Acompanhante escrita por Winston


Capítulo 1
A sombra




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Já fazia algum tempo que Laura observava aquela sombra se mexendo no canto do quarto.

A princípio, quando aparecera pela primeira vez em uma noite particularmente chuvosa, ignorou-a, colocando a culpa nas nuvens que passavam sobre a lua minguante e causavam aquela brincadeira de luz e sombras pela janela.

Mas não demorou muito a tirar aquela hipótese da cabeça quando a sombra se moveu para o outro canto da parede.

Ela parecia se balançar de um lado para o outro como um balanço de um parque, e por um segundo Laura podia jurar que a viu se segurar no vazio para não cair. Era sempre a mesma coisa, ela sempre percorria o mesmo caminho pelas paredes do quarto, e quando o relógio batia as quatro, desaparecia como se nunca estivesse estado ali.

Laura havia deixado de se amedrontar com ela fazia dias. Percebera que por mais que a observasse de longe, encolhida sob os lençóis com medo de cair no sono, não adiantava de nada.

A sombra não mudava seu rumo e também não se aproximava.

Demorou quase um mês para tomar coragem de fazer alguma coisa.

Depois de um dia cansativo, em que tudo o que fizera parecia dar errado, Laura deixou-se cair na cama ainda com os cabelos molhados, inspirando profundamente o cheiro de amaciante de coco dos lençóis e aproveitando o barulho constante de carros e pessoas ainda acordadas na rua enquanto esperava pela sombra.

Acabara virando a única coisa constante em sua vida corrida, e quando a viu surgir perto da escrivaninha do outro lado do quarto quase abriu um sorriso.

— Ei — cumprimentou pela primeira vez sua companhia estranha, se encolhendo um pouco debaixo das cobertas como se esperasse ser atacada.

A sombra apenas parou seus pequenos movimentos habituais, ficando paralisada na parede quase como uma sombra normal. Laura tomou aquilo como algo positivo.

— Me chamo Laura — apresentou-se.

Quando pensou em fazer algo não tinha um plano certo em mente, e agora percebia o quão fora de si parecia ao falar com uma sombra. Uma sombra que ainda sim podia ser coisa de sua cabeça. Nunca abandonara essa possibilidade.

Pensou ter caído no sono esperando uma resposta, pois teve que abrir os olhos quando um som que se diferenciava do comum da rua entrou em seus ouvidos.

— Não tenho nome — disse a sombra, em meio a chiados, barulhos de estática e um leve ruído de vidro sendo estraçalhado.

Laura tentou amenizar a própria respiração, focando-se apenas no que deveria ser a voz em meio a tantos outros barulhos estranhos, e mesmo assim pareceu ter demorado uma eternidade antes de se atrever a olhar outra vez na direção da sombra.

Ela havia se movido para o segundo lugar de sempre.

— Por que? — perguntou a garota, ignorando a estranheza da situação.

— Nunca falam comigo. — A resposta veio outra vez acompanhada dos chiados e estática. — Me chamam de sombra, mas não gosto. — moveu-se outra vez, indo para seu terceiro ponto.

— De que nome você gosta? — Laura começava a achar que estava delirando, então não via problema em entrar de vez naquela loucura.

A sombra pareceu pensar por um instante, se balançando lentamente de um lado para o outro no que parecia ser uma forma de pensar.

— Gosto quando me chamam de Acompanhante — respondeu em meio a outro vidro quebrado.

— Acompanhante? Do que?

— Da morte, da solidão, da tristeza. Nunca fico por muito tempo pra ser de uma só. — A sombra pareceu ondular pela parede, subindo por ela até alcançar a esquina do teto.

Laura notou que aquele não era um de seus lugares habituais, mas não disse nada a respeito, ainda mais quando sua cabeça tentava assimilar o que ela havia dito.

— Se é assim, porque está no meu quarto esse tempo todo? — Não tinha certeza se queria saber, mas a pergunta já havia rolado para fora de sua boca e não tinha como segurá-la mais.

— Pra nós o tempo não é contado em dias. Pra nós, que vivemos tanto, o tempo não passa na mesma velocidade que para você, Laura. — Ao dizer seu nome, os barulhos pareceram aumentar e Laura fez uma careta. — Estou aqui pra te fazer companhia — terminou a Acompanhante.

Laura acompanhou enquanto ela se movia pelo teto, parando exatamente no ponto acima de sua cama. Engoliu em seco, focando o olhar na forma negra a poucos metros.

