De cabeça escrita por Drafter


Capítulo 3
Estranha




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O trem chegou na estação daquela cidadezinha junto com os primeiros raios de sol da manhã, saudando seus passageiros com um apito sonoro que fez Robyn abrir os olhos preguiçosa. Espiou pela fresta da cortina, observando a cidade que não via há 5 anos. Toda Oldhaven parecia sorrir sob a pálida luz que ia pouco a pouco se espalhando pelas suas casas e ruas, e Robyn não conseguiu evitar retribuir o sorriso, igualmente pálido.

O relógio marcava pouco depois das 5 e meia da manhã, o que justificava o pouco movimento na estação. Alguns poucos passageiros tomavam seu primeiro café do dia no pequeno Tim Hortons¹ que acabara de abrir as portas, e Robyn quase fez o mesmo, porém uma súbita queimação na boca do estomago a fez mudar de ideia. Podia ser apenas sua barriga reclamando da falta de comida, já que não jantara na noite anterior e nem comido nada na viagem, mas certamente a fome não tinha nada a ver com isso.    

Tinha decidido seguir direto para o hotel, mas um rosto chamou sua atenção entre a meia dúzia de semblantes sonolentos daquela estação. Paloma, com seus cabelos dourados que caiam em ondas até os ombros, parecia se destacar entre os vultos escassos que permeavam o pequeno recinto que servia de parada para o trem. De tanto só ver a irmã pelas telas eletrônicas, tinha esquecido quão luminoso era seu cabelo e de quão profundos podiam ser seus olhos azuis.

Na mesma hora, lhe veio na cabeça a memória de quando Paloma ganhara um concurso de miss infantil na cidade. A irmãzinha passara semanas usando a coroa de plástico e a faixa de papel, desfilando pela casa e acenando para os vizinhos. Ela era tão linda e angelical que Robyn nem conseguia ficar com ciúmes da caçula. Ao invés disso, a carregava para todo lado, como se fosse sua boneca.

Não soube porque aquela lembrança chegou tão forte. Talvez fosse a atmosfera interiorana de Oldhaven, que imediatamente lhe remetia à infância, ou talvez ainda estivesse um pouco inebriada pelo sono e pelo cansaço da viagem. Seja como for, Robyn se pegou estranhamente emotiva.

Paloma finalmente a avistou, caminhando até ela em passos ligeiros. Se encontraram no meio da estação, e, enquanto Robyn ainda ensaiava alguma coisa para dizer, a irmã a abraçou. Foi um abraço forte, apertado — e silencioso. Não se viam pessoalmente há cinco anos, mas aquele abraço falou mais do que Robyn jamais conseguiria expressar.

Ela estava em casa.

Ainda emocionada pela memória infantil da irmã, Robyn a abraçou de volta. Quando lhe faltavam as palavras, Paloma era sempre quem sabia o que fazer.

— Estava com saudades, maninha... — Paloma murmurou.

Se separaram, e Robyn viu aqueles olhos azuis que a encaravam de volta da mesma maneira como tinha feito tantas outras vezes no passado. Era um olhar intenso, que parecia querer devora-la, que parecia entrar na sua mente e descobrir todos os seus pensamentos. E a emoção do encontro então deu lugar a um constrangimento. Pelo tempo perdido. Por não estar lá nos últimos dias da mãe. Pelo espaço vazio maior que um Canadá inteiro que havia se criado entre as duas.

— Eu também, Lola — respondeu, sem graça, usando o apelido de infância da irmã.

— Você foi uma maluca de ter vindo de madrugada! Dava pra ter esperado. Eu podia até ter ido te buscar em Winnipeg, se você chegasse mais tarde.

— Já falei que não tem problema, foi melhor assim. E deixa que eu levo a mala! — Robyn falou, puxando a alça da bagagem antes que as mãos de Paloma a alcançassem.

— Teimosa! — a irmã riu — Tá igualzinha à... — e ela parou a frase no ato.

Robyn notou a súbita mudança no semblante que Paloma tentou disfarçar e achou melhor fingir que não havia percebido. Tentando parecer distraída, foi até o bagageiro do carro, um enorme SUV com sete lugares, onde depositou a mala. Quando voltou, Paloma já estava ao volante.

— Qual é o hotel?

— É o River Palace, lá na pracinha.

— Vai ficar no Casarão, mana?! — Paloma quase gritou, animada — Não acredito!

