Jane Porter - A Flor da Amazônia escrita por Marcela


Capítulo 1
Capítulo Único




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— Não sei como ainda não se cansou disso, pai — disse uma voz feminina, cuja dona procurava por algo dentro de sua bolsa que pudesse amarrar seus cabelos.

— Nunca vou me cansar disso, Jane. É a minha vida. Gostaria muito que entendesse.

Jane pegou duas mechas de cabelo, uma de cada lado da cabeça, e, prendendo as duas na parte de trás com uma presilha cheia de dentes, olhou para o pai com um meio sorriso estampado no rosto.

— Sei que não acredita, mas eu tento entender — respondeu. — Isso tudo aqui é lindo. A Amazônia é maravilhosa, eu sei. Mas sinto falta do conforto da vida urbana.

— Se prometer aguentar essa viagem por mais alguns dias, eu prometo fazer você desistir de voltar para casa.

— Não faz muito sentido — Jane torceu os lábios —, mas tudo bem.

Seu pai sorriu contente e, com uma piscadela, indicou à filha que já voltava.

— Arquimedes! — Alguém o chamou do deque do barco, lugar em que todas as oito pessoas da expedição se encontravam.

Sozinha, Jane Porter aproveitou para apreciar a paisagem com o máximo de calma que conseguiu extrair de sua mente, mas não obteve sucesso. Ela não era capaz de se manter concentrada por muito tempo. Estavam navegando pelo rio Amazonas já fazia algumas horas e tudo o que podiam ver eram árvores, muita água e mais árvores. Um tremendo tédio, pensou a garota. Era claro que não podia negar que aquele lugar possuía uma beleza natural, porém, após a primeira hora de viagem, tudo aquilo não parecia mais tão atraente assim. Por isso, pegando o celular, Jane tentou se conectar à Internet e acabou frustrada por não possuir sinal naquele fim de mundo. Sorte que havia feito o download de um jogo antes de sair de casa, assim poderia matar as horas de viagem que faltavam com um pouco de entretenimento. Ou talvez apenas alguns minutos, pois a bateria de seu celular estava prestes a acabar.

Jane bufou. Daria tudo para voltar para casa, se enfiar debaixo das cobertas, após ligar o ar condicionado para se livrar daquele calor infernal do verão brasileiro, e ver uma maratona de filmes.

Não. Ela sabia que precisava ter mais um pouco de paciência e terminar aquela expedição, não pelo próprio prazer, mas para deixar seu pai feliz. Achava maravilhoso o que ele fazia pela Amazônia. Há anos, tentava ajudar os habitantes dali, assim como a fauna e a flora, com seu grupo de ambientalistas. E novamente pediu – Jane já tinha perdido a conta de quantas vezes ele havia feito aquele pedido – que a filha o acompanhasse em uma das expedições. Claro que ela aceitou, desta vez. O problema era que estava acostumada com a vida em São Paulo e jamais imaginou ter que passar duas semanas na floresta Amazônica com um bando de gente louca pela natureza.

Tudo era diferente ali. As pessoas eram extremamente receptivas e simpáticas, assim como o ambiente, que a recebeu de braços abertos como se dissesse: “Estive esperando por você, Jane Porter!”. Sentia que estava em outro mundo e talvez estivesse mesmo. Até o ar era estranho! Mais leve e mais.... Puro. Ah, droga, como a poluição estragava tudo!

Só que ela não se imaginava morando em um lugar como aquele. O que faria sem seu celular, seu computador e a tão preciosa Internet? Como sobreviveria sem toda aquela tecnologia e sua cama quentinha? Como era possível viver em um lugar com tantos pernilongos que queriam comê-la viva naquele exato momento? Revirando a bolsa, ela praguejou quando não encontrou seu repelente. E, durante um curto segundo de descuido, seu celular pareceu pular de sua perna com o leve balanço do barco e foi de encontro à água.

— Nãããããão! — Gritou em desespero. — Ah, não! Você só pode estar de brincadeira comigo, Amazônia!

Algumas pessoas vieram ao seu encontro com pressa e preocupação, perguntando o que havia acontecido. Seu pai apareceu logo em seguida e fitou seu rosto incrédulo.

— O que foi, Jane?!

— Meu celular... — ela apontou para a água com um beicinho nos lábios — Paguei tão caro, papai, e ele resolveu se matar, assim... Do nada.

Arquimedes Porter abriu um sorriso zombeteiro.

— Eu avisei que Amazônia não era lugar de trazer essa sua tecnologia.

Jane cruzou os braços e resolveu se sentar o mais longe que fosse possível da água. Lá se iam uns mil reais.... Seu dinheiro suado de alguns meses de trabalho como artista plástica. A vida era bem injusta quando queria. Ela estava se comportando tão bem, sendo a menina boazinha que sua mãe lhe havia ensinado ser, fazendo companhia a seu pai e tentando aproveitar ao máximo aquela viagem...

Oh...

Talvez a vida estivesse lhe dando uma lição: nada de tecnologia se quiser ver o que a Amazônia tem de melhor!

Tudo bem. Se tivesse que aproveitar do começo ao fim, ela o faria. Tudo que precisava ter no momento era paciência. Logo atracariam em algum lugar e ela terminaria de ser comida pelos pernilongos e... Tiraria proveito de todo aquele meio ambiente maravilhoso! Ah, Amazônia! Jane tinha certeza que era capaz de amá-la algum dia. Não havia trânsito, gente estressada, poluição e rotina. Se seu celular não tivesse cometido suicídio, talvez ela já estivesse amando-a.

— Pessoal, vamos nos preparar para descer. — Arquimedes anunciou com a voz animada.

Um minuto depois, o barco encontrou um banco de areia e estacionou com a ponta empinada para frente, dando um pequeno solavanco ao parar. Jane passou as alças de sua mochila por um braço de cada vez, verificou se os cadarços dos tênis estavam bem amarrados e ajeitou o cabelo espetado. Seus olhos azuis observaram rapidamente os braços. Havia erupções por toda pele por causa dos pernilongos e aquela área de seu corpo coçava absurdamente. Ela jurou nunca mais reclamar da meia dúzia de sugadores de sangue que entravam em seu quarto toda noite quente em São Paulo.

— Venha, Jane! — Seu pai a chamou.

Ele já estava em terra firme e parecia um toquinho de gente em meio a tantas árvores. Na verdade, Arquimedes era um toquinho de gente. Com seu um metro e sessenta centímetros de altura e sua roupa de cores que facilmente se camuflavam na floresta, o homenzinho não aparentava ter a idade que tinha. Beirava os sessenta anos, mas sempre dizia que sua alma possuía apenas trinta. Além do mais, seu corpo não estava tão ruim quanto imaginava que estaria naquela idade. Apesar de que o único esporte que vinha praticando ao longo dos anos era comer, Arquimedes estava bastante em forma para continuar suas expedições por muito tempo. Jane sentia orgulho ao ver o quão apaixonado o pai era por tudo aquilo.

Quando todos estavam com os pés na areia, outro grupo de pessoas apareceu para recepcioná-los, e os olhos de Jane se abriram, surpresos por, finalmente, ver tanto índio de perto. Se pudesse contar com calma, ela diria que havia mais de uma dúzia de aborígenes brasileiros, todos demasiadamente alegres por vê-los ali. Junto com eles havia apenas uma pessoa que não se encaixava no grupo indígena. Um homem caucasiano, de quase dois metros e provavelmente com idade na casa dos trinta, com cabelos castanhos na altura dos ombros e olhos tão verdes, que era possível ver sua cor de longe.

Ele estava vestido apenas com pedaço de pano marrom e surrado que cobria suas partes íntimas. Não havia nada calçando seus pés e uma faixa de tinta preta atravessava seu rosto de orelha a orelha, entre as sobrancelhas e metade do nariz. Quase dava para confundi-lo com um índio. Quase.

Jane só percebeu que o encarava, quando ele abriu um sorriso alegre para ela e deu um passo à frente para cumprimentar seu pai.

— Bem-vindo, Arquimedes! — Sua voz soou carregada de um sotaque estranho. — Espero que você e sua equipe se sintam tão à vontade quanto eu me sinto com esse lugar e essas pessoas maravilhosas.

— Já estamos nos sentindo em casa, professor Mair. — Arquimedes correspondeu ao sorriso e ao aperto de mão.

Jane levantou uma sobrancelha ao presenciar aquela cena. Ela sempre achou que os índios se cumprimentavam com uma mão erguida na altura da cabeça e com um som gutural. Por isso sentiu-se grata quando o professor Mair resolveu cumprimentar seu pai antes de todo mundo, assim ela soube que poderia apenas apertar as mãos dos índios sem causar nenhum constrangimento.

