Skins - Juventude à Flor da Pele escrita por Jel Cavalcante


Capítulo 4
S01E04 - Jorge


Notas iniciais do capítulo

As coisas não vão nada bem na vida de Jorge, até que novas pessoas entram no seu caminho, prometendo deixar tudo ainda pior.



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M.I.A. - "Paper Planes"

Os passos do rapaz, no jardim da casa gigantesca onde morava, teciam uma linha imaginária em meio ao ritmo da música que tocava nas caixas de som. Livre como uma pluma ao vento e se deixando levar pela magia daquele dia ensolarado, o menino transpirava alegria e presenteava a natureza com a arte mais pura já inventada pelos seres humanos: a dança.

Acima dele, as nuvens acompanhavam radiantes o encanto daquela apresentação tão espontânea e cheia de vida. Jorge abria os braços como se saudasse a plateia grandiosa que o assistia: o sol, os pássaros e alguns pares de olhos, que caminhavam no parque em frente a casa. E mais do que nunca, sentiu seu espírito em comunhão com o mundo ao redor, como se a realidade não passasse de um inseto na palma da sua mão.

A música parou de repente, como se tudo não tivesse passado de um sonho. Os barulhos do parque invadiram os seus ouvidos de uma vez, apresentando pra ele o mundo como realmente era: um verdadeiro caos. Bebês chorando na tentativa de caminhar com os próprios pés, cães latindo para que os donos dessem mais uma volta com eles e, pior ainda, a voz do seu pai, Alberto Cavalieri, exaltada como de costume.

— Já pra dentro, Jorge. Olha só a vergonha que você tá me fazendo passar! - gritou o pai, apanhando o aparelho de som do chão.

— Que vergonha o quê, pai? Tá todo mundo adorando, não é mesmo, pessoal? - Jorge levantou o rosto em direção ao parque, onde os mesmos pares de olhos que o assistiram dançar a manhã toda permaneceram estáticos, como se estivessem proibidos de falar qualquer coisa.

— Eu não vou discutir com você, Jorge - o senhor Cavalieri andou até a porta de entrada e esperou, impaciente, pelo filho - Anda, eu preciso conversar com você.

Jorge retornou pra dentro de casa, sendo obrigado a ouvir mais um dos típicos sermões do pai, que insistia em proibi-lo de dançar no jardim, mas logo teve a atenção desviada pra outra coisa.

— A cama dele... Hm... Vocês podem levar pro quarto da empregada - falou Rosana Cavalieri, dando ordens pros homens responsáveis pela reforma da casa - É bom que a Rute aproveita pra tirar as férias que ela tanto me encheu o saco, pedindo desde o início do ano.

— Mãe? Por que esses homens estão tirando a minha cama de dentro do meu quarto? - perguntou Jorge, no meio da bagunça. A sala estava revirada de cabeça pra baixo, com os móveis jogados por todos os lados.

— Rosana, você precisa dar um jeito no seu filho - continuou Alberto, se esquivando da cama enorme que vinha se aproximando bem próximo da sua cabeça - Você não sabe o que ele estava fazendo no jardim, na frente de todo mundo!

A mulher nem sequer reparou nas palavras do marido, já que a única coisa com que se importava naquele momento era em acatar as ordens do renomado arquiteto escocês, Scott MacGregor, que comandava a transformação da mansão dos Cavalieri em uma verdadeira obra de arte contemporânea.

— Mãe, será que dá pra me me responder? - Jorge estava começando a perder a calma.

— Rosana? Você tá me ouvindo? - perguntou Alberto, se colocando entre ela e o arquiteto.

— Será que dá pra vocês dois calarem a boca um segundo? - Rosana apontou delicadamente, com os olhos, para o rosto de Scott - Eu tô tentando ouvir a opinião do arquiteto sobre o melhor lugar pra colocar as estátuas de marfim.

Jorge e Alberto se entreolharam, impacientes, e ficaram um tempo presos no meio da bagunça. Era impossível dar um passo sem pisar em alguma das quinquilharias que Rosana havia trazido da Índia, especialmente pra reforma.