O River Palace era um dos hotéis mais antigos da cidade. O exterior do prédio tinha uma arquitetura estilo "Château" imponente, típica da época, que se destacava com facilidade. Chegou a ficar fechado por um tempo — praticamente durante quase toda a infância das duas — mas foi reaberto 10 anos atrás, depois de uma extensa reforma. O River Palace, agora um econômico 3-estrelas, não tinha mais a pompa de antigamente, mas a fachada histórica havia sido mantida, e ele ainda se erguia majestoso na praça central da cidade.

Quando ainda estava fechado, todas as crianças da cidade eram curiosas para conhecer aquele assustador, e ao mesmo tempo irresistível, Casarão — apelido que circulava entre as rodinhas de amigos das duas.

Quando o hotel fora reinaugurado, parte do charme se perdera. Afinal, a graça era fantasiar sobre as histórias do Casarão. E pelo visto, Paloma continuava achando graça no prédio que marcara sua infância.

— Lembra quando os meninos quiseram bancar os valentões e tentaram entrar lá dentro? — ela continuou falando, rindo ao volante como uma adolescente.

Robyn apenas concordou, balançando a cabeça e murmurando alguma coisa. Paloma era só três anos mais nova, mas às vezes parecia muito mais.

(...)

Robyn só sairia novamente do hotel depois do almoço e de uma boa dose de descanso. Tinha ficado de ir na casa da irmã naquela tarde para conversarem sobre o inevitável. O assunto que a levava até ali.

Tinha o endereço de Paloma anotado no celular, mas não precisou sacar o aparelho da bolsa. Lembrava bem a região que a irmã morava, e talvez só precisasse de ajuda para descobrir o número da casa, já que naquele subúrbio, todas elas pareciam idênticas.

Quando a localizou, a campainha só não foi mais barulhenta do que a sinfonia de gritos infantis e latidos roucos que se ouviu do lado de dentro. Ela podia escutar Abby, filha de Paloma, soltar exclamações divertidas, enquanto uma voz masculina falava algumas palavras de ordem, tentando conter a agitação da menina. Toda aquela algazarra deixou Robyn um pouco intimidada. Não ia na casa da irmã desde que os gêmeos Abby e Oliver era bebês, e, sem dúvida, bem menos estridentes.

Steve, marido de Paloma, foi quem abriu a porta, com uma Abby sorridente no colo. A menina tinha os mesmos cabelos claros da mãe, e uma expressão de genuína curiosidade no rostinho pequeno.

— Oi, Robyn, como foi a viagem? — ele a cumprimentou.

— Foi... boa.

— Não vai falar com sua tia? — Steve disse, agora se voltando para a menina de cinco anos no colo.

— Oi, tia Robyn! Quer ver o desenho que eu fiz?

Robyn sorriu sem graça, pronta para dar alguma resposta improvisada, quando Steve a salvou.

— Depois ela vê. Vai brincar com seu irmão, a tia veio falar com a mamãe.

O homem colocou a menina no chão, que correu por um corredor e sumiu por uma das portas. Ainda deu para ouvir uma ou outra explosão da pequena, acompanhada agora do irmão.

— Desculpe pela gritaria... esses dois não param um segundo!

— Está tudo bem, Steve. Ela já está enorme, nem parece que foi outro dia que a peguei no colo...

— As crianças de hoje em dia parece que nascem com fermento, não param de crescer!

Robyn riu educadamente, dando alguns passos para dentro da sala. Brinquedos estavam espalhados pelo chão, e, em um canto, Louie, o labrador cor de chocolate, descansava em uma larga almofada. Fotos da família, principalmente das crianças, podiam ser vistas por toda parte — no aparador, nas paredes, na mesinha de canto...

— Lola está na cozinha, pode ficar à vontade. Vou dar uma olhada nas crianças e depois apareço. Lola tem resolvido quase tudo sozinha mesmo.

Ela assentiu, com uma pontada de remorso por deixar a irmã mais nova ter que cuidar do velório da mãe praticamente sozinha. Já não bastava ela ter tido que lidar com todo o sofrimento da doença, agora ainda precisava encarar todo aquele assunto nefasto de funeral, recepção, cemitério.

— Paloma...? — ela falou, se aproximando da cozinha.

A irmã não respondeu. Estava ao telefone, e apenas se virou, acenando com a cabeça para Robyn.

— Não, eu disse lírios brancos... isso... — Paloma falava no aparelho.

Robyn sentou à mesa, esperando que a irmã terminasse. Tinha à sua frente um caderno com algumas anotações e alguns papéis espalhados, junto de uma caneta.

A cozinha de Paloma era espaçosa, assim como o resto da casa. Parecia mais arrumada que a sala de estar, com seus azulejos brancos e a pia limpa. A bancada reunia uma variedade de pequenos aparelhos, desde uma moderna cafeteira até uma dessas panelas elétricas de arroz.

