A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 9
Oito




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Mal o dia amanheceu Leonor se levantou. João Guilherme dormia a sono solto e Mãe Maria também se levantava de seu canto.

Minina Leonor? Já de pé? Deixa que Mãe Maria cuida de tudo.

— Sim Mãe Maria. Quero que a senhora prepare tudo para a nossa partida. Vamos voltar para Rio Santo.

— Sem a permissão de vosso pai?

— Quando ele souber o que aconteceu, ele me dará razão Mãe Maria. Eu não fico nesta casa nem por um minuto a mais.

— O que aconteceu, minina? Vosmecê tá alterada. Tá com febre?

Realmente a raiva tornava o rosto de Leonor corado como se ela estivesse febril. Falar de sua decisão com Mãe Maria fazia que a moça relembrasse os acontecimentos deploráveis da noite anterior.

— Não Mãe Maria. Eu não estou doente. – ela aproximou-se da índia. – Sim. Talvez eu esteja. Doente com a hipocrisia, com a devassidão dos homens. Nunca que alguém assim irá me tocar, Mãe Maria. Eu prefiro morrer.

Mãe Maria jogou-se aos pés de Leonor.

— Não! Minina não fala isso! Meu coração parte em dois.

A jovem ajoelhou-se e abraçou a velha índia.

— Desculpa Mãe Maria. – ela enxugou as lagrimas do rosto vincado. – Eu não vou morrer se vosmecê me ajudar. Anda, arruma tudo por aqui e acorde João Guilherme.

As duas se levantaram e Leonor foi na direção da porta.

Minina, aonde vosmecê vai?

— Vou honrar o nome de meu pai. Assim como ele, eu nunca hei de faltar com a verdade. E D. Constancio precisa saber disso. – ela saiu do quarto.

Leonor desceu as escadas e, como esperava, encontrou D. Constancio as voltas com livros caixas.

— D. Constancio... – Leonor posicionou as mãos na frente do corpo.

— D. Leonor! – D. Constancio levantou-se da cadeira e foi ao encontro de Leonor com as mãos estendidas. - Eu sei que a senhora é uma moça prendada, consciente de seus deveres. Mas não precisaria ter se levantado tão cedo.

Ela desviou-se do toque dele.

— Eu levantei-me com o amanhecer, pois sei que o senhor também se levanta com o raiar do sol. E eu não teria sossego se não lhe falasse logo.

— Então diga, minha futura esposa. Por que é tão urgente que vosmecê falasse com tão humilde servo.

— Eu vim dizer ao senhor que estou deixando esta casa e voltando para Rio Santo.

Constancio a fitou como se ela tivesse falado em língua estranha.

— Como D. Leonor? Acho que não compreendi vosmecê.

— Estou a dizer ao senhor que estou voltando para Rio Santo. E eu vou contar ao meu pai de seu comportamento deplorável.

— O que?! D. Leonor eu estou tentando entender vossas palavras, mas eu só posso atribuí-las ao nervoso.

— Não, meu caro. – Leonor caminhou pela sala. – Eu estou tranquila e convicta de minha decisão.

— Sim, eu estou a ver. Mas de que comportamento deplorável vosmecê está a falar? Quando eu fui indelicado com vosmecê?

— Estou a falar da cena de devassidão sua e da índia chamada Carmo. – Leonor o viu ficar pálido. - Eu vi o senhor violentá-la. O senhor a machucou. E meu pai nunca permitiria o meu casamento com um hipócrita devasso como o senhor.

— Já chega! – D. Constancio avançou para Leonor e a segurou pelos braços.

— Solte-me, canalha!

— Vosmecê quer ir embora, pois saia dessa casa e eu destruo a vosmecê e a seu pai. – ele a jogou para o lado.

— Mentiroso!

— Veja bem, minha criança inocente. Se vosmecê sair dessa casa, eu me encarregarei de jogar o seu nome e o de vossa família na lama. Direi que descobri que vosmecê não é pura, que andas pelo mato com seus bugres fazendo sabe lá o que. Só isso fará que as más línguas falem de vosmecê daqui até Portugal. E isso poderia até ser motivo de morte. Pois vosso pai, do jeito que é, haveria de preferir uma filha morta a uma filha desonrada.

— Vosmecê nunca faria isso... – Leonor estava tão branca quanto cal.

— Faria... Faria sim. Eu nunca perderia a chance de me unir ao homem mais poderoso da vila depois de Dom Bras. E só para vosmecê saber: Vosso pai nunca desfaria o nosso contrato de casamento. E sabes por quê? Porque não tem nenhum homem nessa terra que ainda não tenha se deitado com uma índia. Isso inclui seu poderoso pai. Provavelmente até seu irmão Martim já virou homem entre as pernas de alguma índia aí por esse mato a fora.