— Que seja a última vez que eu preciso chamar a sua atenção por conta disso, tá ouvindo mocinho? - reclamou o senhor Cavalieri, abrindo espaço entre duas poltronas cobertos por um um tecido grosso e áspero, provavelmente lã.

— Mas pai… Essa é a única coisa que me deixa feliz em todo o universo.

— Jorge, eu já disse pra você o que eu penso sobre isso, não disse? - Alberto se voltou pra ele, já prestes a sair de casa - Tá na hora de você parar de gracinha e se tornar um homem de verdade, assim como eu.

Jorge olhou pro terno do pai e imaginou que jamais iria se vestir daquele jeito, tão brega. Seu cachecol vermelho ao redor do pescoço e o moletom folgado que cobria suas roupas de grife eram verdadeiras armas de guerra dentro daquela casa.

— Se pelo menos eu estudasse numa escola decente… Que não fosse pública.

Jorge se referia à Escola Mundial, o lugar onde era obrigado a estudar desde sempre, simplesmente porque seu pai era um dos membros do Ministério da Educação.

— Filho, às vezes parece que você não entende nada do que eu tô falando. Será possível que você seja tão inteligente pra umas coisas mas tão burro pra outras? - Alberto fechou a porta com toda a força e deixou o filho pra trás, com um olhar perdido.

Jorge foi até o seu quarto, com cuidado pra não derrubar nada no caminho, e viu que as suas coisas todas tinham sumido. Em seguida, foi até a cozinha onde sua mãe estava conversando, toda sorridente, com o arquiteto, a fim de obter alguma resposta.

— Mãe?

— Agora não Jorge, eu tô ocupada.

— Mas… Pra onde foram as minhas coisas?

— Agora você vai dormir no quarto da empregada até que a reforma fique pronta - Rosana nem sequer olhava para o rosto dele enquanto respondia.

— O quê? Eu? Dormir no quarto daquela imunda da Rute? Você só pode tá de brincadeira comigo.

O menino ficou parado na porta da cozinha, esperando alguma reação por parte da mãe, mas não obteve mais do que um olhar irritado de quem estava prestes a perder a cabeça com ele. Sem ter o que fazer, seguiu para o quarto da empregada, onde estavam suas coisas, jogadas como se ele fosse um hóspede indesejado.

— Ótimo. Agora além de ter que ir praquela escola xexelenta, ainda vou ter que suportar o cheiro de pobre da Rute impregnado nas minhas roupas.

Chegando lá fora, Jorge percebeu que o motorista tinha sido dispensado assim como o resto dos funcionários, ou seja, ele precisaria ir de ônibus pra escola. Caminhou ao redor do parque, segurando a bolsa com cuidado pra não ser roubado, e passou por um grupo de meninos fumando maconha na grama.

— Ih, olha só a bailarina saltitante - falou um deles, apontando na direção de Jorge.

— Aposto que ele usa calcinha ao invés de cueca.

Todos riram, enquanto Jorge mantinha o olhar baixo, imaginando que aqueles "favelados" não poderiam afetá-lo de nenhuma forma.

— Ei frutinha, porque você não toma jeito de homem? - perguntou um dos meninos, se aproximando devagar.

— Pelo mesmo motivo que você nunca vai deixar de ser um pobre coitado e maconheiro - disse Jorge, parando de repente e encarando o garoto.

— Ui ui ui, parece que a mocinha ficou irritadinha.

— Que tal se a gente desse uma surra nele, pra ele aprender a respeitar a gente? - sugeriu o mais velho.

Ao ouvir a ameaça, Jorge mostrou o dedo do meio pra eles e saiu correndo. Os meninos o perseguiram até o ponto do ônibus, fazendo com que ele dobrasse a rua e tivesse que ir a pé pra escola. Jorge estava esgotado de tanto correr e, sabendo que o caminho era longo demais pra ir andando, desacelerou o passo, imaginando que não iria conseguir chegar a tempo.

— Péssimo dia pra levantar da cama - ele pensou, fazendo uma pequena pausa, esperando um milagre acontecer.

