Hiraeth escrita por Uma Qualquer


Capítulo 5
Separadas




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“Jaguar maldito”, Reyne pensava ao entrar no salão circular, iluminado por candeeiros. Outros membros do conselho já estavam reunidos, formando um grupo de doze pessoas. Estavam de pé em círculo, enquanto o negro robusto conduzia as duas garotas para o meio deles.

Óbvio que Reyne ia para casa. Tinha que ter algumas horas de sono, antes de pegar a estrada. Sim, estrada. Patrulheiros não precisavam ficar enfurnados dentro das matas o tempo todo, como o pobre Severin fazia; tinha algumas tavernas para visitar, algumas pessoas para espionar. Não gostava de patrulhar a imensa floresta o tempo todo, muito menos ficar preso no pequeno vilarejo e ser obrigado a participar das reuniões do povo dali. Ele passou a mão pelo rosto e bufou, desalentado. Paciência.

Os porta-vozes do conselho eram Nahuel, o jaguar negro, e Chayton, o falcão albino. Ordenaram a Reyne que dissesse a todos o que foi capaz de apurar sobre as forasteiras e ele bufou novamente. Ser o centro das atenções lhe irritava.

— Elas viajam juntas ... A um bom tempo - disse aos resmungos. - A mais velha muda pra loba. Talvez a criança saiba usar armas de fogo. E ao que parece, vinham procurando por Hiraeth até esbarrarem naquele lobisomem.

— Elas sabiam sobre Hiraeth? – Chayton indagou em sua voz profunda de barítono, que de alguma forma não combinava com seu aspecto magro e franzino.

— Não – ele respondeu. – Só sabiam de um lugar seguro de lobisomens, onde talvez pessoas como nós vivessem.

— Quem lhes disse que havia tal lugar? – Nahuel se dirigiu à pequena Georgie, que estremeceu só de ouví-lo.

— N-Nosso pai – murmurou. – Ele soube numa das viagens que ele fazia. Tentamos descobrir onde ficava, mas fomos atacados por lobisomens. Ele...

Reyne reparou no modo como a mão dela apertava nervosamente a da irmã.

— Ele e nossa mãe morreram nos protegendo.

Os ouvintes baixaram a cabeça e apertaram a mão fechada junto ao peito. Era um sinal de reconhecimento à perda das duas, mas Reyne duvidava que elas entendessem.

— Há quantos anos são andarilhas? – Honovi perguntou.

Estava de pé ao lado de Reyne. Havia cuidado das duas desde que Reyne e Tasunke as resgataram, e como mãe de três garotas, provavelmente já tinha se afeiçoado às forasteiras.

— Quatro – disse Georgie.

— Qual das duas usa as armas de fogo?

— Nós duas. Mas eu caço melhor como loba. A Reev é melhor com as armas.

River (que diabo de nome era aquele?) encarava Honovi indiferente.

— Já pegou algum animal grande? – Honovi indagou interessada.

— Um faisão de dez quilos. –  Sua voz seca era grave demais para uma menina daquela idade. Também denotava calma e controle, sendo facilmente ouvida em todo o salão. – Mas minha irmã já caçou um cervo de trezentos quilos.

Um murmúrio percorreu o salão e Honovi empalideceu. A mulher não parecia disposta a fazer mais perguntas. Reyne sorriu por dentro, observando o olhar claro e enviesado da criança. Era nítido que aquelas duas não eram irmãs de sangue. A mais velha parecia intimidada e agarrava a mão de River como uma filha se agarra à mãe. Já a pirralha encarava a tudo e todos com desconfiança, como um bicho examinando a nova jaula.

O que era curioso, já que além de não ser metade animal como todos eles, River não ficaria em nenhuma jaula naquele vilarejo.

— Temos informações o suficiente para julgar a índole de vocês – Nahuel bateu palmas, produzindo um estrondo que abalou o salão. – São boas pessoas, entendemos isso. Assim como espero que entendam que apenas uma de vocês pode viver em Hiraeth.

As duas se entreolharam, Georgie assustada como sempre, River piscando, confusa.

— Não – replicou ao homem. – Há magia ou algo do tipo operando em Hiraeth, impedindo humanos de ficar nesse território?

— Algo do tipo – Chayton sorriu brevemente. – Você entenderá quando deixar o vilarejo. Mas as duas devem decidir se você deixará sua irmã aqui, ou se continuarão a vida andarilha juntas.