— Por que? — Forçou a pergunta a sair, agradecida por não ter gaguejado.

— Gosto de conhecer aqueles que vão ser levados.

Abriu a boca para perguntar o que aquilo significava. Ser levada para onde? Mas a sombra fez um movimento brusco, se soltou da parede e pareceu cair sobre Laura com uma versão ainda mais caótica dos sons de antes.

Quando acordou no dia seguinte, não sabia dizer o que exatamente acontecido, tentando ignorar a sensação pesada que tinha no coração ao continuar com seu dia normalmente.

Pelo menos ate a noite seguinte, quando a Acompanhante não aparecera e Laura não conseguira dormir.

Sentia o coração com dificuldade de bater e a respiração pesada, mesmo sabendo que do lado de fora o tempo não poderia estar mais aberto.

Escondeu o rosto com os braços, choramingando uma vez antes de virar-se de lado e abraçar o próprio estômago desejando que aquilo passasse logo.

— Quer que acabe? — O som da voz da Acompanhante soou dentro de sua cabeça, como se estivesse alojada ali.

Laura não teve forças nem para abrir os olhos para saber se ela estava mesmo na parede ou não, mal conseguindo assentir com a cabeça.

— Você não me perguntou porque nunca fico muito tempo — continuou, como se a pergunta anterior tivesse sido apenas retórica. Ou nem ao menos tivesse sido dita. — Movimentos sempre iguais, apenas pela noite. Nenhum humano nunca deu muita importância a minha presença… e os não-humanos são fortes demais.

Seu coração se apertou dolorosamente, mas mal conseguira ouvir o próprio grito de dor com os ruídos horríveis que vinham com a voz da acompanhante, que não parava de falar, dentro da sua cabeça.

— Mas você… você me fez ser notada, me fez querer ser curiosa outra vez ao falar comigo. Seu coração não é tão forte, sua mente pouco divisível. — Ela tomou seu tempo para prosseguir, parecendo pensar bem nas próximas palavras. — Me desculpe, mas você não passa dessa noite, Laura.

As mãos de Laura foram rapidamente até o lado esquerdo do peito, apertando a blusa de pijama entre os dedos com a dor alucinante que tomava conta de todo seu corpo.

Podia jurar que o tempo havia fechado e começara a chover.

Tentou respirar fundo, puxar todo o ar possível para dentro dos pulmões em meio a tanta dor.

Só teria uma chance, e por mais que tivesse dias ruins, noites ruins, meses ruins, não queria morrer. Muito menos pela curiosidade de uma sombra.

— Vá embora. — Usou quase todo o ar que havia reunido naquelas duas palavras, e não sabia se era porque estava começando a desmaiar, mas a dor pareceu diminuir. Puxou ar outra vez. — Me deixe em paz, vá embora! — repetiu, tentando soar mais forte ao bater o punho fechado no colchão.

— Mas é mesmo especial. — Ouviu a sombra dizer em sua cabeça, mas até mesmo os chiados pareciam mais baixos. — Poucos sabem que acompanhantes deixam de sê-lo quando se declara que não os quer. Pensei que era bem vinda. — Seu tom de voz poderia ser considerado triste, se Laura estivesse em condições de notar algo assim.

Outro ruído de vidro sendo estraçalhado e Laura sentiu algo dentro de si ser puxado para fora. Não segurou o grito horrível que saltou de sua boca com a sensação, apenas notando que havia levitado alguns centímetros do colchão quando voltou a cair sobre ele com um ruído surdo.

Todo o ar de seus pulmões pareceu voltar de uma vez, juntamente com as batidas de seu coração que pareciam apressar o passo para voltar a bombear o sangue normalmente outra vez.

Doía, mas era uma dor com a qual podia se acostumar.

Quando finalmente abriu os olhos outra vez o relógio marcava as três e meia da madrugada, mas não havia mais sinal da Acompanhante.

Laura sorriu cansada, abraçando o travesseiro ao afundar o rosto em busca do cheiro de coco longínquo.

Naquela noite decidira não prestar mais atenção em sombras que se mexiam, tendo certeza, pela primeira vez, de que certas coisas foram feitas para se ignorar.

A Acompanhante não voltara mais. Nem naquela noite, nem em nenhuma outra que se seguiu.


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Notas finais do capítulo

Então, é isso.Espero ter feito certo, nunca participei dos desafios desse grupo, então rola um cadinho de medo.Obrigada quem leu *-*