No final da rua vinha um carro com uma música alta tocando e o som de risos sobrepondo o barulho. O veículo encostou na calçada, ao lado de Jorge, e um rosto sorridente apareceu pra fora da janela.

— Tá perdido? - perguntou o motorista, baixando o volume da música.

Jorge ficou calado, com medo de ser mais alguém de zoação com a sua cara. O modelo do carro era antigo, o que rapidamente ganhou a sua desconfiança e desaprovação. O vidro da janela de trás baixou e de lá surgiram outros rostos contentes. O cheiro de maconha estava por toda parte.

— A gente tá indo pra Escola Mundial. Você não é aquele garoto da minha turma de dança?.

Jorge olhou bem pro rosto da menina e aos poucos foi se lembrando de quem se tratava.

— Ah, claro - disse Jorge, olhando pros lados pra ver se os meninos do parque estavam por perto - Você é a Valéria, não é?

— Isso! Entra aí, a gente aperta aqui atrás.

Valéria subiu no colo de Davi, seu namorado, enquanto Laura afastava pro meio. Jorge abriu a porta de trás e sentou calado, prendendo a respiração ao máximo.

— Fica à vontade - disse a menina que estava no banco da frente - Eu me chamo Margarida.

Jorge sorriu encabulado, olhando pelo espelho retrovisor.

— Do meu lado tá o Mário, meu boyfriend - Margarida continuou as apresentações enquanto procurava alguma coisa no porta-luvas - Aí atrás tá a Laura, a Valéria, que você já conhece, e o Davi.

Jorge cumprimentou a todos silenciosamente e agradeceu pela carona. Margarida tinha nas mãos um isqueiro e com ele acendeu mais um baseado. Em seguida, virou pra trás e ofereceu a Jorge.

— Ah, desculpa, eu não fumo - ele respondeu, repassando o cigarro pra Laura, ao seu lado.

— Nossa! Você é a primeira pessoa que eu conheço, da nossa idade, que não fuma maconha - comentou Davi, olhando no fundo dos olhos dele.

— E isso é bom? - perguntou Jorge, curioso.

— Depende - respondeu Davi, fazendo uma pausa enquanto recebia um beijo de Valéria.

Jorge, assim como Laura, ficou meio sem jeito com o beijo dos dois.

— Vem cá, dá pra vocês esperarem até a gente descer do carro pra se agarrarem? - reclamou Laura, tentando puxar a cabeça da amiga pra trás - Vocês parecem até dois bichos selvagens no cio.

— O que mais você não faz? - continuou Davi, após sua boca ter sido desocupada.

— Hm… Bem, eu não costumo beber, ir pra festa, essas coisas… Os meus pais não curtem muito essa "vida adolescente" - respondeu Jorge, envergonhado.

— Que fofo - disse Davi, fazendo com que as bochechas dele corassem.

Mário voltou a colocar o som nas alturas e assim o carro seguiu até a porta da escola. Lá dentro, Jorge e Valéria percorreram o saguão principal até a ala artística, onde ficava a sala de dança. Nesse momento, alguém vinha correndo em disparada e acabou esbarrando neles.

— Desculpa aí - disse Cirilo, parando de repente.

— Vê se presta atenção por onde anda, seu… Mal educado! - gritou Jorge, limpando a parte do braço que havia encostado em Cirilo.

—Mas eu acabei de pedir desculpas... - insistiu Cirilo.

— Como se isso matasse todos os germes que acabaram de pular desse seu braço imundo pro meu.

Ao ouvir tamanha grosseria, Cirilo deixou os dois pra trás e voltou a se apressar pra sua aula.

— Ual, você é hardcore ein! - comentou Valéria, antes dos dois entrarem na sala de dança.

Lá dentro, tudo era calmo e perfumado. Ao ver o menino cruzando a porta, Grace, a professora e coreógrafa oficial da escola, parou de ajustar o aparelho de som e foi até onde ele estava.

— Desculpa, Jorge, mas você não vai poder ficar aqui hoje - ela disse, delicada e meiga como sempre.