— Mentira! Mentira! Meu pai nunca trairia a memória da minha mãe dessa forma.

— Pobre criança. És tão inocente... Diga a ele o que descobriu e veja se não é verdade. – D. Constancio voltou a sentar-se. – E então? Vamos esquecer esse triste episódio e tudo ficará como dantes, minha cara?

— Nunca. – Leonor bateu o punho cerrado na mesa. – Nunca, vosmecê ouviu? Aquela cena está gravada em minha cabeça. E, embora eu tenha que ceder a vossa chantagem, vosmecê nunca me terá. Eu me caso, mas hei de tornar vosmecê viúvo na mesma noite. – dito isso Leonor fugiu da sala.

Sem se abalar, D. Constancio pegou seu cachimbo e fumou, vendo a fumaça dissipar-se sobre sua cabeça. Se sua noiva era tão ardente assim para defender um bugre, imagina o que não faria inflamada pela paixão carnal? O homem sentiu-se endurecer com tal pensamento.

***

Mãe Maria estava terminando de arrumar João Guilherme quando Leonor entrou no quarto.

— E então? Já podemos ir. – a velha índia voltou-se e se deparou com a palidez cadavérica de sua senhora.

Minina...— ela amparou Leonor nos braços. A jovem parecia estar a ponto de desmaiar. – O que aconteceu?

— Mãe Maria, eu perdi... Estamos presos aqui.

Mãe Maria olhou para João Guilherme que acompanhava a cena assustado.

— João, vosmecê vá para a cozinha e pede teu café. Andas minino.

O garoto saiu em disparada para fora do quarto. Mãe Maria colocou Leonor sentada em uma cadeira e perguntou:

— Agora, fala para tua velha ama. O que atormenta a vosmecê.

— Mãe Maria, eu vi. O noivo que meu pai arrumou... Estava a violentar uma das índias. A mais nova. A que chamam de Carmo.

Mãe Maria olhou para Leonor como se ainda aguardasse algumas palavras. Depois, a velha levantou-se e continuou a arrumar o quarto.

— Mãe Maria, o que achas disso? Confrontei o patife, mas ele me chantageou, dizendo que macularia minha honra se eu voltasse para Rio Santo. – diante do silencio da índia, Leonor a chamou: - Mãe Maria! Escutou o que eu disse?

— Sim. – a velha voltou-se para ela com um suspiro irritado. - E o que vosmecê achou que ele iria fazer? Que ele iria se desculpar e se punir por ter se deitado com uma índia? Que ele iria se jogar aos teus pés e te implorar perdão? Não, minha criança. Nenhum homem faria isso. É, na cabeça deles, seu direito de homem. Achas que isso já não aconteceu comigo, ou com Genoveva ou com Iná?

— Iná? Mas ela é uma criança...

— Vosmecê é uma criança. João Guilherme é uma criança. Vosmecês são brancos. Nós somos escravos. Nosso corpo não nos pertence, criança.

Leonor levantou-se da cadeira e foi até a janela. Seus passos eram devagar o corpo estava ligeiramente curvado.

— Então, Mãe Maria, sou tão escrava quanto vosmecê. Pois o meu corpo também não me pertence para ser dado, com o conhecimento de meu pai, a tão vil criatura. Mas o meu coração há de ser livre. – ela prometeu a si mesma ao ver o mar à sua frente.

***

Thomas fitava o verde exuberante à sua frente sem acreditar.

— Esse lugar é real? – perguntou a Swan

— É lindo, não é? Eu também tive essa reação quando eu vi esse lugar pela primeira vez. Mas não se iluda. Mesmo lugares assim têm seus perigos.

Os olhos do inglês brilharam.

— É uma colônia espanhola?

— Não. Aparentemente é desabitada por europeus. É chamada de San Sebastian Island (Ilha de São Sebastião). Mas, em outras vezes, vimos uma horda de selvagens. Dizem que são canibais. – Swan completou em voz baixa.

Thomas sentiu a curiosidade aflorar. A adrenalina correu em seu sangue. Estava sentindo falta de lutar. A última vez que seus dotes como soldado foram postos à prova foi há alguns dias, quando a esquadra de Cavendish capturou uma caravela portuguesa nas costas da colônia.

Os soldados a bordo lutaram ferozmente, mas não foram capazes de vencer. Cavendish roubou a carga e, de quebra, aprisionou o comandante, tornando-o piloto do Leicester, já que o deles havia perecido na batalha.

Gaspar Jorge, assim se chamava o português, logo se acostumou aos ingleses, pois não tinha outra escolha. Mas ele sempre permanecia isolado deles. Solitário.

