Invisíveis escrita por Kopan


Capítulo 1
Depressão


Notas iniciais do capítulo

A depressão é um distúrbio afetivo que acompanha a humanidade ao longo de sua história. No sentido patológico, há presença de tristeza, pessimismo, baixa autoestima, que aparecem com frequência e podem combinar-se entre si. É imprescindível o acompanhamento médico tanto para o diagnóstico quanto para o tratamento adequado.



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Seu sono descompassado a fez acordar. Eram 4 da manhã e a chuva caía janela afora, molhando as rosas mortas da jardineira.

Era o auge da adolescência, lá pelos seus 16 anos. Seus pais, trabalhadores ocupados, desejavam tanto um futuro perfeito para ela, que lhe cobravam notas escolares inalcançáveis.

“Você nunca será uma advogada com essas notas inúteis!”

“Você nunca terá um futuro se não estudar”

Era o que diziam. Não era por maldade, afinal, eles nasceram de uma crise econômica e de uma ditadura militar, tiveram que lutar muito para adquirir suas conquistas, fora que todo mundo se estressa uma vez ou outra na vida. Eles apenas aprenderam que “quem corre por gosto, não cansa”.

Mas, na verdade, cansa. E cansou ela. O gosto de querer ser a filha perfeita pra eles a cansou.

E não cansou de uma hora pra outra, e também não cansou sem motivos. O seu esforço nos estudos há alguns anos atrás era o maior de todos, mas não era o melhor, pelo menos, não para seus responsáveis. As suas notas 7 e 8, onde a média da escola era 5, só não foram mais repudiadas porque elas ocupavam as primeiras posições. No entanto, isso não durou muito, na verdade, foi só entrar no ensino médio para que as coisas piorassem.

“Você está na etapa final! Deve no mínimo tirar 9,5 não acha?”

“Jovens como você, que tem uma educação de qualidade, não deveriam sair pra festas, mas sim focarem nos estudos”

Essas frases sempre se repetiram dentro da sua cabeça. E toda vez machucavam por dentro, como ácido sulfúrico escorrendo para dentro dos ouvidos. Ela desejava tanto ser perfeita, mas por que não conseguia? Era tão difícil assim?

Ela, então, cansou. Ela, então, desistiu.

Desistiu de se esforçar sabendo que nunca seria capaz de agradar sua família. Desistiu de se amar porque, além da perfeição ser impossível, era impossível amar alguém tão horrível quanto ela. Alguém tão inútil quanto ela.

E ela guardava isso por baixo de uma máscara tão convincente que ninguém suspeitava, nem mesmo a chuva que deixava gotas escorrerem pela janela nessa madrugada impiedosa.

Ergueu o tronco da cama e abandonou o colchão morno, pondo-se de pé como um cadáver apodrecido. Caminhou até a escrivaninha e espiou o boletim sobre o amadeirado. Suas notas tinham decaído muito esse ano, na faixa de 0 a 3. Mas ela não se importava, não dessa vez. Pra quê estudar quando não terá resultados? Pra quê viver quando não será agradável? Até porque, ela era apenas um peso morto que só trazia despesas. Ela nunca seria médica, ela nunca seria advogada. Ela só era uma fracassada inútil que vivia matando aula para dormir e simplesmente chorar escondida.

Sim, mesmo sabendo de toda a sua condição, ela ainda chorava. Sozinha, mas chorava. E ela odiava isso. Suas lágrimas eram apenas a prova de sua fraqueza, a prova de sua incapacidade de lidar com seus sentimentos.

Sentiu as lágrimas começarem a escorrer pelos olhos, queimando suas bochechas. Ela precisava se aliviar de novo. Isso estava se tornando tão frequente.

Sentou na cadeira e, quase que instintivamente, alcançou o estilete que estava entre canetas no porta-lápis. Empurrou a base, deixando com que o feixe de metal saísse até a metade. Deu mais uma espiada de canto para o boletim, lembrando-se das broncas que levara mais cedo.

“Suas notas só pioram, cadê os estudos?!”

Fechou as pálpebras umedecidas e prendeu a respiração assim que cravou a lâmina para dentro de seu pulso, arrastando-a pelas cicatrizes anteriores e torcendo miseravelmente para que dessa vez finalmente acertasse uma artéria. Aquele sangue era como um licor que escorria com todos os sentimentos guardados, sentimentos que se expressavam por cada vez mais lágrimas.

Se arrepender? Quem não se arrepende de ver suas veias sendo picotadas e violadas enquanto deixam escapar a fonte da vida?

Ela.

Ela não se arrepende. Ela precisa ser punida pelas merdas que sempre faz. Ela precisa ver escorrer o vermelho pelos pulsos para que aguente um pouco mais, porque, sinceramente, ela tinha somente a fonte do respirar, mas de vida, não tinha nada. Nem vontade.