— Como assim? Eu fiz alguma coisa errada? - perguntou Jorge, confuso. Até onde ele sabia, não havia acontecido nada que pudesse impedi-lo de participar da aula.

— São ordens do seu pai.

— Meu pai? Como assim? O que ele fez? - o menino estava suando frio.

— É melhor você falar com a Minerva. Foi ela que me deu o recado.

Jorge saiu da sala enfurecido, com medo do que o seu pai tinha aprontado dessa vez.

Minerva era a diretora da Escola Mundial. Ríspida quando tinha que ser, ou seja, vinte e quatro horas por dia, e extremamente vaidosa. Mas era também uma senhora de meia idade cheia de vida e de vontade de educar todos aqueles jovens “entediados e perigosos”, como ela costumava dizer.

— Pois não? - perguntou a senhora, ao ver o filho do prestigiado senhor Cavalieri entrando na sua sala com um rosto aflito.

— Eu vim aqui saber porque eu não posso mais participar das aulas de dança - ele falou, olhando bem nos olhos dela.

— Sente-se, jovem - ela falou, procurando lembrar o nome do menino.

Para Minerva, era importante tratá-lo bem, já que o pai dele era um homem bastante influente na esfera pública, principalmente no Ministério da Educação, de onde vinham as verbas pra manter a escola.

— A professora Grace me mandou aqui porque segundo ela…

— Eu já sei - a diretora interrompeu - O seu pai cancelou as suas aulas de dança.

— Por que diabos ele… Quer dizer, com que direito ele fez isso comigo? - Jorge cerrou os punhos, tentando se conter diante da diretora.

— Por que os pais sempre sabem o que é melhor para os seus filhos, Jorginho - finalmente ela tinha lembrado o nome do menino - E além do mais agora que você vai praticar com os garotos, pode ser até melhor pro seu… desempenho social.

— O quê? Como assim treinar com os garotos? - Jorge não tinha entendido o que ela queria dizer com aquilo.

— O seu pai não te avisou? Agora você vai cumprir as suas atividades físicas no campo de futebol, com os seus colegas.

— COMO? Nem morto que eu vou ficar correndo pra um lado e pro outro atrás de uma bola estúpida feito um retardado. Não mesmo.

Jorge pegou o celular e tentou falar com o pai, porém todas as suas ligações caíram na caixa postal.

— O seu pai é um homem muito sábio, Jorge. É melhor você aceitar o que ele escolheu pra você - Minerva tinha no rosto um misto de remorso e compaixão.

Jorge levantou enfurecido e saiu da sala sem dizer nada. Lá fora, o inspetor Crawford, fiel escudeiro de Minerva, estava à sua espera a fim de acompanhá-lo até o vestiário masculino.

— O capitão do time está com o seu uniforme - disse o inspetor, observando a falta de ânimo no rosto do menino - É melhor você não tentar fazer nenhuma gracinha.

Aliviado por ter saído de perto do inspetor "asqueroso", Jorge entrou no vestiário e logo de cara já viu que ali não era o seu lugar. Os rapazes estavam só de toalha, empurrando uns aos outros na maior bagunça. Enquanto caminhava até os últimos boxes, onde tinha menos gente, avistou Mário com seu uniforme em mãos e Davi ao seu lado, sorridente como sempre.

— Então você é o nosso novo companheiro - disse Mário deixando escapar um riso debochado.

— Anda logo, Mário, deixa de frescura e dá o uniforme pra ele - ordenou Davi, um pouco mais sério.

— Eu não sabia que eles estavam aceitando mulher no time - comentou um dos garotos ao ver Jorge receber o uniforme das mãos de Mário.

— Ei galera, cuidado na hora de tirar a toalha, viu. Eu ouvi dizer que tem um engolidor de pintos solto no banheiro - continuou um dos grandalhões do time.

Jorge ouvia a tudo sem dizer uma palavra. Tudo o que conseguia pensar era que aquele inferno não estaria acontecendo se o seu pai não se metesse tanto na sua vida acadêmica e pessoal.