Horton começou a se sentir curioso em relação ao português e se aproximou dele. No inicio, havia a barreira do idioma, mas aos poucos, através de mímica, os dois foram se aproximando.

Gaspar passou a ensinar o português à Thomas e, em retribuição, Thomas ensinava inglês através de objetos ou do que estava ao redor deles, o que não era muita coisa.

O diálogo entre os dois foi sendo enriquecido à cada dia. Claro que a amizade entre os dois haveria de chamar a atenção de Cavendish. Mas o pirata gostou da proximidade e do aprendizado de Thomas. Assim, haveria um entre eles que falava a língua da mais nova colônia espanhola no novo mundo.

— Vamos Horton. – chamou Swan. – Você não quer sair um pouco dessa banheira velha?

— Acho que todos nós queremos, velho. Você vai descer também.

— Descer?! – Swan deu uma cuspida para o lado. – Eu não. Não quero virar comida de índio.

— Talvez eles que acabem virando nosso almoço! – disse rindo um dos marinheiros. – Estou com uma fome que eu comeria um desses índios. – uma explosão de risos acompanhou as palavras do marinheiro.

— Pois eu prefiro me fartar com uma das índias. Um camarada me disse que são lindas.

— Ah eu só acredito vendo... – respondeu outro

— Atenção seu bando de rufiões! – Cavendish apareceu no convés com dois de seus capitães. – Precisamos de água potável e víveres. Levem os barris vazios e tragam bastante alimento. Horton!

— Senhor?

— É o segundo melhor atirador do grupo. Reúna alguns homens para a guarda dos que vão à terra. E lembrem-se homens, os perigos dessa terra selvagem estão atrás de qualquer arvore ou pedra.

— Sim Senhor! – respondeu o grupo que ia descer.

Thomas chamou uns quatro homens. Os melhores no uso do arcabuz. Bons de mira e rápidos no raciocínio.

O grupo desceu do navio em botes e rumou para a praia. Na praia, Thomas olhou em volta. A exuberância da mata fechada ainda era mais impressionante do que de longe e ele se sentiu pequeno diante de tudo aquilo.

Aves voavam entre as arvores, fugindo daquilo que elas consideravam uma invasão de seu território. Os homens que já haviam visitado aquela parte do mundo percorriam com segurança entre as arvores comendo as frutas ao mesmo tempo em que as colhiam, aliviando a forçada dieta a base de carne salgada e biscoitos.

Logo eles chegaram à uma cachoeira. Os homens depositaram os barris no chão e, tirando as roupas, caíram na água. Depois da permanência forçada nos navios, eles pulavam e brincavam como crianças travessas, curtindo a liberdade antes de voltarem a rotina dura da viagem.

Depois de se refrescar, Thomas ainda observou os homens por algum tempo antes de pegar a sua arma e começar a caminhar.

— Ei Horton! – um dos marinheiros o chamou de dentro da água. – Aonde vai?

— Caminhar e verificar se encontro alguma caça. Voltarei logo.

Thomas começou a caminhar por entre as arvores, acompanhando o fluxo da água. Logo ele encontrou outra cachoeira onde um grupo de mulheres e crianças se divertiam. Eram os nativos da terra. Seu corpo logo reagiu a visão das mulheres nuas, de corpo moreno e longos cabelos pretos. Algumas ainda bastante novas. As crianças corriam por entre as pedras e pulavam na água usando os ramos que desciam das árvores.

Um alto grunhido animal foi ouvido pelo grupo e as mulheres correram para pegar as crianças. Mas uma não foi tão rápida em fugir e ficou na mira de uma besta enorme.

Algo que parecia um porco, mas era pelo menos duas vezes maior do que um. O animal cavava a terra com suas patas mirando a índia e a criança que ela carregava no colo.

Thomas tinha que pensar rápido. O animal raivoso iria dilacerar os dois nativos se ele não agisse. Ele desceu rapidamente já com a arma em punho.

O animal detectou a presença de Thomas e avançou da direção do inglês. Ele fez mira e atirou. Atingido, o bicho caiu no chão, mas ainda avançava em sua direção. Thomas recarregou a arma e atirou novamente.

O porco do mato, ainda grunhindo, caiu a metros dele. O inglês abaixou a arma respirando profundamente. Agora, frente a frente com o animal, ele podia ver as presas poderosas. A mãe e o menino índio não teriam nenhuma chance.

Thomas olhou na direção em que os dois deveriam estar, mas não os viu. Ao invés deles, três índios, altos e fortes o olhavam ameaçadores. Carregavam uma espécie de arco e flecha. Todas apontadas em sua direção.


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