— Desculpa, mana, ainda estou resolvendo os últimos detalhes... o funeral vai ser amanhã, na capela da St. Agnes — Paloma falou, ao desligar o telefone.

— Eu posso ajudar, Lola.

A irmã sorriu.

— Eu sei, Rob, mas eu não me incomodo — disse, sentando à mesa e segurando a mão de Robyn — É bom poder me distrair com alguma coisa, na verdade.

— Mesmo assim. Não é justo.

Paloma soltou a mão da irmã, a encarando.

— Justo com quem? Comigo ou com você?

— Como assim? Com você, oras! — Robyn respondeu, um pouco indignada com a pergunta.

A caçula apenas suspirou. Levantou da mesa e recolocou o telefone sem fio de volta ao carregador.

— Estou pensando em fazer uma recepção aqui em casa depois do funeral. Só para a família e alguns amigos próximos. Você pode me ajudar, se quiser. Já andei vendo um buffet, nada muito elaborado.

— Está bem... — E Robyn esperou um tempo, pensando na melhor maneira de prosseguir — Como ela estava? Antes de... você sabe...

— Era câncer, Robyn... como você acha que ela estava?

— Mas ela tinha melhorado! Estavam falando em remissão!

— Isso foi antes — respondeu, baixando os olhos — o tumor voltou. O Dr. Lan não estava muito confiante... nem receitou mais quimio, disse que seria um sofrimento extra pra ela, que não faria muita diferença e só a deixaria mais fraca. Que era só questão de tempo...

Robyn franziu as sobrancelhas, perplexa. Sabia que a mãe estava mal, mas não sabia que era tão mal assim.

— Por que você não me ligou antes, Paloma? Por que não me disse que ela estava assim?

— Eu falei que ela tinha piorado... mas o que você queria que eu fizesse? Você estava sempre ocupada, sempre trabalhando, sempre com algum plano para o fim de semana.

— Eu teria vindo! Se eu soubesse que ela estava assim, eu teria dado um jeito! — Robyn argumentou em uma voz nervosa, quase com raiva da irmã por tê-la privado dos últimos momentos com a mãe.

— Mamãe não queria te deixar preocupada. Dizia que você estava indo bem em Vancouver, que não precisava parar tudo por causa dela.

— Não importa! — Robyn ralhou, levantando da cadeira.

Paloma fechou a cara por um instante, dando um passo na direção da irmã.

— Eu não vou brigar com você, Robyn! Não hoje!

Robyn bufou, exasperada. Sentia o rosto arder, e ela cruzou os braços, ficando de costas para a irmã.

— Me dá o telefone do buffet, eu resolvo isso do hotel — falou de repente, se virando para Paloma, que continuava a encarando com aqueles olhos azuis idiotas. Teve mais raiva ainda da calma da irmã.

— A missa é às 10h. O enterro vai ser logo depois — ela respondeu, anotando o telefone em um pedaço de papel.

Estendeu o papel para Robyn, mas antes que soltasse, falou:

— Eu sei que está zangada com a morte da mamãe. Eu também estou. Mas eu não tenho culpa, e não adianta ficar discutindo o que passou. Eu queria que você estivesse aqui antes, mas você não estava, e não tem nada que possamos fazer sobre isso agora. Então agora que você chegou, não deixe as coisas mais difíceis do que elas já são.

Robyn ouviu calada, mas não conseguiu desfazer a cara emburrada. Pegou a anotação da mão de Paloma e guardou na bolsa, a acomodando no ombro. Deu uma despedida qualquer e saiu voada pela porta da casa, aliviada por Steve e as crianças ainda estarem em um dos quartos, longe da vista dela.

Voltou arrasada para o hotel. Ainda estava com uma raiva irracional da irmã. A culpava por não tê-la alertado sobre a gravidade da situação. Sentia-se como se tivesse sido roubada do convívio com a mãe em seus últimos dias de vida. Era orgulhosa demais para admitir que a culpa, na verdade, era sua.

"Justo comigo ou com você?"

Ficou com mais raiva ainda ao lembrar da pergunta. Já não sabia se era raiva de si mesmo ou de Paloma, de toda aquela calma, da maneira como ela resolvera tudo sozinha. Da maneira como Robyn ficara de fora, quase como uma estranha.

"Eu não vou brigar com você hoje, Robyn"

Paloma era três anos mais nova que ela. Mas às vezes, parecia muito menos.


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Notas finais do capítulo

¹ Tim Hortons - Rede de cafeteria canadense, muito popular no país



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