Todos disseram um “oi” bastante animado, principalmente Mair, mas Jane não disse nada. Tudo o que fez foi coçar as picadas em seu corpo e sorrir o tempo todo, fazendo sua mandíbula doer por não relaxar nem um minuto. Ela seguiu os dois grupos por entre uma trilha de areia e mato molhado, suspirando por nunca ter uma trégua dos pernilongos. Estava se sentindo como um peixe fora d’água naquele lugar. Havia muito mais verde do que seus olhos estavam acostumados a ver. Árvores gigantescas se agrupavam umas perto das outras, formando um telhado de folhas que cobria a visão do céu. Suas ramagens eram longas e finas e quase sempre se entrelaçavam ao se encontrarem. Ninguém jamais poderia discordar que era uma paisagem sensacional! Havia tantos animais! Macacos e pássaros se empoleiravam nos galhos das árvores e chamavam a atenção de Jane, fazendo-a manter seus olhos admirados fixos neles.

— É melhor olhar onde você coloca os pés, minha querida — aconselhou uma senhora que estava no mesmo barco que ela, há alguns minutos. — A trilha se torna perigosa se não prestamos atenção por onde andamos.

Jane assentiu, embora não quisesse parar de olhar para os macacos que pulavam de galho em galho, acompanhando o movimento dos humanos. Uns sustentavam seu olhar como se quisessem se comunicar com ela, mas a garota sabia que isso não iria acontecer. Tinha um pouco de medo de interagir com os animais da mesma maneira que seu pai e os índios faziam. Ao contrário dela, eles já estavam acostumados com a vida selvagem. O bicho mais feroz que ela enfrentou na vida havia sido uma barata voadora que resolveu entrar em seu apartamento um dia desses. Nunca iria conseguir chegar perto de um macaco sem se sentir ameaçada e causar um tumulto vergonhoso.

Emergindo de seus devaneios, Jane percebeu que eles estavam entrando na aldeia dos índios que os guiavam. O som de alguns instrumentos soou gostoso em seus ouvidos e ela abriu um sorriso entusiasmado ao ver, pelo menos, mais uns cinquenta aborígenes pelo local. A comunidade estava localizada em uma vasta clareira em meio à floresta e havia curumins pintados correndo de um lado a outro, rindo e brincando. Alguns índios adultos se levantaram para recepcionar o grupo de ambientalistas e Jane, claro, já que ela não era nada além da filha de Arquimedes que, em um ato impensado, resolveu se meter na Mata Atlântica.

Em meio ao falatório e às músicas, a garota tentou se enturmar sem sucesso. Ela ficou um pouco perdida com tanta gente diferente junto, tirando fato de Mair a ficar olhando descaradamente sem parar. Se fosse uma daquelas meninas bobas teria corado com certeza. Então por que estava sentindo o rosto queimar?

Droga.

Incomodada, Jane se apressou em ficar perto de seu pai. Arquimedes a olhou curioso e recebeu um sorriso amarelo como se a filha dissesse: “Vamos embora daqui logo, por favor!”. O problema era que ela vivia esquecendo que aquele era apenas o primeiro dia de duas longas semanas de vida selvagem.

Dez minutos mais tarde, todos foram conduzidos às malocas para deixarem seus pertences e se acomodarem. Jane começou a tossir, assim que entrou, devido ao terrível cheiro de fumaça. Alguém bateu de leve em suas costas para que desafogasse.

— Você se acostuma em poucos dias.

A garota olhou para cima e deu de cara com Mair. Ele sorria de um jeito que estava começando a deixa-la irritada.

— Acendemos fogueiras embaixo das redes em que dormimos para espantar os mosquitos e nos aquecer — ele disse como se respondesse uma pergunta que Jane não havia feito em voz alta.

— Aquecer? — Ela o fitou, incrédula — Já não faz calor suficiente por aqui?

O professor se inclinou para chegar mais perto de seu ouvido direito.

— É isso ou os insetos.

Ah, legal. Agora Jane teria que escolher entre morrer queimada ou ser comida viva.

Cansada, jogou sua mochila no chão de terra batida, perto da rede que foi reservada a ela, e se deitou. Quando se viu praticamente sozinha – tirando algumas índias adultas que ainda se encontravam ali dentro –, aproveitou para fechar os olhos e, quem sabe, até dormir por alguns minutos. Talvez seu pai não ficasse muito feliz com aquilo, mas quem poderia culpa-la? Jane não havia nascido para viver uma vida selvagem.

Demorou, mas a garota dos olhos azuis percebeu que jamais conseguiria nem ao menos cochilar com tanta música vinda do lado de fora da maloca. Os ambientalistas pareciam adorar toda aquela animação indígena, inclusive Arquimedes, uma vez que era possível diferenciar sua voz em meio a toda aquela gente.

Depois de levantar, Jane fuçou sua mochila e sorriu ao encontrar o caderno de desenhos que a acompanhava em todos os lugares. Ela folheou até encontrar uma página em branco e iniciou seu ritual antes de começar um novo desenho. Prendeu o cabelo em um coque, dobrou as pernas, sentando-se como índio – quanta ironia! –, apesar de estar em uma rede, e mordiscou a ponta de um lápis que havia achado no fundo da bolsa, pensativa.

Uma menina entrou saltitando e acenou. Jane devolveu o aceno e amplificou seu sorriso. Era isso! Desenharia aquela garotinha toda pintada em vermelho e preto. O único problema era que a maloca a privava de luminosidade suficiente para realizar a tarefa. Nada que um banquinho do lado de fora não ajudasse.

A indiazinha a seguiu como se tivesse conhecimento do propósito a que havia sido destinada e se juntou a um grupo de curumins que brincavam com alguma coisa que Jane não perdeu tempo tentando descobrir o que era. Ela se sentou em um pedaço de madeira e fixou os olhos na pequena índia, a fim de memorizar suas feições. Quando fez o primeiro traço no papel, sentiu como se fizesse muito tempo que não desenhava, o que não era mentira. Nem podia se lembrar da última vez que havia feito aquilo que mais gostava. Quanto de tudo o que amava a vida urbana estava roubando de si? Não tinha tempo para mais nada, a não ser para a faculdade e o trabalho.

Desenhar era libertador! Era como fazia para se desligar no mundo quando queria. E foi isso o que aconteceu. Jane se afundou em um devaneio e, ao cair em si, percebeu que estava praticamente finalizando o desenho da indiazinha. Correndo os olhos pelo papel, ela sorriu contente por se dar conta que ainda conseguia fazer desenhos realistas.

Estava tão desconectada do que acontecia a sua volta que mal pode notar os curumins que se aproximavam sorrateiramente e arrancavam o caderno de desenhos de suas mãos.

— Ei! — Gritou quando elas começaram a correr — Voltem aqui, suas pestes!

A gritaria e a perseguição chamaram atenção dos outros índios que olhavam aturdidos para a cena que se passava. Jane provavelmente teria se envergonhado da situação, mas já estava furiosa por ter perdido seu celular para o rio. Não iria perder mais nada. Não para um bando de índios selvagens e sem educação. Ora, como tiveram coragem de roubar algo tão precioso dela?

A única certeza que tinha era que aquilo não iria ficar assim. Por isso, pôs-se a correr para tomar seu pertence de volta. O problema era que eles eram muito mais rápidos e conheciam a aldeia melhor que ela. Jane quase caiu uma dúzia de vezes e bufou todas elas. Acelerando o máximo que pôde, a garota se aproximou, segurou o braço do menino que estava com o caderno e o pegou de volta.

— Ahá! — Exclamou vitoriosa — Vocês não são tão rápidos quanto pensam.

Enquanto se vangloriava por ter recuperado o que era seu, a dona dos olhos azuis mal percebeu quando o curumim começou a chorar copiosamente, chamando ainda mais a atenção dos outros índios da tribo. Confusa, ela rolou os olhos por todas as pessoas e sua expressão se tornou desesperada ao notar que ninguém estava feliz com o que havia acabado de acontecer. Muito menos o seu pai.

O que faria? Correr talvez fosse sua melhor opção no momento. Desconcertada e envergonhada, Jane deu meia volta e obrigou seus pés a serem mais rápidos que poucos minutos atrás. Precisava sumir daquele lugar. Ela ouviu alguém a chamar, mas achou que era melhor não parar para ver quem havia sido.

Correu tanto – mais do que um dia achou que seria capaz – que se deparou com um riacho de água cristalina. Se não fosse por seu coração estar batendo tão rápido, Jane teria admirado a paisagem com calma e teria se encantado com toda aquela vegetação. Quase não era possível ver o céu, pois as árvores possuíam galhos tão longos que suas folhas de um verde sem igual cobriam o espaço como se fosse um telhado natural.

Diversas pedras cobertas com musgo estavam espalhadas ao redor das margens do riacho e subiam na parte mais alta do chão, formando uma pequena cascata.