Elas se olharam novamente. Deviam ter um jeito especial de se comunicar, Reyne pensou. Era uma coisa de irmãos. Ele já tinha tentado um tipo de comunicação assim com seu irmão Todd, mas parecia ser o tipo de coisa que requeria muito tempo de convivência. E claro, ser capaz de tolerar a simples presença um do outro.

— Minha irmã é tudo que me resta – disse Georgie, e Reyne nunca a ouviu falar com tanta segurança como naquele momento. – É minha única família. Jamais vou deixar que ela parta sem mim, só porque tenho a chance de viver livre dos lobisomens. Eles não vão atacá-la, mas outras coisas vão. Outras coisas já tentaram. Não posso abandoná-la, de jeito nenhum.

A firmeza em suas palavras comovia a alguns no salão, inclusive Honovi. Parecia ter esquecido que Georgie havia matado um companheiro de espécie de trezentos quilos. Não que mesmo Reyne se importasse – era apenas um animal.

— Minha irmã é tudo que me resta – River repetiu, olhando os olhos castanhos e trêmulos diante dela. – Não vou abandoná-la por nada nesse mundo, a menos que eu tenha certeza de que ela vai ficar bem sem mim. Vocês dão sua palavra de que esse lugar é seguro contra lobisomens?

Olhou para os porta-vozes. Eles se afastaram, deixando passar uma das anciãs do conselho. Era Awanata, uma senhora que devia ter nascido antes do primeiro amanhecer do mundo. A velhinha se apoiou em seu cajado e deu alguns passos até ficar diante de River, que era alguns centímetros mais alta que ela.

— Vai ficar bem aqui – chiou, estendendo a mão a River. – Sua irmã. Juro por todos os nossos anos de vida juntos.

Todos assentiram. Só os anos de vida de Awanata eram o bastante, na opinião de Reyne, mas ele assentiu também. Como membro da comunidade de Hiraeth, dava sua palavra de que Georgie estaria segura ali.

Mas ela aceitaria aquela decisão sem dizer nada?

— Reev – ela protestou, enquanto a criança apertava a mão da velha, selando o acordo. – Eu já disse que não vou te deixar. Vou embora com você.

— Eu posso me cuidar, Gee – ela respondeu. Gee? Aquilo era sério? – Mas se um bando de lobisomens vier nos atacar, não vou poder fazer nada. Eu não quero te perder também.

— Mas se me deixar aqui e for embora, é um jeito diferente de me perder! Não vê isso?

— Vejo. Mas o risco é aceitável.

— Pra você, Reev! Não pra mim!

A essa altura Georgie já estava às lágrimas. River lutava para manter a compostura, e o resto do conselho esperava calmamente que elas decidissem o que queriam da vida.

Até que algo inesperado aconteceu.

— Sei que não pertenço este conselho – Severin deu um passo à frente e limpou a garganta, empertigando-se ao ver que conseguiu a atenção que queria. Mesmo as irmãs interromperam a discussão para ouví-lo. –Nem a esta comunidade; logo não tenho o direito de falar...

— Mas está falando mesmo assim – Nahuel retrucou. – Desembuche, homem.

Severin assentiu. Reyne aguardou curioso; o rapaz da vila humana não costumava ter muita iniciativa com as pessoas de Hiraeth, mantendo-se sempre à parte de tudo para que não o considerassem mais um intruso do que já o faziam. Mas dessa vez, algo parecia ter motivado sua coragem.

— Assim como eu, sendo humano, tenho permissão para visitar Hiraeth por poucos dias, a menina poderia ter essa chance, não abandonando de todo a irmã.

— Espere – Reyne disse. – O que está sugerindo...

— Caso ela vivesse em Crestfallen como eu, creio que seria um arranjo aceitável. Não perfeito, é claro, mas penso que seria melhor do que viverem separadas para sempre, ou juntas e a mercê de inimigos.

Um silêncio profundo se fez no salão, poucos segundos antes de ele irromper num falatório acalorado. A maioria não gostava muito do perigo que Severin representava, e deixar o segredo de Hiraeth nas mãos de mais um humano era algo que não podiam permitir. Ainda mais uma criança forasteira.

Reyne desconfiava que eles estariam um pouco mais dispostos, se a irmã em questão fosse a outra. Georgie era doce e ingênua, enquanto River exalava uma hostilidade quase palpável. Queria dar o fora de Hiraeth quase tanto quanto eles a queriam fora dali.