— Será que dá pra deixar o garoto em paz? - gritou Davi, sem medo algum de enfrentar o grandalhão.

— E se eu não tiver a fim de deixar ele em paz, você vai fazer o quê?

O garoto, musculoso feito um lutador de ju-jitsu, já vinha se aproximando de Davi, completamente pronto pra violência, quando foi impedido por Mário de prosseguir.

— É melhor você fazer o que ele disse, ou então vai arranjar treta com o capitão do time. Que tal? - disse Mário, deixando a zoeira de lado, como em poucas vezes na vida, pra ajudar o amigo.

♪ The Smiths - "This Charming Man" ♪ 

Depois da confusão, os garotos seguiram para o campo de futebol, onde o treinador já estava à espera deles. Jorge corria de um lado pro outro, desviando de cones laranjas e evitando esbarrar nos companheiros de turma. De longe dava pra ver a figura fria do inspetor Crawdford, observando atentamente os seus movimentos.

Em seguida, chegou a hora de fazer o primeiro contato com a bola. Jorge nunca tinha sequer brincado na rua com os garotos da vizinhança e o máximo que havia chegado perto daquela “coisa redonda e feia” foi quando a turminha mal encarada do parque o perseguiram com bolas de gude pelo bairro todo.

Primeiro ele teve que formar uma fila com todos os garotos, que aproveitaram o momento pra empurrá-lo sem que o treinador visse. Depois cada um tinha que chutar a bola pro gol e retornar para o fim da fila. O problema era que Jorge sempre errava a direção, fazendo com que todos rissem da sua falta de talento pro futebol.

— Relaxa, da primeira vez é sempre difícil - disse Davi tentando fazer com ele não ligasse pro deboche dos outros.

Por último havia a partida propriamente dita, o momento mais esperado da aula. Jorge ficou no time de Davi e isso diminuiu um pouco o seu desconforto. Mas, por outro lado, os outros garotos pareciam cobrar dele o mesmo desempenho de um jogador profissional.

Ele errava os passes, chutando a bola para os jogadores do time adversário. Errava o gol, quando tentava um chute direto. Errava as cobranças de falta, que ele era obrigado a fazer sempre que marcavam o derrubavam, ou seja, durante o jogo inteiro. E pra completar ainda fez um gol contra, enfurecendo até mesmo o treinador.

Resultado: o corpo todo sujo de lama, canelas roxas de tanta pancada, cabelo desarrumado, um corte na mão e uma porção de olhares enfurecidos em sua direção. Um cenário completamente diferente do que costumava acontecer nas aulas de dança. Mas, como disse a diretora Minerva, o seu pai só fez aqui pro bem dele. Jorge só não conseguia entender qual era o conceito de "bem" que existia na cabeça dura do senhor Cavalieri.

— E aí, deu pra sobreviver né? - comentou Davi no vestiário.

— É… tirando o fato de que eu fui humilhado de todas as formas possíveis em menos de uma hora, deu sim - Jorge tentava reunir um mínimo de senso de humor naquele momento catastrófico.

— Humilhação foi o que a gente fez com a esquisitona da sala na semana passada - disse Mário com o mesmo tom de voz de bobalhão que ele usava pras suas piadas sem graça.

— A tal da Marcelina, né. Eu ouvi falar - enquanto conversavam, Jorge não conseguia deixar de reparar em Davi, tirando a roupa na sua frente - Eu só espero que na saída da escola eu não encontre um exército de pessoas com bexigas nas mãos à minha espera.

— Relaxa, você não faz o perfil. Você só é meio… - Davi não sabia como dizer aquilo.

— Gay? - perguntou Jorge, fazendo com que todos olhassem pra ele ao mesmo tempo - O que foi? Será possível que vocês são tão pobres de cultura que nunca conheceram um homossexual antes?

O vestiário ficou em completo silêncio por um bom tempo. Alguns até sentiram vontade de bater nele, pela ousadia de chamar todo mundo de "pobres de cultura", coisa que eles nem ao menos sabiam o que significava, mas por consideração ao capitão do time, que parecia estar do lado do menino, ninguém teve coragem de se manifestar.