Jane deu alguns passos, sentou-se em uma dessas pedras, colocou seu caderno de desenhos na grama e retirou os sapatos. Quando tocou a água gelada com as pontas dos dedos de um pé, uma sensação estranha a pegou de surpresa e, antes que pudesse notar, lágrimas salgadas começaram a inundar seus olhos, rolando pelo rosto cansado.

Qual seria o motivo daquele choro? Arrependimento? Tristeza? Alegria ela tinha certeza que não era. Talvez fosse a angústia de saber que provavelmente jamais conseguiria se adaptar aos índios e à aldeia por, pelo menos, quinze dias. E o que faria se não conseguisse se enturmar? Ficaria enfiada na maloca com os pernilongos e o calor ou daria um jeito de fugir?

— Vejo que encontrou meu santuário — uma voz familiar soou mais próximo do que Jane gostaria.

Olhando para cima, percebeu que o professor Mair a olhava com admiração e curiosidade. Jane precisou manter a concentração em seu rosto, para que não descesse os olhos nas partes mais baixas e pouco cobertas do homem. Como ficou sem resposta, ele se apressou em sentar-se em uma pedra ao lado da garota.

— Você deve estar se perguntando “o que esse homem estranho está fazendo aqui, vestindo apenas um tapa-sexo?”, estou certo? — Ele sorriu.

Jane levantou uma sobrancelha.

— Na verdade, está.

O sorriso do professor se alargou.

— Vivo com os índios há três anos, mas sinto que faço parte desta aldeia desde que era criança. — Apesar de ninguém ter perguntado, ele começou a explicar — Todos me tratam como se eu fosse um deles. É bem legal, sabe?

A moça dona do par de olhos azuis deu de ombros. O que poderia responder? Claro que ela não sabia como era legal. Ninguém ali havia sido educado o bastante para tentar enturmá-la ao considerar que talvez ela nunca fizesse parte da vida indígena. Ninguém... Além de Mair.

— Tenho certeza que você aprende rapidinho tudo o que precisa fazer e saber para sobreviver a esses costumes e a essa vida selvagem. Só é preciso ter paciência.

Por algum motivo – Jane provavelmente nunca saberia dizer qual havia sido – sentiu que poderia se abrir com aquele homem.

— Decidi vir a essa expedição porque meu pai passou a vida me convidando e eu nunca liguei — começou receosa — Agora que minha mãe.... Bem, achei que ele precisasse de mim, desta vez.

O professor ainda estava sorrindo quando falou novamente.

— Fez bem — uma expressão de orgulho se desenhou em sua face.

— Ele ama esse lugar, entende? — Jane rolou os olhos — Quer dizer, claro que você entende.

Mair gargalhou.

— O que foi? – A morena se sentiu encabulada com a risada dele.

— Você é encantadora, Jane Porter.

Jane perdeu o ar. Como ele conseguia ser tão transparente e direto daquele jeito?

— Ora, até parece que nunca viu gente da área urbana e da cidade grande!

O homem se colocou em pé e se aproximou ainda mais da garota.

— Vi sim — respondeu — Mas nunca encontrei alguém tão.... Diferente.

Oh.... Diferente? O que ele queria dizer com aquilo? A cabeça de Jane estava girando. Mair estava dando em cima dela ou o quê?

— Você se parece como uma flor bem pequenina tentando achar seu lugar em meio a tantas outras flores — ele sorriu novamente — Ah, Ibotira...

Antes que pudesse perceber, o professor estava com uma mão em seu rosto, fazendo movimentos circulares com o polegar em sua bochecha rosada para secar as últimas lágrimas que haviam caído.

— Seus olhos.... Há quanto tempo não vejo olhos assim! Cheios de paixão por ser quem você é e pelo mundo. — Disse — Consigo ver que ainda está assustada com o novo, mas garanto que vai amar a Amazônia, Jane Porter.

— Professor Mair...

— Sim?

— Como é que a gente faz para tomar banho por aqui? — Ela quase se bateu por perguntar a primeira coisa que veio em sua cabeça, a fim de desviar o assunto.

O homem pareceu não perceber a mudança brusca da conversa.

— Está vendo esse riacho aí? — Quando a garota assentiu ele continuou: — É nele que nos lavamos.

Jane parou para pensar.

— E é um banho.... Coletivo? — Perguntou desesperada.

— Na maior parte das vezes, sim. — Mair achou graça em seu questionamento — Mas posso te trazer aqui à noite, quando eles estarão em festa, todos os dias.

Aquilo parecia legal. “Bem melhor que tomar banho na companhia de um monte de índio pelado”, pensou a garota. O único problema era que o professor estaria com ela e aquilo não pareceu agradá-la. Mair até era cativante e bem simpático, mas ainda parecia um pouco esquisito por gostar de viver aquela vida. Ainda mais usando apenas um pedaço de pano para cobrir as partes íntimas.

Preocupada, Jane se prontificou a falar:

— Você tem que me prometer que não vai ficar olhando.

Arregalando os olhos com a surpresa do pedido, o homem respondeu:

— Claro. Jamais tive essa intenção, Ibotira.

A morena se levantou em um pulo e sorriu.

— Combinado então! — Pegando o caderno, ela completou: — E meu nome não é Ibotira, professor.

Os cantos da boca de Mair subiram.

— Eu sei, mas combina muito com você.

***

Quando a noite caiu e salpicou o céu preto com milhares de pontinhos brilhantes, Jane reparou que nunca em sua vida tinha visto uma quantidade tão grande de estrelas assim. Ela até cogitou a ideia de se deitar em algum canto do lado de fora da maloca para observar aquele cenário maravilhoso. E esta ideia talvez tivesse se concretizado, se não fosse o fato de que precisasse desesperadamente de um banho.

Com suas roupas limpas, uma toalha e uma lanterna em mãos, esperou pelo professor Mair por mais de uma hora, mas, assim que os índios acenderam uma fogueira e começaram a dançar em volta dela, o homem apareceu ao lado de Jane com uma expressão de preocupação.

— O que aconteceu? — Ela perguntou ao notar o clima tenso.

— Vamos precisar ser rápidos, tudo bem? — Pediu — Não vai ser legal se perceberem que você e eu sumimos ao mesmo tempo.

Oh.

Jane não havia pensado naquilo. Não tinha passado pela sua cabeça a possibilidade de alguém imaginar que ela e Mair aproveitaram a festa para escapar e se divertir juntos. Assentindo e dando meia volta, a garota adentrou a mata, seguida pelo professor, e se apressou em terminar o que tinha que fazer.

Para quem estava acostumada a tomar banhos demorados e com água quente, aquela experiência estava se mostrando extremamente desafiadora. Teria que se banhar com rapidez em uma água assustadoramente gelada. Jane até imaginou Mair falando: “Você se acostuma logo”. Ah, como se fosse fácil!

— Não tem nenhum bicho na água, não é? — Ela arriscou perguntar, mesmo não tendo certeza se gostaria de saber.

— Nenhum que possa ser ameaçador — o professor respondeu com um sorriso. — Vou virar de costas. Pode ficar à vontade.

Jane tentou sorrir para encorajar a si mesma e, posicionando a lanterna em uma pedra para ter iluminação suficiente, tirou sua calça e blusa, ficando apenas com as roupas íntimas. Jamais teria coragem de ficar nua fora d’água, no meio da floresta e com um homem enorme perto. Ao colocar os pés na água, sentiu que iria morrer congelada. A sensação de estar sendo esfaqueada a atingiu em cheio quando mergulhou por completo. Era um pouco aterrorizante ficar ali à noite. E se algum bicho resolvesse dar as caras?

Tentando não pensar muito, Jane pegou o sabão em pedra que Mair havia furtado para ela e o esfregou nos cabelos e no corpo. Ela não queria nem imaginar a falta que seu xampu e condicionador fariam. Então, retirando a calcinha e o sutiã para que pudesse lavá-los, se apressou para terminar logo.

— Está tudo bem aí? — Mair perguntou.

— Sim! E não se vire! — Gritou Jane.

— Não vou, Ibotira.

A maneira com que havia respondido fez com que a garota se sentisse mal por desconfiar tanto dele. O que poderia fazer? O professor era um estranho que havia resolvido viver primitivamente em meio aos aborígenes. Jane não podia julgar, mas também não se deixaria levar pela sua simpatia.

— Já terminei. — Anunciou alguns poucos minutos depois.

— Certo. Vou continuar de costas e fechar os olhos.

A dona dos olhos azuis sorriu e começou a sair da água. Porém, assim que colocou o primeiro pé na pedra, algo agarrou seu tornozelo que ainda se encontrava imerso e fez com que ela se desesperasse.

— Ah! Socorro! — Gritou — Professor!

— O que aconteceu?! — Mair instintivamente virou a cabeça e deu de cara com a imagem pouco iluminada pela lanterna de Jane nua. Encabulado, voltou a olhar para o outro lado.

— Tem alguma coisa no meu pé!