Ela encarou Awanata. – Acha que devo confiar nele? Crestfallen é um lugar seguro?

— A questão não é a segurança de Crestfallen, mas a sua – Chayton replicou. – Irão interpelá-la de todos os modos quando chegar naquele lugar. Uma palavra errada e todos os olhos daquele lugar se voltarão para nós.

O assoalho estremeceu repentinamente. Awanata havia batido nele com seu cajado. A expressão dela continuava serena como sempre, mas seu gesto havia sido bem claro. River havia feito a pergunta a ela, não a Chayton.

— Me desculpe – ele disse.

Reyne achou bem empregado. Não tinha sentimentos mais profundos pelos habitantes de Hiraeth, de modo que não detestava Chayton particularmente. Mas não ia muito com a cara dele. Chayton era o chefe da família dos falcões, representando também todos em Hiraeth que possuíam uma família viva e ligada por sangue, e por isso se achava no direito de tomar a palavra vez ou outra.

Como se ter uma família fosse mais importante que o fato de que todos eles eram meros mortais, mas perto da morte a cada dia que passava. Reyne torceu a cara numa expressão de desprezo. Talvez estivesse errado. Talvez realmente detestasse Chayton.

— Se a menina for para a vila humana – Awanata chiou para Severin – onde ela irá viver?

— Posso conseguir um local seguro para ela – ele respondeu prontamente. Parecia já estar maquinando todos os preparativos naquela cabeça cacheada. – Seria suspeito ela vir morar comigo, já que sou solteiro e vivo com minha mãe. Mas o novo pastor da vila, ele e a esposa não têm filhos. Eles chegaram há pouco tempo em Crestfallen e estão se adaptando à vila. Com certeza atenderiam ao pedido de um dos habitantes, se ele chegasse à sua casa e pedisse para tomar conta de uma criança por um tempo.

Awanata pareceu satisfeita, embora cochichos e murmúrios ainda enchessem o salão.

— Se a menina for para a casa do pastor, que história ela vai contar?

Dessa vez a pergunta era para River, e todos se calaram. Ela apertou os lábios e então assentiu para a velha.

— Eu e minha irmã somos órfãs – disse, num tom menos seco que o de costume. Soava mesmo como uma criança comum. – Tivemos que viver como andarilhas por muitos anos. Finalmente chegamos a esse vilarejo do outro lado da montanha, onde descobrimos que parentes nossos vivem. Depois de três dias comecei a passar mal, e então nossos parentes perceberam que o ar abafado das serras irrita os meus pulmões, que já são muito fracos... Então este rapaz nos contou sobre a vila dele, que fica à beira mar. Disse que a brisa marinha podia melhorar meu estado.

Todos encararam a criança, completamente sem reação. Mesmo Reyne não sabia o que dizer.

Apenas que não tinha como um pastor recusar em sua casa uma criança que contasse aquela história. Ainda mais, do jeito que River a contou.

Awanata deu uma piscadela à garota. – E em que estado a menina vai estar?

Imediatamente River se entregou a um acesso de tosse, que cresceu vertiginosamente até seu rosto ficar rubro. Algumas pessoas do conselho chegaram mesmo a aplaudí-la.

— Ela teve problemas pra respirar quando era menor – Georgie contou, um pouco mais consolada pela ideia. – Não vai ser difícil fingir que ainda sofre deles.

— Parece um acordo perfeitamente viável – Nahuel balançou a cabeça, satisfeito. – Alguém tem algo contra a ideia do humano?

Sua fala rouca os trouxe à realidade repentinamente. Estavam mesmo criando um laço com um humano? Todos ficaram em silêncio, e Awanata respondeu por eles. Apertou novamente a mão de River e foi claudicando até parar diante de Severin. Então, um por um, cada membro a imitou, selando seu compromisso com os dois humanos.

O segredo de Hiraeth agora estava nas mãos deles.


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De volta ao quarto onde estiveram se recuperando, na casa de Reyne, as garotas estavam arrumando a bagagem que River levaria à vila. Reyne estava na porta, impaciente, enquanto ouvia o tagarelar alegre de Ceren, que insistira em vir com a mãe.

— Você matou mesmo um cervo de trezentos quilos? – ela exclamava encantada para Georgie, que só há pouco tempo descobrira que Honovi era da família dos cervídeos de Hiraeth.

— Sim – ela respondeu constrangida. – Estávamos com muita fome e precisávamos vender a carne, então...

