um sorriso triste e assente. — E para mim, sempre foi você também, Ethan.

— Eu te amo. — Aperto suas mãos. — E tenho certeza de como quero que isso tudo acabe.

Seu sorriso fica um pouco maior e ele se senta no chão, juntando algumas folhas ao seu redor e quando ele se dá por satisfeito, sinaliza no lugar ao seu lado para eu sentar. Encosto-me em seu peito e ele encaixa a cabeça no meu ombro e os braços em volta de mim.

— Eu também te amo. — Ele sussurra e por mais que estejamos em um ambiente hostil, dormindo no chão, eu nunca me senti tão confortável.

Manhã anterior

Segunda-feira, 15 de outubro.

— Vocês têm certeza que querem fazer isso, meninos? — A mãe de Aaron nos pergunta enquanto pegamos nossas mochilas. Felizmente ele sempre foi muito carinhosa, embora mal pare em casa por causa do trabalho no hospital. Aaron me diz que ás vezes o turno dela acaba, mas ela fica lá porque não aguenta voltar para casa e não encontrar o marido, morto há dois anos. Até o filho lhe traz lembranças angustiadas.

— Nós precisamos tentar fingir que nada aconteceu. — Ele responde e eu aperto as mangas do meu casaco, não sabendo como e se isso dará certo.

— Tudo bem, querido. Boa aula e boa sorte. — Ela diz enquanto saímos de sua casa.  

— Obrigada. — Sorrio para ela desejando que a sorte funcione.

Assim que chegamos à escola percebo que não. É uma cena e nós estamos aqui expostos. Eu posso ouvi-los sussurrando enquanto passamos nos corredores.

— Deixe que eles digam o que quiserem. Não ouviremos. — Ele sussurra tentando me fazer esquecer o que está bem notável em minha frente. — Não desta vez. Não vamos nos abalar por causa deles.

 Algo acontece quando todo mundo descobre. O caos em suas línguas maldosas, nos direcionando comentários horríveis, afeta nossas mentes também. Nos deprime, nos faz sentir fracos.

Aaron aperta minha mão e sei que ele também sente, por mais que não queira que eu saiba. Isso eles não percebem.

E nós que somos os estranhos.

O sinal para o primeiro período toca e fico aliviado por não ter mais que olhar para expressões de pena, de nojo e de ira. Relaxo meus ombros enquanto as outras pessoas se direcionam para suas classes e assim que o corredor fica vazio Aaron me beija, deixando-me com medo que alguém nos veja, mas me fazendo relaxar ao mesmo tempo. Conseguimos sobreviver ao repúdio.

Algo rígido atinge nossas bochechas e o canto de nossas bocas. Sinto o gosto de sangue mais uma vez e olho assustado na direção de quem desferiu o golpe. Aaron faz o mesmo.

Um padre nos observa com uma régua de madeira enorme na mão e o rosto como se estivesse prestes a vomitar. Percebo que não vamos conseguir passar por isso. Estávamos nos iludindo e não há nenhum jeito de melhorar a situação, de tentar fazê-los nos respeitar, nos tolerar. Não há final feliz nessa cidade.

 — Mas que pouca vergonha! — Ele cospe em nós dois e mais uma vez, me sinto um lixo. Se Aaron não estivesse segurando minha mão, eu já teria caído no chão aos prantos. — Vocês estão expulsos dessa escola!

— Você não pode fazer isso. Nós não fizemos nada de errado. — O garoto discute com o padre, mas já sei que o que foi decidido não tem mais volta.

— Nada de errado? — Ele aponta para as nossas mãos entrelaçadas. — Isso é contra tudo que ensinamos aqui. Homem deve apenas ter relações com o sexo oposto. Relações homossexuais são contra a natureza e contra a sagrada bíblia. Vocês vão para o inferno.

A feição de Aaron é de total ultraje. Ele aperta minha mão mais uma vez, mas sei que dessa vez não é de medo e sim para contê-lo de expor sua raiva. Ele simplesmente se vira para a porta de saída e ignora o que o padre continua falando. Não é nada bom de qualquer jeito mesmo, então simplesmente o sigo.

— Para onde estamos indo, amor? — Tento acalmá-lo quando chegamos um pouco distantes da escola, e como se reagisse a minha voz, seu corpo todo trava.

— Me desculpa. Okay? Eu achei que íamos conseguir passar por isso, mas nós acabamos só ouvindo coisas que ninguém merece ouvir, Ethan. Coisas que você não merecia ouvir. Então me desculpa por ter feito você passar por isso. Se você quiser me deixar agora e tentar ter sua vida de volta, eu acho que você ainda consegue.

— Não se desculpe por isso. Eu nunca vou te deixar, Aaron. Não quero minha “vida” de volta. Minha vida é você e sem você eu prefiro morrer. Você também não merece nada disso e eu entendo se quiser ficar sozinho, mas eu não quero. Se ninguém nos aceita então eu não quero ficar aqui.

— Também não aguentaria ficar sem você. — Ele dá um sorriso fraco e põe suas mãos na minha cintura. De repente sua expressão muda, como se tivesse tido uma ideia. Então ele começa a caminhar.