Em meio ao desespero, ela nem percebeu que o homem havia acabado de vê-la do jeito que havia vindo ao mundo. Quando a coisa em seu tornozelo se mexeu, Jane saiu correndo até esbarrar em Mair.

— Tire esse bicho enorme daí! Tire, por favor! — Choramingou.

O professor, tentando focalizar seus olhos verdes somente do joelho de Jane para baixo, soltou uma risada ao ver o “bicho enorme” que a havia agarrado.

— Por que.... Por que está rindo? — A morena fez um beicinho com o lábio inferior.

— Porque é só uma alga.

Quando a ficha caiu, a garota se sentiu extremamente envergonhada. Os pelos do seu corpo estavam todos eriçados e um calor atingiu seu rosto, queimando-a como brasa. Havia feito escândalo por nada e, ainda por cima, estava pelada e agarrada em um pseudo índio.

— Feche os olhos! Feche os olhos! — Esbravejou.

— Estão fechados, Ibotira! — Mair respondeu assustado — E está escuro! Não consigo ver nada!

Jane suspirou, engolindo o choro que ameaçou escapar e envergonhá-la ainda mais. Tudo o que precisava era pegar suas roupas e....

— Ah, não!

— O que foi agora? — O professor estava começando a ficar nervoso.

— Qual é o lance dessa Amazônia? — Esbravejou — Ela gosta de roubar as coisas dos outros ou o quê? Lá se foram minhas roupas íntimas mais confortáveis.

Cansada e envergonhada, Jane não havia percebido que, em meio ao seu desespero por causa de uma alga maldita, havia soltado seu sutiã e sua calcinha, deixando com que a água os levasse embora.

Ainda de olhos fechados, Mair se colocou em frente à garota e, assim que percebeu que não olharia para ela, foi pegar a lanterna e as roupas que sobraram. Dando um jeito de tapar os olhos e impedir a visão, ele jogou as vestes o mais próximo que pôde de Jane.

— Vista-as logo. Precisamos ir.

***

O dia seguinte amanheceu tão quente quanto havia terminado o anterior e trouxe a Jane a sensação de que não ter dormido quase nada; o que não era mentira. Quando se colocou sentada na rede, percebeu que era a única que ainda estava dentro da maloca. Milhares de novas picadas de pernilongos haviam brotado em seu corpo e coçavam absurdamente. De que adiantavam as fogueiras e a fumaça então? Ela estava prestes a tirar algumas satisfações com Mair, quando ele apareceu com um sorriso amarelo e com algumas cascas de banana em mãos.

— Trouxe para você — disse.

Jane ergueu uma sobrancelha.

— Não sei qual é o costume de vocês por aqui, mas a gente come o que tem dentro, professor.

O homem riu.

— Seu café-da-manhã está lá fora. Isso aqui é para as picadas.

Assim que Mair começou a explicar que as cascas, se esfregadas na pele, na região das picadas de pernilongos, serviam para aliviar a coceira, Jane sentiu o rosto queimar. Era a terceira vez que aquilo acontecia e em menos de dois dias. Não estava acostumada a se sentir tão encabulada daquele jeito. Porém, ansiosa por se livrar da coceira o mais rápido possível, estendeu os braços e as pernas, fazendo o professor rir mais uma vez. Ele a ajudou a esfregar as cascas pelo corpo, a fim de que pudessem terminar logo e começar as tarefas do dia.

— Que horas vocês acordaram? — Perguntou Jane — Levantei e já não tinha mais ninguém aqui.

— A gente costuma levantar um pouco antes de o dia clarear. — Mair explicou — Já fomos pescar e colher algumas frutas. Separei um pote com sementes e mel para você.

A garota abriu um sorriso animado.

— Com uma dieta dessas, vou perder todos esses quilos extras mais rápido que nunca. — Brincou Jane, apertando a pele da região da barriga.

Os cantos dos lábios do professor se curvaram para cima.

— Não estou vendo nada aí — disse, ainda com a imagem embaçada da garota na noite anterior na cabeça. — Mas se realmente quiser perder peso, podemos dar uma volta.

Disposta a ficar o máximo possível longe dos índios e de seu pai, Jane aceitou e, em menos de dez minutos, após comer e vestir uma saia verde, comprida e fresca e uma blusa amarela, estava com Mair em uma trilha, onde podiam ter uma visão ainda mais bonita de toda floresta amazônica. Alguns macacos se empoleiraram nos galhos mais próximos, curiosos e interessados nos humanos que caminhavam por ali.

— Quer fazer algo bem louco? — Perguntou o homem com certa animação.

— Bem louco... — a morena riu — Achei que não usasse esse tipo de vocabulário.

Mair estava subindo em uma árvore, cujo tronco se curvava próximo ao chão, quando respondeu:

— Eu só vivo com os índios, Ibotira.

— Não significa que não tenha se tornado um. — Brincou Jane. — Ei, o que está fazendo?

— Algo bem louco — falou — E aí, você vem ou não?

— Subir nessa árvore gigante? Nem a pau!

Estendendo uma mão, o professor sugeriu segurá-la e puxá-la, mas Jane continuou no chão.

— Estou de saia! Como quer que eu faça isso? — Quando o homem se inclinou ainda mais, a morena tapou os olhos — Ah! Por que você não colocou uma calça?! — Gritou.

Mair havia se esquecido completamente que estava vestindo apenas um pedaço de pano que não cobria praticamente nada. Ele corou e abriu um sorriso amarelo.

— Bem, agora estamos quites.

Jane abiu um espaço entre dois dedos para espiar.

— O que quer dizer com... Ah! – Ao se dar conta do que ele estava falando, esbravejou: — Eu mandei você ficar com os olhos fechados!

— Desculpe-me, Ibotira, mas você gritou por socorro. Foi instintivo.

Encabulada, Jane tentou esquecer a situação constrangedora e aceitou a mão que ainda estava estendida para ela.

— Não me deixe cair, pelo amor de Deus!

— Deixe os sapatos no chão. – Sugeriu — Vai se sentir mais segura.

Pensando na possibilidade de rezar um Pai Nosso, a garota fez o que o professor disse e, quando viu, já estava a dois metros do chão.

— Ah, meu santinho, vou cair, vou cair!

— Confie em mim, Ibotira.

— Esse é um pedido difícil, professor. — Respondeu — Não confio nem em mim mesma.

Mair riu.

— Demorei em pegar prática, também. — Disse com um sorriso largo, que fez aparecer pequenas rugas nos cantos de seus olhos — Tenho certeza que logo estará se empoleirando nesses galhos como os macacos.

A garota ergueu uma sobrancelha. Ele havia feito uma comparação? Era isso mesmo? E por falar em macacos...

Jane se desesperou.

— Professor... — chamou-o em um sussurro, com medo de atrair demais a atenção dos animais. — Tem certeza que é seguro ficar por aqui?

— Claro. — Ele passou para outro galho, ao responder — É só se segurar bem e....

— Não! – A morena quase gritou, mas voltou a falar em baixo tom. — Quero dizer... E os macacos?

O homem já havia sorrido incontáveis vezes desde que Jane o viu pela primeira vez, mas aquele sorriso que tinha acabado de se formar em seus lábios não eram dignos de comparação. Ela nunca, nunca em sua vida, havia visto algo tão radiante assim.

— Os macacos são magníficos, Ibotira — falou com paixão — Podemos nos aproximar com calma e então mostrarei a você como conquistá-los.

Em menos de dez segundos, um dos tais magníficos macacos apareceu na árvore ao lado. Mair emitiu um som gutural para chamá-lo e acabou assustando Jane, que escorregou. Ela conseguiu se segurar em um galho para que não caísse e gritou, fazendo o animal fugir. De repente, tentando ignorar o medo de despencar e acabar no chão, a garota viu alguém voar em sua direção e pegá-la com firmeza. Tudo aconteceu muito rápido. Um braço forte a segurou pela cintura e a apertou, fazendo com que não escorregasse e permanecesse firme.

Optando por ficar com os olhos fechados até que seus cabelos parassem de voar e ela voltasse a se sentir segura, Jane se agarrou em quem a havia salvado e tentou manter as lágrimas de desespero longe dos dutos lacrimais. Não iria chorar novamente. Em menos de meio minuto depois, sentiu os pés tocarem o chão de terra e grama. Suas pernas ainda estavam bambas quando abriu os olhos.

— Você está bem? — Uma voz familiar perguntou. — Ia ser um tombo e tanto.

Jane olhou para Mair e notou que ele estava sorrindo. Como se aquilo fosse muito divertido! Com uma vontade imensa de soca-lo, a garota respirou fundo, ajeitou suas roupas e procurou pelo sapato que havia ficado em terra firme.

— Ei, aonde você vai?

Virando-se abruptamente, Jane apontou os dedos para a cara assustada do professor.

— Escute aqui, homem-macaco! Eu não pedi para estar aqui nesse lugar estranho, com essa gente estranha, fazendo coisas estranhas, tudo bem? — Vociferou. — Eu poderia ter morrido e tudo por causa de um macaco estúpido!