Correu a lâmina varias vezes, rasgando a derme por completo. Acertou artérias, mas nada que saísse esguichando como ela desejava. Era apenas o típico vermelho vivo escorrendo.

Relampejou e ela permaneceu estagnada. Sem piscar e sem chorar, só decidiu levantar quando percebeu que o líquido começava a coagular.

Pensou um pouco na possibilidade de sair e tomar um café, mas ainda era cedo, e deixar o quarto era quase como um sacrifício. No fim das contas, voltou para a cama e tomou um relaxante muscular que pegou escondida do armário da Mãe dias atrás. Sentia que só com a ajuda deles seria capaz de dormir, nem que fosse por 20 minutos.

Esparramou o corpo pelos lençóis e encolheu-se como um feto. Sempre estava frio pra ela. Sempre estava cinza.

Fechou os olhos, mas não conseguiu cair na inconsciência do REM. A chuva parou, e os raios do sol nascente incomodavam as pupilas negras da jovem, que se levantou em um solavanco quando ouviu seus pais a chamando para o café.

Correu para a escrivaninha e voltou a esconder o estilete. Com álcool etílico e um lenço demaquilante, fez questão de limpar as gotas de sangue grudadas na madeira, em seguida, limpando a pele do pulso, também retirando as “casquinhas” tão bem acomodadas.

Soltou um suspiro pesado, e depois do momento de desespero, a sensação de cansaço tomou conta. Pensou em voltar a deitar, mas levaria uma bronca igual ao dia anterior. Não que ela sentisse medo das broncas - até porque ela já sabia que era alguém imprestável mesmo – ela apenas queria não chorar logo de manhã, já que todos da escola perceberiam.

Olhou para o espelho e forçou um sorriso mórbido assim que terminou de colocar o uniforme, nesse caso, folgado e de mangas longas. Deixou o quarto e seguiu pelo corredor que emanava o cheiro de café.

— Bom dia, querida – Falou a Mãe.

— Bom dia – Respondeu.

— Sente-se, fiz torradas pra você – Pediu.

Deixou a mochila no chão e sentou-se um pouco desconfortável na cadeira. Seu pai estava lendo as notícias da última semana.

— Sua coordenadora me chamou para ir à escola hoje – Falou a mulher, que colocava duas fatias de torrada no prato da jovem – Ela gostaria de falar sobre seu desempenho escolar.

Não respondeu. Ficou em silêncio enquanto dava uma mordida pequena na fatia do pão.

— Filha, temos que resolver isso de uma vez – Tentou falar em um tom calmo – Poxa, você era tão boa aluna antes.

Ela aperta a fatia com força, quase rasgando as fibras do trigo.

“Mentira, eu nunca agradei vocês”, pensava.

— Sabe, você tem que falar com a gente pra resolver as coisas – Insistiu – Não é, amor?

— É sim, você está muito diferente de antes – Respondeu o homem ao fechar o jornal – O que está acontecendo?

— Nada – Respondeu friamente – Eu só estou com dificuldade para estudar.

Não deixou de encarar a mesa, mas tinha certeza de que seus pais a olhavam desconfiados.

— Enfim, vou procurar um professor particular pra você – Comentou a Mãe.

Terminou de mastigar o último pedaço da primeira fatia com dificuldade. Era como se o seu estomago rejeitasse comida, impedindo-a de comer a segunda.

Ergueu o corpo e colocou a mochila nas costas.

— Não vai comer o restante? – Não respondeu – Filha, você está comendo praticamente nada!

— Não estou com fome – Respondeu – E também vou acabar me atrasando

Antes de sair do cômodo, foi interrompida pela voz da outra.

— Mas... – Protestou – Tudo bem, boa aula, te amo.

De alguma forma, aquelas palavras soavam tristes. Mas para a estudante, eram apenas mentiras brancas.

Caminhou até a parada de ônibus, onde esperou 15 minutos para que pudesse finalmente seguir para a escola dentro do automóvel.

A escola era grande. Famosa. Dispendiosa.

E isso só fazia o peso amargo crescer por cima dos ombros da jovem, que seguia - sem dar um piu - para a sala de aula, onde sentava no fundo, excluindo-se da turma.

A 1ª, 2ª, 3ª... e 6ª aulas passaram como uma tortura lenta. Era sempre assim. Sempre ela era um fantasma que vadiava nas aulas desenhando baratas e lacraias com giz.

“Essa guria é estranha né?”

“Ela parece um zumbi”

Eram os cochichos mais ecoados pelas quatro paredes da sala.

