A Voz escrita por AndyJu


Capítulo 1
A Voz




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/684847/chapter/1

Já se passaram dois ou três meses do início dos acontecimentos. No aniversário dos gêmeos, comprei dois MP3 com gravador de voz. Pode parecer antiguidade agora, onde tudo é movido a internet, mas foi o que as condições financeiras permitiam. Eles realmente gostaram muito, gravaram músicas, mensagens aleatórias, coisas de criança mesmo. Sempre que gravavam algo novo vinham correndo me mostrar. Às vezes, quando saíam e esqueciam o MP3 em casa, eu mesmo gravava uma mensagem dizendo que tomei conta dos aparelhos, e ouvia as coisas que meus filhos gravavam.

 Foi em um passeio da escola que começaram as gravações estranhas. Eles esqueceram os gravadores em casa. Nesse dia não chequei as mensagens e músicas. Quando voltaram para casa, ficaram rebeldes. Começaram a brigar e xingar, mas logo se desculpavam. Estranhei. Os dias foram se passando e eles ficando cada vez mais violentos e frios, mesmo que pedissem desculpas. Não faziam birra e coisas de crianças que querem chamar atenção, estava realmente mudados. Outro dia, eles esqueceram novamente os MP3. Fui ouvi-los. Para minha surpresa, não era a voz dos meus filhos, nem de alguma pessoa conhecida. Era uma voz distorcida, como aquelas que usam na televisão para disfarçar as vozes das vítimas. Não aparecia durante toda a gravação. Aquela voz só surgia perto do final, precedida por um som de interferência, e durava apenas uns dois segundos. Ela era baixa e parecia dizer uma palavra curta.

Levei os MP3 para o meu trabalho, pois não temos computador em casa. Colocando no computador do serviço, usei um programa de edição de som. Aumentei a parte da voz estranha, diminuindo um pouco o tempo. Consegui ouvir claramente a palavra “morte”. Meu sangue gelou, minha espinha arrepiou e tudo que eu consigo pensar até agora são nos meus filhos. Ainda sinto medo de perdê-los, porém eles ficaram cada vez mais frios, como se tivessem perdendo a alma. Minha esposa diz que não tem nada de errado com as crianças, que elas estão normais e muito calmas. As gravações sempre são como as primeiras, mensagens infantis e aleatórias, contando sobre coisas que aprenderam ou viram, e músicas. Sempre no final de cada gravação tem a interferência e a voz grave.

Há cinco dias quase ocorreu um acidente dentro de casa. Felipe, o mais novo, pegou o isqueiro e ia queimar a cama de Fernando, o mais velho. Ele estava deitado na cama. Poderia ter matado o irmão. Por sorte, minha esposa notou a falta do objeto e foi ver se estava com os meninos. Quando viu o garoto com o isqueiro bem perto da cama, deu uma bronca nele. O mais estranho foi que, quando ela saiu do quarto e eu entrei, Felipe não se importou com a bronca. Parecia que não tinha remorso do que quase fizera. Confortei os meninos e brinquei com eles. Nesse mesmo dia perguntei como minha esposa não notava a diferença e a frieza dos nossos filhos, ainda mais com o que tinha acontecido. Ela parecia ter se esquecido do que aconteceu. Repeti para ela todo o caso, ela ficou confusa. Perguntou se eu havia bebido, pois o isqueiro estava o tempo todo em cima do micro-ondas.

Estou escrevendo tudo isso porque acredito que, das duas, uma: ou eu estou ficando louco, ou minha esposa está tendo Alzheimer. De qualquer forma, precisamos ir ao psiquiatra. O problema é que não temos condições financeiras para isso. Caso alguém encontre essas anotações, se alguma coisa acontecer com minha família, peço que acredite em tudo que está aqui, é a mais pura verdade. Temo que algum dia eu perca meus filhos por culpa da pessoa por trás daquela voz grave, se é que posso chamar de pessoa. Não acredito em coisas sobrenaturais, mas por que alguém pegaria o aparelho dos meus filhos, editaria no computador e então deixasse parecer que tem alguém os perseguindo? Nem mesmo um louco faria isso, me admiro das crianças não terem percebido essas partes ruins no áudio. Ou será que elas perceberam?

Mais uma semana se passou e os gêmeos continuam daquele jeito. Minha esposa diz que estou delirando, mas eu tenho certeza que vi eles trocando tapas! Foi a coisa mais horripilante que vi meus filhos fazerem. Um dava um tapa no rosto do outro, esperava um segundo e retribuía a agressão. Era como se eles estivessem se divertindo com isso. Uma brincadeira de muito mau gosto. Perguntei para o pessoal da escola dos pequenos se eles não tinham notado esse comportamento estranho, e me decepcionei com a resposta. Como ninguém tinha notado essa frieza dos meninos?

Eu procurei um psiquiatra barato aqui na cidade, e tive que inventar uma desculpa para minha mulher para poder ir. Ela me xingaria se soubesse que estou gastando dinheiro com essas coisas. Eu expliquei tudo para ele, todos os detalhes, até mesmo as gravações. Ele suspeitou que eu tivesse esquizofrenia. Será que estou mesmo ficando louco? Será que toda essa situação não é real? Parece tudo tão concreto, tão realista, e ao mesmo tempo tão horrível... Se ao menos outra pessoa acreditasse em mim, eu poderia acreditar mais. Se tudo for invenção da minha mente e ninguém vê ou acredita, devo conversar com minha esposa e decidir se pagamos o tratamento ou não.