De todas as reações que Jane imaginou que presenciaria, a reação que ele teve foi a única que não passou por sua cabeça. Não houve briga, nem nenhuma discussão se quer. Mair apenas se prontificou em fazê-la fechar a boca, tapando-a com uma mão e segurando seu corpo com a outra.

— Shhhh! — Pediu para que a garota ficasse quieta com um sussurro em seu ouvido.

Precisando ignorar o clima tenso que tinha se formado, Jane e Mair seguiram com cautela e silêncio em alguma direção que a garota não fazia ideia onde os levaria. Estava prestes a perguntar o que havia acontecido, quando ouviu vozes. Era aquilo. E eram reais. Ela e o professor se esgueiraram e tentaram se esconder na mata para poder escutar o que estava sendo dito com mais clareza.

Jane encarou o rapaz ao seu lado ao perceber que uma das vozes vinha de Clayton, um dos ambientalistas, amigo de seu pai. Ele estava conversando com outros dois homens e parecia bastante preocupado com alguma coisa. Enquanto falava, seu bigode subia e descia com o movimento frenético de sua boca e suas mãos gesticulavam em todas as direções. Quando ele se inclinou para pegar alguma coisa no chão, Jane quase gritou e o coração de Mair parou por um segundo.

 Nenhum dos dois jamais havia visto uma espingarda tão grande. Seu cano, pela maneira com que Clayton manuseava, parecia quase atingir os olhos assustados dos que observavam a cena escondidos.

— A gente precisa avisar alguém sobre isso, professor — sussurrou Jane.

Mair apenas assentiu com um leve movimento da cabeça. Ele não arriscou comentar mais nada, pois não queria tirar conclusões precipitadas, uma vez que Clayton fazia parte da equipe de ambientalistas de Arquimedes. Pelo que conhecia do pai de Jane e já tinha ouvido falar dele, sabia que o senhor Porter era um homem simples, capaz de dar a vida para proteger a natureza. O amor que tinha pela Amazônia era tão, mas tão grande, que jamais se comprometeria ou comprometeria qualquer pessoa trazendo alguém que pudesse fazer mau uso daquela espingarda.

Mas o professor, apesar de ter deixado a vida urbana há alguns anos, sabia que armas de fogo não eram boa coisa. E a impressão que teve de Clayton, assim que o viu descendo do barco, também não havia sido boa.

— Mair? — Jane o chamou com a voz trêmula — Professor? Precisamos sair daqui.

Ao se dar conta de que estava parado e quase à vista dos outros homens, Mair pegou a mão direita da garota ao seu lado e se prontificou a dar o fora daquele lugar.

***

  O resto do dia passou mais devagar do que Jane queria e esperava, assim como os cinco dias seguintes. Quando acordou, percebeu que todas as partes do seu corpo doíam, que seu cabelo estava ensebado e sua pele mais queimada e picada que o normal. Precisava urgente de protetor solar e mais cascas de banana. E, ah, um xampu e um condicionador, claro.

Estava grata por não possuir um espelho, pois, se visse o estado em que seu rosto se encontrava, não conseguiria manter um bom humor pelo resto do dia. Não que bom humor se encontrasse aos montes por ali, principalmente entre ela e o professor Mair, que tentava disfarçar o máximo que podia toda sua preocupação a respeito de Clayton e sua espingarda.

Ambos sabiam que coisa boa não viria, mas, mesmo assim, decidiram não alarmar ninguém sem provas concretas. Tentaram ocupar seu tempo ajudando a aldeia e se distraindo. Jane conseguiu terminar três desenhos em seu caderno, de tanto que precisou manter a mente calma, e Mair, quando não estava caçando, sumia por tantas horas, que acabava deixando a garota preocupada e sem companhia. Não que ela não tivesse tentado se enturmar novamente, mas sucesso era o que estava longe de conseguir. Tinha consciência de que era a pessoa mais estranha naquele meio, por isso seu caderno de desenhos havia se tornado sua companhia mais fiel.

Porém desenhar estava se tornando uma tarefa entediante. A dona dos olhos azuis ainda não havia decidido se passaria o resto do dia na rede, servindo de comida para os insetos, ou se sairia para dar uma volta, quando Mair apareceu na porta da maloca com um sorriso no rosto bastante convidativo.

— Está ocupada? — Perguntou e, logo em seguida, se deu conta de que aquela havia sido a pergunta mais idiota que havia feito. — Claro que não está ocupada. Venha comigo, que eu quero te mostrar algo.

A empolgação dele era tão grande, que não teria como ficar parada. Jane só teve tempo de pegar algo para amarrar o cabelo e saiu correndo atrás do homem. Eles não tiveram tempo de conversar sobre nada, pois Mair estava com muita pressa para chegar fosse lá onde quisesse.

— Professor! — Jane gritou — Vá mais devagar!

O fato de Mair sempre estar correndo irritava Jane mais que qualquer coisa. Ela não estava acostumada a correr tanto daquele jeito, principalmente sem os sapatos adequados. E, embora ele tivesse diminuído a velocidade, a garota ainda teve que correr para alcançá-lo.

Estava prestes a discutir mais uma vez com o homem, quando ele pediu para que ela parasse e não fizesse barulho algum.

— Por quê?

— Shhhh! — Mair colocou o dedo indicador perante ao nariz, pedindo novamente para que ficasse quieta.

Pegando uma das mãos de Jane, o professor a puxou para perto da beira do rio e ficou de cócoras, fazendo-a acompanhar seu movimento. A vontade da garota de perguntar o que eles estavam fazendo e esperando era tanta, que ela quase abriu a boca novamente, mas se lembrou que deveria ficar quieta. Àquela altura, já confiava o suficiente em Mair para deixar de ter tanto medo da Amazônia, por isso, tinha certeza que não precisava desconfiar do que quer que fosse que ele quisesse lhe mostrar.

Ao perceber a que postura do homem ao seu lado havia ficado mais rígida, Jane rolou os olhos para água e sua expressão passou de curiosidade para admiração e espanto.

— Ah, meu santinho! — Exclamou com o coração batendo mais rápido. — Aquilo é.... É....

— É, sim, Ibotira. — Mair sorriu. — É um boto-cor-de-rosa.

Com metade do corpo fora da água, o boto se aproximou dos dois humanos. Sua boca estava aberta de uma maneira que parecia que esboçava um sorriso.

— Eu achei que eles eram somente uma lenda. — Jane sentiu todos os pelos de seu corpo se eriçarem.

— Felizmente, não são. — Disse o homem — E este é Nácar, meu amigo boto.

A garota dos olhos azuis olhou para ele com uma sobrancelha erguida.

— Amigo? O que quer dizer com isso?

O professor se aproximou ainda mais do animal e passou as mãos pela sua cabeça.

— Quer dizer que somos amigos, como qualquer outro ser humano e bicho. — Explicou — Exceto pelo fato que a gente meio que.... Se entende.

Jane soltou uma gargalhada.

— Se entendem! Como isso é possível?

— Você já teve um animal de estimação, Ibotira? Qualquer um, gato, cachorro...?

— Eu tive um gato, aos dez anos.

Sem deixa-la ter tempo para resgatar memórias nostálgicas, Mair olhou para Nácar e sorriu mais uma vez.

— Tenho certeza que, quando falava com seu gato sobre comida, banho ou qualquer outra coisa, ele entendia, certo? — Com um aceno positivo da cabeça da garota, continuou: — Então... Nácar me entende assim também.

— Ele sabe quando é hora de tomar banho e... — Percebendo a besteira que estava prestes a falar, Jane se calou. — Ah, esquece.

O professor riu.

— Mais ou menos isso — respondeu — Mais cedo eu o avisei que voltaria e traria alguém para conhecê-lo. Você precisava ver o que ele fez.

— O quê?

— Mergulhou e saltou várias e várias vezes.

— Não entendi. — Jane suspirou — Ele ficou contente?

— Sim, Ibotira. Os golfinhos são seres muito inteligentes — disse — Por isso ele apareceu sozinho. Já sabia que viríamos.

A garota abriu o primeiro sorriso do dia.

— Posso.... Posso tocá-lo?

Mair assentiu e pegou sua mão com delicadeza e a colocou sobre a boca do animal.

— É gelado. — Jane riu.

Quando na vida ela havia imaginado que chegaria tão perto de um boto? Ou melhor, que colocaria as mãos em um? Aquela era uma sensação indescritível. Se tivesse uma lista das dez melhores coisas que havia feito na vida, aquela provavelmente estaria em primeiro lugar.

De repente, Nácar emitiu um som característico dos golfinhos e o professor Mair perguntou:

— O quê? Tem certeza?

— O que foi? — Jane se virou abruptamente para o homem, mas ele a ignorou.

— Será? Eu acho que ela não tem coragem.