— Desculpa se eu… - Davi falou baixinho enquanto amarrava os cadarços.

— Relaxa. Eu já tô acostumado com esse tipo de situação - disse Jorge terminando de se enxugar.

Agora era Davi quem reparava no corpo dele.

— Vem cá, o que você acha de sair com a gente hoje à noite pro pub aqui do lado? - perguntou Davi, mais uma vez com um sorriso irresistível.

Mário, que estava ouvindo a conversa, tossiu disfarçadamente, como se não tivesse gostando da ideia de convidá-lo.

— Eu acho melhor não… Aquele lugar deve ter cheiro de barata… - disse Jorge, observando a cara de incômodo de Mário.

— Você que sabe - disse Davi, insatisfeito.

Jorge terminou de se arrumar e saiu do vestiário, sem sequer se despedir.

Na saída, o menino cruzou com os ex-colegas da turma de dança, e sentiu inveja deles.

— Como pode um bando de gente tão medíocre poder fazer aula de dança e eu não? - ele se perguntou, procurando a direção onde ficava o ponto de ônibus.

Depois de ter passado cerca de vinte minutos esperando no sol e outros quinze sendo espremido contra as costas de um garoto, encharcadas de suor, Jorge desceu próximo à sua casa e por um milagre não cruzou com os meninos do parque. Passou pelo jardim rapidamente e, ao entrar em casa, reparou tanto na bagunça, que continuava a mesma, quanto no silêncio, como se não tivesse mais ninguém em casa.

Subiu as escadas, à procura da mãe, e, quanto mais se aproximava do quarto dos pais, mais dava pra ouvir um gemido estranho e contido. Empurrando devagar a porta, que estava entreaberta, percebeu que sua mãe estava na cama com alguém. Seu corpo se voltou pra trás, de súbito, antes que ele pudesse ver alguma coisa, porém, ao lembrar que naquele momento seu pai deveria estar no trabalho, resolveu dar uma rápida espiada, só pra ter certeza do que estava acontecendo.

— Mãe? - exclamou Jorge, ao ver que o homem na cama era o tal arquiteto escocês cujo nome já havia esquecido.

— Jorge? O que você tá fazendo aí parado? Fecha essa porta agora e vai já pro seu quarto! - gritou Rosana, cobrindo os seios com o lençol.

Jorge saiu correndo, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, aterrorizado com a cena que havia acabado de ver. Nem no seu pior pesadelo imaginou ver a mãe na cama com outro homem, e naquele momento tudo o que mais queria era sair dali.

Ao passar novamente pela sala, notou a quantidade absurda de estátuas e quadros que Rosana tinha comprado especialmente para a nova decoração da casa. Jorge se aproximou da bolsa de tacos de golfe do seu pai, misturadas em meio a desordem dos móveis espalhados pelo local, e tirou um deles, segurando firme.

— IDIOTAS! - gritou Jorge destruindo as estátuas e os quadros, enfurecido - Todos vocês são uns idiotas. TODOS!

O chão ficou coberto de cacos de vidro e porcelana, e mesmo assim o garoto não desistiu até quebrar cada um dos objetos que pertenciam tanto à sua mãe quanto ao seu pai. Depois disso, saiu correndo para o meio da rua, acelerado como um trovão, sem rumo e sem dinheiro algum no bolso.

Por sorte, um caminhão que transportava galinhas para o açougue próximo a escola passou por ele e, em uma reviravolta complexa do destino, o menino acabou aceitando a carona, indo parar ao lado de um motorista velho e fedido, mas que o ajudou sem problemas a chegar no pub onde estavam Davi e sua turma.

Entrando no pub, Jorge percebeu que o lugar era mais agradável do que ele pensava. Cadeiras acolchoadas, paredes bem decoradas e um som ambiente tranquilo. A única mesa que fazia bagunça, porém, era a de Davi, onde Mário se encontrava em cima de uma cadeira, gritando pro garçom trazer mais uma rodada de martíni.