— Isso é incrível— Ceren pulou sobre a cama. – Acha que o papai pesa trezentos quilos quando ele muda, mãe?

— Que pergunta idiota, menina – Honovi resmungou. Estava dobrando alguns casacos e vestidos novos para River. – Não mostre pras garotas o quanto você é imbecil tão cedo.

— Tasunke não vai esperar a noite toda – Reyne bufou para apressá-las.

Honovi revirou os olhos, de modo que só as meninas vissem.  Ceren soltou um risinho e pulou para a outra cama, onde River empilhava livros e pergaminhos.

— Você gosta de escrever – observou. – Deve ter visto muita coisa nas suas viagens. Você escreve tudo o que vê?

River lhe deu um olhar cúmplice. – Você não é nada imbecil – sussurrou, fazendo-a rir outra vez.

Georgie havia ajeitado outra pilha de livros dentro da mochila. – Acho que levar a espingarda do papai não é uma boa ideia.

— Não, tenho que ganhar a confiança daquela gente. – River olhava para um relógio de bolso, redondo e prateado. – Acho que já tenho tudo o que preciso.

— Agora sim – Georgie empurrou um pacotinho de ervas contra o peito da irmã. – Tudo o que precisa.

Quando a mochila ficou pronta, River vestiu um casaco velho e puído. Severin esperava  do lado de fora. Ao ver Reyne ele pegou a mochila e a pôs sobre os ombros, montando em seu cavalo.

Tasunke se aproximou devagar de uma River estranhamente rígida.

— Ele não está selado – observou.

— Ele é Tasunke, um de nós – Reyne contou. – Estava comigo quando encontramos vocês duas, e insistiu em levar você hoje. Não precisa ter medo.

— Não tenho medo – ela resmungou. – Só um pouco de vertigem.

Foi até o cavalo negro, que baixou a cabeça para ela em cumprimento.

— Agradeço a atenção, senhor Tasunke – disse ela. – Mas não posso montar em você sem uma sela.

— Não se preocupe com isso – Reyne pegou-a pela cintura antes mesmo que ela protestasse, e a ergueu no ar para pousá-la sobre Tasunke. Foi como se tivesse o ar.

— Aconselho você a voltar logo, meu amigo – ele deu um tapinha no ombro lustroso do cavalo – Ou Nahuel vai conseguir um lugar na cama da sua mulher antes de você.

Tasunke bufou bem forte no rosto dele, sujando seu rosto. Em cima dele, River lutava para se equilibrar e não olhar para o chão. Mais adiante, Honovi e Ceren ajudavam Georgie a por sua própria bagagem na carroça para Hiraeth.

Percebeu que as irmãs não haviam trocado nenhum cumprimento ou mesmo um abraço antes de se separarem. Georgie subiu na carroça e olhou para os cavalos com um ar aflito, mas River não a olhou de volta. Quando o fez, a carroça já ia longe.

Não é problema meu, Reyne pensou, voltando para dentro de casa. Severin acenou para ele em despedida e ele acenou de volta, e viu os dois partirem em direção a Crestfallen.

A casa parecia agradavelmente ampla e vazia, com apenas seu dono dentro dela.

Reyne dormiu algumas horas, relaxado pela perspectiva de pegar a estrada muito em breve. Porém, pouco antes do amanhecer, ouviu uma batida na sua janela. Shaelyn, uma das sobrinhas de Chayton, trazia um bilhete amarrado à sua pata. Reyne apanhou o recado e observou a ave magnífica voltar para a escuridão da floresta. Então aproximou o bilhete da luz de um candeeiro e leu o conteúdo, irritando-se logo depois. Ele enfiou o pedaço de papel no candeeiro e observou a chama o consumir, sabendo que nem assim podia desfazer o que estava feito.

Em vez da estrada, o destino de Reyne seria continuar por mais um tempo em Hiraeth.


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Notas finais do capítulo

A você que leu até aqui, como sempre, meu muito obrigada!
Sei que a história parece meio lenta, mas esse é o ritmo dela mesmo. Tenho mais interesse em construir a atmosfera de suspense do que criar cenas de ação (que não são meu forte aliás). Mas se ainda assim essa história estiver te entretendo, por favor comente! Mesmo que nunca tenha deixado review antes, deixe ao menos um comentário com a sua opinião, dúvida, sugestão, ou mesmo só pra me dar um olar e um incentivo. Desde já agradeço ^^
Té maisinho :***



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