O sorriso sapeca que brincava nos lábios de Mair e os sons agudos de Nácar deixaram a garota zonza, como se estivesse entre dois russos que falavam coisas que ela simplesmente não conseguia entender.

— O que vocês dois estão conversando?

O homem finalmente a olhou.

— Nácar disse que quer te levar para um passeio. — E diminuindo o tom da voz, como um sussurro, completou: — Ele te achou muito bonita.

Incrédula, Jane soltou um riso sarcástico.

— Até parece que ele disse isso! — Com receio de que o boto realmente pudesse ouvir e compreender o que os humanos diziam, ela também sussurrou: — E eu não vou a passeio algum. Conheço a fama dos golfinhos, principalmente dos botos.

— Que... Ah... — Mair pareceu entender o que ela estava querendo dizer. — Fique tranquila. Nácar é um boto muito educado.

Educado ou não, só de pensar em “dar um passeio” com aquele animal, Jane começava a tremer da cabeça aos pés. Porém, quando mais teria uma oportunidade daquelas? E tinha certeza que Mair queria apenas que ela se divertisse e tivesse uma experiência maravilhosa naquelas duas semanas de expedição.

— Está bem, mas fique sabendo que eu sei lutar muito bem, caso aconteça alguma coisa fora do normal.

Com um sorriso, o professor concordou.

— Certo, me dê sua mão.

Jane não precisou fazer muito esforço para subir nas costas de Nácar – o animal era grande o suficiente para acomodá-la em seu dorso – e, quando sentiu que estava bem segura, perguntou:

— Onde ele vai me levar?

— Deixe que ele te mostre, Ibotira.

Sabendo que não deveria pensar muito, Jane fechou os olhos, ignorando a sensação de medo e o gelo da água que agora cobria seu corpo até a cintura. Era aterrorizante não enxergar praticamente nada do que havia embaixo da água. Era aterrorizante estar sobre um animal que ela nunca tinha visto ao vivo na vida. Era assustador fazer um passeio com ele, por um lugar que ela não fazia ideia de onde era.

Mas o boto apenas deu algumas voltas pelo rio, tomando muito cuidado para não derrubar nem molhar a garota. Parecia que horas haviam se passado até que Jane começou a se sentir segura e tentou aproveitar a sensação de estar no rio Amazonas. Certamente, sairia dali praticamente toda encharcada, mas o que importava? Ela estava nadando com um boto-cor-de-rosa! E a visão que tinha das árvores que a rodeavam era incrível. Era tudo muito, muito verde. Por um momento, a garota sentiu pena das pessoas que moravam em selvas de pedra, assim como ela. Praticamente a maioria delas nunca iria passar por aquilo. Subir em um boto e nadar pelas águas do rio Amazonas, vislumbrando toda aquela floresta magnífica era privilégio de poucos. Parecia até fazer parte de um sonho.

Pingos gelados de água molharam seu rosto todas as vezes que Nácar fez curvas e, na última delas, Jane quase perdeu o equilíbrio, mas o animal se prontificou em não deixá-la cair. Por muito pouco, aquele passeio não se tornou um desastre.

Ao botar os pés em terra firme novamente, a dona dos cabelos cor de chocolate teve que se sentar na areia para tentar fazer a respiração voltar ao normal.

— E aí, o que achou? — Mair perguntou, sentando-se ao seu lado.

— Acho que.... Essa é uma daquelas... Experiências que a gente tem.... Somente uma vez na vida.

O professor riu e fez um movimento com as mãos para o boto, indicando que ele já podia se retirar. Quando Nácar desapareceu de vista, Jane sorriu.

— Ele realmente entende você.

— Claro que entende. Achou que eu estava mentindo? — Os cantos dos lábios do homem subiram.

— Bem.... É muita coisa para digerir.

— Espere até conhecer Carmim.

— Quem?

— Minha amiga arara-vermelha.

A garota enfiou a cabeça por entre os joelhos e suspirou.

— Não me diga que ela também entende o que você fala.

Mair apenas riu, mas não disse nada. Ele nem precisaria, na verdade. Jane já havia entendido tudo. O professor sabia conversar com os animais e aquilo era, no mínimo, estranho. Entretanto, não achava que discutir sobre um assunto daqueles era realmente necessário, até porque, quem era Jane Porter mesmo?

E, por mais que tentasse se distrair, havia algo que estava a incomodando muito.

— Professor, o que faremos a respeito de...

Sem conseguir terminar de falar o que queria, a garota achou que seu coração havia perdido o compasso quando seus olhos viram Mair se aproximando dela, os rostos cada vez mais perto um do outro. Aquela era uma das situações que a gente consegue pensar em um milhão de coisas em poucos segundos. E Jane pensou no que seu pai acharia se descobrisse que ela havia beijado um pseudo índio. Pensou no que as pessoas achariam. Era cedo demais?

Cedo demais...

Afastando-se, a garota fingiu que nada daquilo tinha acontecido e voltou a falar sobre o que estava falando, antes do professor cortá-la.

— Acha que Clayton vai fazer algo de errado? — Perguntou, o coração acelerado.

— Não sei, Ibotira. — O homem teve que chacoalhar a cabeça para recolocar os pensamentos no lugar. — Espero que não, de verdade. Não quero nem pensar no que aconteceria se ele aprontasse algo errado.

— Aquela espingarda... — suspirou — Não consigo pensar em nada bom.

— Vamos deixar esse assunto para outra hora. — Mair sugeriu. — Agora, o que acha de me ajudar a procurar Carmim por aí?

***

A única coisa que Jane queria para a sua última noite naquele lugar era tranquilidade. Mas tranquilidade estava longe de ser o que ela teria. Tudo começou com uma insônia irritante que não aparecia há muito tempo. Os últimos dias na aldeia fizeram com que ela não tivesse quase nenhum momento de sossego. Toda a tensão sobre assuntos inacabados ou mal resolvidos havia aparecido agora e não permitia que ela relaxasse. Todos os índios estavam dormindo em suas redes e não havia ninguém com quem ela pudesse conversar para passar o tempo. Jane até gostaria de bater um papo bem ruim e entediante naquele momento, pois, talvez assim, conseguisse pegar no sono.

Infelizmente, o professor Mair dormia em outra maloca, o que impossibilitava o contato entre eles. Se aquela fosse a primeira noite que estivesse ali, certamente Mair seria a última pessoa com quem quisesse se encontrar. Porém, o homem havia se mostrado bastante carinhoso e protetor nos últimos dias. Jane, por sua vez, não conseguiu fazer amizade com nenhum índio, mas, para sua sorte, sentia que, apesar dos aborígenes não exalarem tanto amor por ela, era bem-vinda por ali.

O professor era o contrário de todos os outros; e não era só pelo fato de ele não ser um índio de verdade. No dia anterior, eles haviam passado o tempo todo juntos, fazendo caminhadas e conversando com Carmim, a arara-vermelha, e Nácar, o boto-cor-de-rosa. Mair ensinou a ela como se comunicar com os animais e as tentativas da garota resultaram em muitas risadas o dia inteiro.

Agora, Jane não conseguia tirar aquele homem da cabeça. O fato de seus lábios terem se aproximado muito nos últimos dias não deixava seus pensamentos quietos nem por um instante.

E ela continuava tentando espantar as imagens da mente.

Poderia muito bem ficar na rede, procurando pelo sono, naquela noite. Mas a verdade era que a rede estava causando muita dor em seu corpo todo. Até onde sabia, redes serviam para descanso temporário, não para noites de sono permanentes.

Contudo, a insônia não daria trégua.

Com os passos lentos de quem quer escapar de fininho, Jane Porter resolveu dar uma volta e saiu da maloca. Quando colocou a cabeça para fora, sentiu alguns pingos de água molharem seu cabelo. O céu estava opaco e bem escuro, e uma chuva fina, porém gelada, caía como se as nuvens estivessem chorando.

Que volta o quê! Aquela água fria fez com que a garota desistisse de seu passeio na hora. Recostando seu corpo no apoio da abertura a maloca, Jane descansou as pálpebras para poder apreciar melhor o som da chuva e o vento suave e gélido que acariciava seu corpo tenso. Abrindo os olhos novamente, ela pôde ver a floresta à sua frente. Era radiante, mesmo no escuro. O aroma das flores estrava em suas narinas e arrancavam dela um suspiro cansado.

De repente, um vulto passou correndo por entre as árvores e chamou a sua atenção.

— O que... Mair?! — Ela quase gritou, mas, por sorte, lembrou-se que estava todo mundo dormindo, e sua voz saiu em um sussurro.

Ignorando a chuva, a garota dos olhos azuis saiu correndo ao encontro de quem parecia ser o professor. Que diabos estaria ele fazendo no meio da floresta àquela hora da madrugada? Quando adentrou a mata, precisou de alguns segundos para perceber que estava sozinha e Mair já não se encontrava mais ali. Pudera, ele era muito mais rápido que ela.