— Martíni? - pensou Jorge - Pelo menos esse pessoal tem bom gosto.

Na mesa estavam todos os que ele havia conhecido mais cedo. Laura, Margarida, Mário, Valéria e, como não poderia faltar, Davi e seu sorriso contagiante.

— Olha só quem apareceu - disse Davi espantado com a presença do menino.

Mário desceu da cadeira, incomodado com a chegada de Jorge no local. As meninas, porém, ficaram bastante animadas, conseguindo inclusive abrir espaço pra que ele pudesse se sentar.

— Senta aqui, Jorge - Convidou Valéria, para uma cadeira que ficava ao seu lado e exatamente de frente para Mário e Davi.

— E então, o que você vai beber, uma água com gás? - perguntou Mário, em tom de piada.

— Eu tô precisando de algo realmente forte hoje - disse Jorge, respirando fundo.

— Ué, aconteceu alguma coisa? - o rosto de Davi mudou de repente.

— É Jorge, mais cedo você falou pra gente que nem bebia e tal - comentou Laura, interessada no que o garoto tinha pra contar.

— Eu tive um dia cheio hoje, e tudo o que eu mais quero agora é esquecer da vida lá fora - Jorge olhou para o rosto de todos. Estavam tão atenciosos com ele que até pareciam ser seus amigos e aquilo o fez se sentir um pouco mais à vontade.

O garçom trouxe uma rodada completa de martíni e assim o grupo permaneceu conversando e se divertindo até escurecer. Em pouco tempo, Jorge já tinha tomado cinco copos, e a sua visão estava começando a ficar meio turva. Com o tempo, o seu olhar foi se distanciando dos outros e cravando-se fixamente no rosto de Davi, o que não agradou Valéria nem um pouco.

— Você tem uma pele tão macia… - comentou Jorge olhando para Davi.

Nessa hora todos já estavam tão bêbados que nem sequer notaram o elogio, exceto, claro, Valéria, a principal interessada no assunto.

— Eu sei bem disso, Jorge - a menina já estava vermelha de raiva - Eu não sei se você se esqueceu mas nós somos namorados, lembra?

A conversa parou de repente e o grupo se voltou para Jorge, que não parecia ter entendido o recado muito bem.

— A sua pele também é muito bonita, Valéria. Se não fosse essa espinha no meio da sua testa, eu até diria que está deslumbrante.

Mário começou a rir, sendo necessário levar um pisão de pé da sua namorada, Margarida, pra entender que deveria para imediatamente com aquilo. Valéria levantou às pressas, seguida de Laura, e as duas foram ao banheiro. Enquanto isso, Davi e Jorge continuaram a conversa, que agora era sobre a aula de futebol.

— Você se saiu muito bem pra uma primeira aula, sabia? - comentou Davi, bebendo mais um gole de martíni.

— Também, com um ajudante que nem você, que me encheu de dicas super úteis - Jorge olhou subitamente para Mário - Talvez você devesse abrir mão do cargo de capitão....

— Hahaha - debochou Margarida - Tá vendo, amor, até ele acha que o Davi é melhor que você. Talvez esteja na hora de você se aposentar do time.

— Eu não sei o que um cara como você foi fazer ali - disse Mário, retribuindo o olhar irônico para Jorge - Porque se foi pra pagar de macho, desculpa mas não funcionou.

— Uooooool! - gritou Margarida, colocando lenha na fogueira.

— Eu não preciso pagar de macho pra ninguém, seu grosso - respondeu Jorge, prestes a se levantar - Ao contrário de você, eu sou muito bem resolvido com a minha vida.

Jorge saiu às pressas em direção ao balcão, deixando Mário furioso a mesa.

— Você não precisava ter tratado ele assim - disse Davi, reprovando a atitude do amigo.

No balcão, Jorge pediu uma dose de tequila e, quando deu por conta, Valéria estava ao seu lado, falando alguma coisa em voz baixa.

— Eu nunca vi uma pessoa pra vomitar mais do que a Laura. É incrível - falou Valéria, consigo mesma.