— Aaron? Se importa de me explicar o que você vai fazer? — Pergunto sarcasticamente, mas logo meu humor se esvai com gritos se aproximando rapidamente atrás de nós dois. Reconheço a voz do padre diretor.

Olho assustado para Aaron e ele olha para trás de mim e então estende a mão. — Apenas pegue minha mão e nunca largue, meu amor. — E então começamos a correr.

Corremos e corremos e começo a entender para onde ele está me levando. Quando chegamos aos altos pinheiros na beira da rodovia que sai da cidade já não escuto ninguém nos seguindo. Provavelmente desistiu a algumas quadras atrás.

Assim que pisamos na terra úmida e cheia de folhas secas da floresta ele olha ao nosso redor para confirmar se não havia ninguém e finalmente me conta seu plano. No início me assusto com a intensidade e obscuridade do que ele havia pensado, — tudo que vivi em dezessete anos de vida me passam rapidamente pela cabeça e não sei se estou preparado para largar tudo isso — mas ao ver seu olhar confiante e sentir suas mãos nas minhas eu tenho certeza do que quero.

Abro os olhos lentamente e me vejo na mesma posição que dormimos ontem. Aaron já está acordado e ele sorri assim que me nota.

— Não quis me mexer para não acordá-lo. — Sorrio de volta para ele e me sento ao seu lado. Escuto meu estômago roncar e, pela risada dele, Aaron também.

— Aqui. — Ele puxa sua mochila para seu colo e tira uma barra de chocolate. — É a única coisa que eu tenho, mas podemos comer.

— Está de bom tamanho. — Sorrio e aceito o pedaço que ele me oferece.

— Hm. — Ele murmura de boca cheia quando se lembra de algo. — Agora que está claro novamente eu vi as escadas de pedra que levam ao lugar que eu te falei.

Olho para nossa direita e vejo em uma curta distância uma escada de pedra cercada por galhos repletos de folhas. Não me admiro não a termos visto ontem.

— Então é isso? — Pergunto depois de um suspiro.

— Isso. — Ele olha para mim preocupado. — Ainda não mudou de ideia, Ethan?

— Não. Eu tenho certeza. — Ninguém da cidade nunca ia nos entender. Eles eram os caçadores e nós éramos as raposas, então nós corremos. Eles têm gaiolas e caixas para tentar nos prender, nos moldar, mas nada irá nos separar. Não mais.

Deixamos as mochilas ali em baixo e, de mãos dadas subimos as escadas. Lá em cima não há mais árvores, folhas secas ou abutres. Dessa vez há pássaros felizes preenchendo o ar com seu cantar, há um céu azul limpo e uma brisa agora mais aconchegante, como se estivesse nos dando boas vindas.

Fecho os olhos e sorrio com a sensação de liberdade. Não invejo mais os pássaros. Agora sou como eles. Escuto o barulho de água correndo a distancia e sinto a mão de Aaron na minha. Abro os olhos e vejo-o sorrindo também. Ele faz um sinal de silêncio e outro para eu acompanhá-lo.

Nós subimos mais um pouco na montanha e chegamos ao topo. Vários pássaros bicam o chão e a vista agora é maravilhosa. À nossa frente há uma cachoeira de águas cristalinas e ainda mais a frente há o resto da floresta de pinheiros, em uma imensidão verde.

Aaron solta minha mão e corre em direção aos pássaros, fazendo todos voarem em sua volta carregando suas gargalhadas. Corro em sua direção e nos derrubo no chão, juntando minhas risadas às dele. Fazia tempo que não me sentia assim.

Nós nos levantamos e caminhamos até a beira do penhasco para ver a cachoeira se estilhaçar com uma beleza única no rio abaixo de nós. Ele estava certo, como sempre. A altura era suficiente e o plano daria certo.

Viro-me para o garoto moreno de olhos verdes brilhantes ao meu lado e sorrio. Ele é tudo que eu tenho, é tudo que eu quero. Ele sorri de volta e envolve minha cintura com seus braços. É engraçado porque, mesmo com o que está prestes a acontecer, eu me sinto extremamente seguro.

Nós nos beijamos como nunca beijamos antes. Estamos cheios de paixão, não há nada carnal. É como se estivéssemos nos despindo de nossos corpos e beijando nossas almas. Quando separamos nossas bocas estamos ofegantes e plenamente felizes, em paz.

Olhamos para baixo e sem dizer nenhuma palavra, nós pulamos. Isso pode ser nosso começo ou nosso fim. Mais uma vez vejo o vento balançando os cabelos castanhos de Aaron e ainda acho que essa seja a coisa mais bela que já vi.


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Notas finais do capítulo

Olá. ❤ Você pode deixar um comentário? Pode ser um rápido feedback só para eu te agradecer apropriadamente por ter lido até aqui :)
Eu sei que esse fim não foi lá muito feliz, mas deixou tanto o Aaron quanto o Ethan contentes. (E eu queria um final tragicamente bonito também)

Se quiser ler mais das minhas histórias, sinta-se livre para visitar meu perfil. Vou ficar bem feliz, por sinal ❤