Nesses dias, tudo que sabia sobre meus filhos parece ter sido pura ilusão. As gravações são a única coisa boa que consigo ver neles. Eles conversam felizes, contam histórias, brincam... Apenas aquela voz macabra no final de cada áudio quebra minha felicidade. Parece que meus filhos perderam a alma para o MP3. Pensei bem antes de tomar essa decisão, então tirei o aparelho dos meus filhos. Mesmo que eu deixe de saber o que acontece com eles quando estão longe de casa, isso me ajudaria a ver se o comportamento estranho deles é por causa do MP3.

Foi uma decisão ruim. Eles choraram e gritaram muito, ficaram violentos e tentaram me agredir. Minha esposa apareceu às pressas, perguntando o que tinha ocorrido. Expliquei para ela sobre o MP3 e ela acalmou os meninos. Tenho medo que eles façam algo de ruim com ela... Ainda não consigo distinguir se isso é a vida real ou é apenas fantasia da minha mente. No outro dia, as crianças estavam ainda mais horripilantes. Os gêmeos estavam agindo exatamente iguais, falando palavras ao mesmo tempo, como se fossem apenas uma criança. Isso me arrepiou completamente. Eles nunca foram de agir dessa forma. Pareciam ser frios apenas comigo. Como se quisessem brincar comigo. Desde quando um pai pode ter medo de suas próprias crianças??

No trabalho, levei os MP3 novamente e imaginei que pudesse deixar aquela voz grave mais aguda, para que parecesse normal. Cada vez que chegava mais próximo ao tom normal, minhas mãos suavam. Eu estava nervoso, não por estar prestes a descobrir quem era o perseguidor dos meus filhos, mas sim porque já tinha percebido. Era a voz deles. A voz das minhas crianças. Os gêmeos tinham a voz igual, por isso não consegui identificar de qual deles era a voz, mas era de um deles, isso eu posso afirmar com certeza. Eles próprios dizendo “morte”. Mostrei para um colega, para ter certeza de que não estava delirando, e ele me confirmou. Era um dos meus próprios filhos que estava naquela gravação dizendo “morte”. Mas como eles poderiam editar cada áudio com aquela mensagem? Isso era impossível. Não estou louco, isso é realmente verdade!

Conversei com minha esposa, contando isto para ela. Ela riu, achando que eu estava brincando, me chamou de louco de novo e disse que eu precisava ir ao médico. Então mostrei a gravação que havia copiado para o meu celular. Ela ficou pálida. Estremeceu, reagindo do mesmo modo que eu no trabalho. Ela disse que isso era impossível, eu já sabia disso. Mas parece que ela não teve uma visão tão macabra dos acontecimentos quanto eu. Minha esposa disse que isso era um sinal. Um sinal que nos avisava que algo ruim estava prestes a acontecer.

Decidimos ir a um psiquiatra, eu e minha esposa. Fomos em um diferente daquele que fui escondido, para não gerar suspeitas. Conversamos com ele sobre essas coisas que andam acontecendo com nossos filhos, e ele deu o mesmo diagnóstico do outro. Esquizofrenia. Não era possível, a minha esposa também ouviu a gravação! Não tinha nada de errado com a gente. Ele sugeriu que visitássemos um psicólogo infantil para avaliar os meninos, mas não temos mais dinheiro sobrando. Vamos precisar conviver com essa tormenta. Principalmente eu, já que minha mulher não percebe a frieza dos garotos.

Nunca pensei que falaria algo assim sobre meus próprios filhos, mas eles parecem dois pequenos demônios. Não estão “fazendo arte”, mas sim me atormentando e horrorizando com as coisas que eles fazem. Eles estavam de pé na frente do quarto, no fim do corredor, quando eu subi as escadas da casa. Sorriram juntos e pronunciaram ao mesmo tempo “Vamos brincar, papai?” e deram uma risada macabra. Eu juro por tudo que é mais importante para mim que vi os olhos deles ficarem totalmente pretos. E depois disso eles apareceram subindo a escada atrás de mim. Fiquei sem reação. Quais eram meus verdadeiros filhos? Será que eu realmente estava ficando louco??

Tive um pesadelo esta noite. Minha esposa estava com o Fernando no colo, perguntando para mim onde estava o outro gêmeo. Apontei para ele, estava bem na frente dela. Ela riu, me perguntando por que eu estava apontando para lá se o menino estava do meu lado. Olhei para o lado e ele realmente estava. Acordei suando frio, minha esposa acordou também, me mandando dormir novamente. Dei um grito quando vi a sombra dos meus filhos na janela. A mulher me xingou, então eu liguei a luz. Não havia nada lá. Conversei com minha mulher, mas ela ainda estava meio dormindo, e não deu muita importância.

Passei a noite em claro. Meus pensamentos não eram outros senão meus filhos. Tudo que eu queria era saber por que eles ficaram desse jeito, o que significava a voz que sempre surgia nas gravações, por que eu estava vendo meus filhos desse jeito macabro e o que eu poderia fazer para que tudo voltasse ao normal. Quando amanheceu, tudo ficou esclarecido. Fui ao quarto dos gêmeos para acordá-los, mas eles não queriam acordar.

Mexi os corpos deles e nada. Finalmente chequei o pulso. Sem batimentos.

Na janela do quarto, meus filhos com olhos negros me observavam, rindo. Olhei para meus filhos na cama de novo, então voltei meu olhar para a janela. Estava apenas uma criança, nada parecida com os gêmeos, totalmente preta e com uma fumaça exalando de seu corpo. A boca abriu-se, e a criança sussurrou.

“Morte”.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Deixem um comentário, isso motiva o autor a escrever mais!