Assim que o último sinal bateu, ela, com todo o material já guardado, deixou o cômodo. Depois de alguns minutos já estava na parada de ônibus ao lado da sua casa, ouvindo My Chemical Romance pelos fones.

Percebeu a falta do carro do pai na garagem, ele ainda não havia voltado do trabalho. Ótimo, assim era menos perturbador. Adentrou a sala de estar e logo observou a mãe que estava com uma cara irritada. De novo.

— Mocinha, que história é essa de estar matando aula?! – Perguntou eufórica – Você acha que pago sua escola pra você fazer isso?!

E lá vem o dinheiro de novo. É sempre ele que surge nessas situações. É sempre ele que causa o fel, o arrependimento.

Ela sentiu os olhos começarem a alagar, sentiu uma dor no peito quase insuportável. Era difícil respirar, era difícil ouvir.

— Você acha que dinheiro dá em árvore?! – Berrou – Pelo amor de Deus criatura! Você só anda pior a cada dia!  

Agora sentia a solução salina queimar as bochechas porque acreditava fielmente nas palavras da mãe. Ela sabia que era cada vez mais inútil e mais desnecessária. Apenas gastos de saúde, escola e comida embutidos em alguém que nasceu na época errada.

 Era difícil aguentar, era difícil sorrir.

E, no entanto, ela sorriu.

— Não vai se repetir, prometo – Disse por entre as lágrimas e ânsia – Agora, se não se incomoda, preciso de um banho.

Parecia uma forma rude de falar alguma coisa, mas ela tentou ao máximo parecer tranquila, tentou ao máximo manter a máscara no rosto.

A Mãe pareceu triste, fazia tanto tempo que não via aquelas gotas escorrerem pelo rosto da filha. Pensou em relutar, mas quando o fez, a menor já havia trancado a porta do banheiro.

Era possível ouvir a banheira enchendo. E quando o barulho da torneira cessou, a estudante entrou na bacia, permitindo que as lágrimas pudessem escapar com mais intensidade. E ainda assim, não fez barulho, nem de soluços, nem de engasgos.

Mirou as cicatrizes das coxas, pulsos e barriga. Aquele alívio era cada vez menos eficiente e duradouro. Mas afinal, para quê um alívio? É apenas temporário, não a tornava menos repugnante.

E ela mirou, então, o teto branco. Esparramou o corpo inteiro para dentro da banheira, sentindo sua visão embaçar com as lágrimas e água.

Os ouvidos cobertos pela manta morna já não conseguiam ouvir direito, mas ela sabia que parte da água escorria para fora do acrílico, já que ela mantinha as mãos para fora para impedir que seu corpo boiasse.

Prendeu a respiração e fechou as pálpebras.

Enquanto o ar se esgotava, ela se convencia de que era o melhor. Ela estava com medo, mas ela só queria o melhor para os pais dela. Ela se lembrava do quão desnecessária e imperfeita ela era, e isso a estimulava a manter as mãos bem firmes.

Sentiu então, os lábios abrirem e porções de água adentrarem seu esôfago, rasgando e queimando seus alvéolos e pulmões. Contorcia sua musculatura em vão, lembrando-se do quanto ela já foi feliz e afirmando para si mesma que já estava na hora de ir embora.

Sentia seu corpo em angústia completa, querendo expulsar a água com tosses, que apenas dava mais espaço para o líquido entrar.

Sempre lhe ensinaram que o fluido era inodoro, incolor e sem sabor. Mas ela jurava que nessa hora era possível sentir o verdadeiro cheiro inconveniente, a cor desumana e o sabor maléfico do líquido.

“Vai passar logo”

Foi o seu último pensamento.

O corpo não lhe deu mais tempo para perceber as batidas desesperadas na porta.

O corpo não lhe deu mais tempo para uma última lágrima.

Ele apenas padeceu, arroxeado e pesado, como o verdadeiro sentimento da alma dela. O sentimento de podridão e desgosto o qual ninguém deseja sentir.


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Notas finais do capítulo

Suicídio é a quarta causa de morte no mundo. No Brasil, estima-se que 25 pessoas cometam suicídio por dia. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a tendência é de crescimento dessas mortes entre os jovens, especialmente nos países em desenvolvimento. Nos últimos vinte anos, o suicídio cresceu 30% entre os brasileiros com idades de 15 a 29 anos, tornando-se a terceira principal causa de morte de pessoas em plena vida produtiva no País.
De acordo com uma recente revisão de 31 artigos científicos sobre suicídio, mais de 90% das pessoas que se mataram tinham algum transtorno mental como depressão, esquizofrenia, transtorno bipolar e dependência de álcool ou outras drogas.

Depressão não é frescura, não é passageira. Procure ajuda se você se sentir relacionado com o transtorno.

E lembre-se, nenhum ser humano é inútil ou merece morrer.



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