Com uma meia volta, Jane pensou que seria melhor voltar por onde tinha vindo, assim poderia sair da floresta sã e salva, mas ela não reconheceu o caminho. Talvez tivesse corrido mais do que pensou. Afagando os braços na tentativa de esquentar o corpo do frio, a garota sentiu que seu coração havia acelerado as pulsações; ela só não saberia dizer se era por ter corrido ou se era porque estava começando a ficar com medo. Seus cabelos castanhos grudaram em seu rosto molhado, assim que um vento gelado bateu forte contra ela, e seus joelhos estremeceram tanto, que Jane achou que não aguentaria manter-se em pé. Ela ergueu o queixo para observar os galhos das árvores oscilarem e as gotas da chuva deslizarem pelas folhas e penetrarem o chão.

Com frio e nervosa, voltou a correr, mas só foi capaz de percorrer mais alguns metros antes de trombar em alguma coisa que a fez perder o fôlego. Piscando forte e lutando para encontrar ar, Jane olhou para cima e percebeu que não havia ido de encontro a algo, mas a alguém.

— Ah, Jane, minha querida, por que não ficou quietinha naquela maloca fedida? Hein? — A voz grossa do homem a sua frente fez com que seu coração quase parasse de bater.

— Clay... Clayton?

— Eu realmente não queria fazer isso, mas você não me deixa outra escolha. — Clayton esboçou uma falsa expressão de desapontamento.

Jane não teve tempo de perguntar o que ele queria dizer com aquilo.

A última coisa que ouviu foi o som da sua voz esganiçada tentar pedir por socorro, antes de algum objeto atingir sua cabeça com força e leva-la para a escuridão total.

***

Foi um pouco difícil focalizar a visão por causa da dor que sentia na parte de trás de seu crânio, mas Jane fez força para abrir os olhos e tentar enxergar o que ou quem quer que estivesse naquele lugar com ela. Assim que conseguiu se colocar sentada, uma vertigem a pegou de surpresa e o gosto da própria bile amargou sua boca, quando subiu sem aviso. O vômito se espalhou pelo chão de madeira e deixou o ambiente fechado com um cheiro horrível.

— Jane? — Alguém a chamou, do outro canto.

— Pai?

Enxugando os lábios com as costas das mãos, Jane saiu correndo com muita dificuldade ao encontro do homem e o abraçou com força. Havia reconhecido sua voz e o achado mesmo com a pouca luz do local em que se encontravam.

— O que está acontecendo? — Ela choramingou.

— É o Clayton. Ele está caçando os botos — Arquimedes sussurrou com tristeza.

O coração da garota deu um solavanco.

— Os botos?!

— Sim, querida. — Suas mãos passearam pelos cabelos molhados da filha. — Com certeza ele estava tramando isso há muito tempo. Não sei como não desconfiei de nada.

Jane suspirou.

— Eu suspeitava que ele iria aprontar algo. — Confessou. — Eu e o professor Mair vimos Clayton e alguns de seus homens com espingardas na floresta, há alguns dias, mas achamos melhor não alarmarmos ninguém, pois não tínhamos provas concretas de que eles estavam caçando algum animal.

— Tudo bem, Jane.

— Ele não demonstrou nada fora do normal nos últimos dias, então eu.... Eu...

— Eu entendo, minha querida.

Arquimedes tratou de acalmá-la, mas já era tarde; a garota estava em prantos. Foi preciso alguns minutos de choro, para que Jane percebesse que queria chorar há muito, muito tempo. E ela teria chorado muito mais, se não fosse por alguém abrindo porta de grades de ferro do compartimento e jogando um homem ali dentro, junto com eles.

— Professor? — O pai de Jane se levantou em um salto. — Jane, venha me ajudar! Ele está desacordado!

Com os olhos já acostumados com a falta de iluminação, a morena fungou e viu que quem estava ali era Mair e, por um curto momento, seu coração se acalmou. Precisavam esperar que o homem acordasse para bolarem um plano e, enquanto isso, Arquimedes ficou andando de um lado para o outro, falando sozinho e matutando alguma ideia para saírem daquele lugar e salvarem os botos. Jane acomodou a cabeça do professor em seu colo e acariciou seu rosto por alguns minutos, fazendo carinho em seus lábios queimados pelo sol e em seus cabelos compridos.

Quando já estavam perdendo as esperanças e enjoados pelo cheiro do local, Mair despertou e sorriu ao ver aqueles olhos azuis o observando, assustados.

— Oi, Ibotira.

— Oi, professor. — Jane também sorriu, mas sem mostrar os dentes.

De repente, a expressão no rosto do homem se fechou e ele se levantou em um salto.

— O que estão fazendo aqui? — Perguntou. — Deviam ter ficado protegidos na maloca!

— Eu saí para fazer xixi e, então, acordei aqui. — Arquimedes confessou, encabulado.

— Eu vi você correr pela floresta, professor — a garota explicou.

— Não devia ter ido atrás de mim, Ibotira — sua expressão estava séria. Jane nunca o tinha visto daquele jeito.

— Mas você viu o que aconteceu? Era perigoso! — Vociferou, irritada — O que estava pensando, indo atrás de Clayton sozinho?

Mair abaixou a cabeça e suspirou.

— Eu não estava indo atrás dele.

— Como assim?

— Na verdade, eu percebi que alguma coisa estava errada, quando acordei e vi a rede de Clayton vazia — explicou. — Precisei ver o que estava acontecendo, mas antes decidi avisar Carmim para que ela ficasse atenta.

— Quem é Carmim? — Arquimedes interrompeu a conversa, mas foi ignorado.

— Não tive tempo de achar Clayton — o professor disse — Ele me achou primeiro.

Jane começou a tremer, pois não fazia ideia de como iriam sair daquele lugar. E, pelo visto, seu pai também não. O único que parecia mais despreocupado em como sairiam dali era Mair, talvez porque tinha outras preocupações em mente. Seus olhos estavam fixos na porta.

— A qualquer momento agora — o homem disse retoricamente.

Sem ter tempo para fazer perguntas, eles ouviram o som abafado de asas batendo contra o ar. O professor parecia bastante exaltado, a excitação exalando pelo corpo.

— Isso! — Gritou Mair quando Carmim apareceu e jogou um molho de chaves para ele.

Com as mãos trêmulas, o homem se apressou em abrir o cadeado e, assim que o fez, a arara adentrou o compartimento, voando.

— Ela... ela... — Arquimedes arquejou — Uma arara roubou as chaves sozinha?!

Jane não pôde conter o sorriso, assim que entendeu o que havia acontecido...

— Você pediu para que ela o seguisse!

Mair sorriu de volta, com a ave empoleirada em seu antebraço.

— Vamos rápido! — Disse. — Provavelmente não temos muito tempo para sair daqui.

Como se tivessem sidos despertados de um sonho, Jane e seu pai se prontificaram em correr atrás do professor Mair e logo perceberam que estavam no barco que os ambientalistas chegaram há duas semanas. Clayton o havia tomado para conseguir cumprir seu plano maléfico. Maldito.

Logo, os três e Carmim estavam sob a chuva no convés mal iluminado. Ninguém precisava pedir para que ficassem quietos; eles já sabiam que não deveriam emitir nenhum som para que nenhuma outra pessoa os visse. Mair acenou com a mão livre para que os outros dois os seguisse, pois precisavam tomar o leme a fim de voltarem para a margem do rio. Porém, antes que pudessem dar ao menos mais cinco passos, foram surpreendidos por Clayton, que os flagrou tentando fugir. Ele alisou o bigode e abriu um sorriso malvado.

— Como acham que vão conseguir sair daqui?

— Você é um traidor, Clayton. — Mair cuspiu as palavras, todas de uma vez.

O homem com a espingarda gargalhou.

— E como foi que descobriu isso? Sozinho?

— Você não pode fazer o que está fazendo! É crime! — Jane se desesperou. Sua voz estava mais aguda que o normal.

Clayton se aproximou dela e segurou seu queixo entre os dedos polegar e indicador em uma ação que, nas mãos de outro homem, seria delicada em vez de grosseira.

— Jane, Jane... — suspirou. — Você realmente deveria não ter saído da sua redinha imunda esta noite. É uma pena que esses olhos tão bonitos tenham que presenciar cenas como essas.

A garota teve que usar um pouco de força para escapar das mãos nojentas daquele homem, e, quando o fez, Clayton segurou seu pulso com força. Seu ato fez com que Mair passasse rapidamente Carmim para os ombros de Arquimedes e avançasse contra o criminoso à sua frente.

— Tire as mãos dela! — Vociferou.

No segundo seguinte, ninguém saberia explicar a rapidez com a qual ele fez aquilo, Clayton puxou a espingarda das costas e apontou os dois enormes canos para o rosto do professor.

— Escute uma coisa, seu indiozinho de mentira. Você vai ficar bem quietinho no seu lugar, senão eu faço com que essa belezura aqui — seus olhos indicaram a arma — estoure seus miolos.

Jane estava apavorada. Ela tinha certeza que se alguém não agisse logo, Clayton e seus capangas iriam conseguir pegar os botos e – que Deus não permitisse – cometeriam alguma besteira. Por isso, sem pensar duas vezes, ela pulou nas costas do homem e puxou a espingarda para cima, desviando-a do professor.

— Corra Mair! Corra papai! — Gritou.

No mesmo instante, Clayton puxou o gatilho e o tiro atingiu o céu, cortando algumas gotas de chuva no caminho. O barulho fez com que aves voassem para fora das copas das árvores e acabou acordando alguns índios mais ao longe.

A ação da garota Porter foi o suficiente para que Mair tivesse tempo de agir também. Ele gritou para Arquimedes pegar uma corda ao seu lado, no chão, e, assim que a tinha em mãos, jogou-a na direção dos pés de Clayton, fazendo com que perdesse o equilíbrio. Mas ele não caiu. Aproveitando o momento, Jane saiu correndo e se prostrou perante seu pai e o homem que ela descobriu que estava apaixonada, ficando de frente para o criminoso.

— Onde estão seus homens, Clayton? — Ela perguntou. Sua postura havia mudado para uma mais confiante.

— Estão caçando seus preciosos botos-cor-de-rosa, doçura. — Sua voz ainda era zombeteira, mesmo na situação em que se encontrava.

— Largue essa espingarda.

Clayton teve que rir.

— Acha que não sou capaz de atirar em você para poder acabar com esses dois, aí atrás?

Naquele momento, Mair olhou para Arquimedes e percebeu que Carmim não se encontrava mais ali. Provavelmente aproveitou a brecha para escapar.

Os lábios de Jane tremeram quando ela respondeu:

— Não duvido de mais nada que venha de você.

Clayton riu novamente e, desta vez, seus olhos se fecharam por alguns segundos. Foi o suficiente para que ele notasse, tarde demais, a presença de uma arara-vermelha que surgiu por detrás do deque e puxou seus cabelos negros com as garras afiadas e bicou o couro de sua cabeça. A dor foi tanta, que o brutamonte largou a arma para que pudesse ter as mãos livres para arrancar aquele bicho dali. Mas Carmim foi mais ágil e escapou, antes que se pudesse ser ferida.

Infelizmente – ou felizmente – Clayton acabou perdendo o equilíbrio e, impossibilitado de mover as pernas, não conseguiu se manter em pé, o que fez com que ele escorregasse no chão molhado do convés, batesse as costas na beirada do barco e caísse na água.

Os outros três que observavam a cena se apressaram em socorrê-lo e Mair se prontificou a pular para salvá-lo. A água estava um pouco agitada por causa da chuva, mas o professor era ágil e sabia nadar muito bem, ao contrário de Clayton.

— Clayton, me dê sua mão! — Mair gritou.

— Eu não... — o homem engoliu um pouco de água quando abriu a boca para falar. — Eu não preciso da sua ajuda!

— É mais fácil sair se eu te puxar! — Insistiu — Segure minha mão!

O caçador não respondeu. A verdade era que ele, embora precisasse, não queria ser ajudado. Não gostava de admitir que não sabia nadar, mas preferia morrer a ser ajudado por um cara que nem índio de verdade era. E Mair não podia fazer muita coisa se Clayton não colaborasse.

E o som daquele homem cruel engolindo as águas do rio Amazonas foi o som mais horrível que os que assistiam a cena ouviram na vida.

***

Ter dormido apenas duas horas após o ocorrido da madrugada fez com que Jane acordasse com olheiras do tamanho de poços ao redor dos olhos. Tudo o que ela mais queria no momento era esquecer tudo o que havia acontecido. Os gritos de Clayton ainda ecoavam em sua mente e era terrível lembrar. Seu pai, Arquimedes, não havia pregado os olhos a noite toda e passou a manhã inteira pedindo desculpa aos índios pelo incidente, mas eles estavam felizes de terem ajudado a acabar com a caça aos botos. Graças ao tiro que Clayton disparou com a espingarda, foram acordados e logo procuraram saber o que estava acontecendo. Arquimedes ficou aliviado em saber que os aborígenes assustaram os caçadores com suas lanças e flechas.

Jane estava com medo de sair da maloca e ir embora. Ter que encarar o mundo agora parecia bastante assustador. Em duas semanas havia conseguido amar a Amazônia, mesmo ela tendo roubado seu celular no primeiro dia. Havia pessoas boas ali. Os maus vinham de fora. E ter que dizer adeus ao professor Mair tinha se tornado a coisa mais difícil que faria nos últimos anos.

Portanto, para que não tivesse chance de pensar muito, colocou todos seus pertences na mochila, amarrou os cabelos em um coque frouxo e seguiu quase marchando para fora. Ela passou pelos índios acenando e dando as mãos à alguns que se mostraram mais amigáveis, e, por um curto momento, uma onda de arrependimento a atingiu em cheio. Sentiu que deveria ter tentado mais fazer amizade com eles. Tinha certeza que eram pessoas muito legais. Mas agora era tarde e ela tinha que partir.

A pior parte foi quando encontrou o professor Mair na margem do rio, ao lado do barco. Ele estava com uma expressão impossível de se ler e sua postura é de alguém que tenta não se mostrar fraco.

Assim que se encontraram um de frente para o outro, os dois perceberam que não sabiam muito o que falar. Porém, foi Jane quem quebrou o silêncio ensurdecedor.

— Obrigada, professor. — Disse, a voz embargada.

Mair tentou esboçar um sorriso.

— Pelo o quê?

— Por... Por me mostrar como a Amazônia é maravilhosa.

— Foi um prazer, Jane.

Quando ele disse aquilo, a garota sentiu o coração machucar as costelas de tão forte que bateu. O homem percebeu que ela ficou desconfortável.

— O que foi?

— É a primeira vez que você me chama assim — respondeu. — E só agora eu percebi como amo quando me chama de Ibotira, mesmo não sabendo o que significa.

O sorriso de Mair agora ia de orelha a orelha.

— É um nome indígena para “flor pequena”.

Jane sustentou seu sorriso, mas sua expressão se fechou novamente, quando seu pai a chamou o barco.

— Preciso ir... — disse com tristeza. — A gente... A gente se vê.

Desta vez, o professor não disse nada. Ele apenas assentiu e respirou fundo quando a garota lhe deu as costas e subiu no barco. Jane, por sua vez, resolveu sentar no mesmo lugar que havia sentado na viagem de ida para a Amazônia. Nada parecia fazer sentido agora. Nem a falta que seu celular fazia foi capaz de fazê-la parar de pensar em Mair. Quando ligaram o motor do barco, ela sentiu uma lágrima escorrer de um de seus olhos azuis. Nunca havia se sentido daquele jeito. A dor era terrível.

— A quem você está tentando enganar, minha querida? — Uma voz a arrancou de seus pensamentos fúnebres.

— Como assim, pai?

— Você não vai ser feliz se voltar para a cidade grande, sabe disso.

— Como pode ter tanta certeza? — Fungou. — Tenho meu trabalho, meus amigos.... Minha vida.

— Então, tudo bem. — Arquimedes sorriu, como se já soubesse o que viria a seguir. — Se você está dizendo...

Ora, a quem Jane estava mesmo tentando enganar?

— Pai, agora eu entendo seu amor por esse lugar! — Dito isso, ela deu um beijo bem carinhoso na bochecha do homem e se levantou, ficando em pé no banco ao lado da beirada do barco. — Quem é que precisa de celular, quando se tem a Amazônia?

No primeiro momento que a água atingiu seu corpo, Jane se sentiu bastante arrependida de ter agido como uma idiota, pulando do barco. Mas, assim que algo se projetou sob ela, soube que aquela havia sido a melhor decisão de todas. Nácar emitiu um som típico dos golfinhos, quando pegou Jane e a levou para terra firme.

— Também estou feliz em te ver, Nácar. — A garota respondeu.

Mair saiu correndo em sua direção.

— O que foi isso, Ibotira? Você está...

Antes que pudesse perguntar se ela estava maluca, louca, doida, ou qualquer que fosse o adjetivo, Jane tratou de selar seus lábios nos dele. Porém, se afastou rapidamente, assim que lembrou que havia vários índios assistindo a cena.

Mas o professor não se importava.

Gentilmente, ele encaixou o rosto molhado da moça entre as duas mãos e a beijou como ninguém no mundo a beijaria um dia.

E, naquele momento, Jane Porter achou difícil decidir o que era mais louco em toda aquela situação: os índios aplaudindo seu beijo, o beijo em si, ou seu pai saltando do barco – assim como ela mesma havia feito –, dizendo que a Amazônia era linda de verdade.

Ah, e como era!


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