— Oi? - perguntou Jorge, sem entender muito bem o que ela estava falando.

— Ah, é você… - ela disse, deixando o cardápio de lado e chamando o garçom - Uma dose de tequila, por favor.

As duas doses de tequila chegaram ao mesmo tempo, junto com pedaços de limão e uma tigela de sal. Os dois se olharam, surpresos por terem pedido a mesma coisa, e beberam tudo de uma vez. Instantaneamente, o álcool fez efeito, deixando eles ainda mais bêbados.

— Então é isso que gays fazem? Tentam roubar o namorado dos outros na maior cara de pau? - perguntou Valéria, ácida.

— Você não deveria ser tão insegura assim… Tá na cara que o Davi te ama - disse Jorge, reparando que ela tinha passado maquiagem pra esconder a espinha na testa.

— Eu sei disso. O problema são os outros que, assim como você, confundem o sorriso natural dele com uma cantada.

— Você só pode tá maluca - falou Jorge, voltando pra onde estavam os outros - A gente é só amigo, relaxa.

Na mesa, Davi estendeu um copo cheio de martíni, o último da rodada, pra ele, enquanto Valéria chegava pelo outro lado com um abraço aconchegante.

— Valeu, mas eu já tô indo embora - disse Jorge, esperando que eles não cobrassem dinheiro dele, já que ele tinha deixado a carteira em casa.

— Ué, mas já? - perguntou Valéria, sarcasticamente, enquanto dava um beijo molhado na boca de Davi, bem na frente dele.

Jorge pegou o copo cheio, que até então tinha se recusado a tomar, e despejou todo o líquido na cabeça da menina.

— Nossa, Valéria, o que aconteceu com o seu cabelo? - ele falou e saiu em seguida.

Dava pra ouvir a risada de Mário e os gritos de Valéria, provavelmente sendo segurada feito uma louca pra não ir atrás dele. O problema agora seria chegar em casa à pé, já que não tinha dinheiro nem pro ônibus, nem pra pegar taxi, e dessa vez não poderia contar com a sorte de outro caminhão de galinhas aparecer do nada oferecendo carona.

A caminhada durou cerca de quarenta minutos, mas como ele estava completamente bêbado, o tempo passou mais rápido que o normal. Quando ele se deu conta, estava dobrando na rua do parque, já bem perto de casa.

— Agora você tá ferrado, seu viadinho - falou uma voz grossa, por trás dele.

Das sombras das árvores, surgiram mais uns três ou quatro garotos, os mesmos que o perseguiram de manhã.

— Se vocês derem mais um passo eu juro que começo a gritar - disse Jorge, assustado.

— Como é que você vai gritar, com a boca toda arrebentada? - perguntou o mais velho, indo pra cima dele com tudo.

Os primeiros socos foram realmente difíceis de aguentar, mas depois de um tempo, o menino se acostumou com a dor e com a frieza do chão. Tudo aconteceu muito rápido. De repente, um carro parou do seu lado e um homem de paletó saiu de dentro, enfrentando os garotos.

— Deixem o meu filho em paz seus marginais! - gritou o senhor Cavalieri, empurrando o mais velho pra longe.

Nesse momento, o menor de todos pegou uma pedra no chão e atirou na cabeça do homem. Em seguida, os garotos saíram em disparada, sumindo na escuridão do parque. Jorge estava com o rosto todo ensanguentado.

Perfume Genius - "Normal Song"

— Pai? O senhor tá bem - Peguntou Jorge, sem conseguir levantar. Suas roupas estavam sujas e a sua respiração era fraca.

— Foi só uma pancada de leve - disse Alberto, deixando a dor de lado pra levantar o filho machucado.

Quando Jorge foi erguido, deu pra ver o fio de sangue descendo da testa do pai. Os dois estavam abraçados, enquanto andavam com dificuldade até o jardim de casa.

— Pode ficar tranquilo que eu vou ligar pra polícia assim que a gente entrar - disse Jorge, apertando o pai com força.

Alberto ficou calado um tempo, espantado com a decisão firme do filho, e naquele momento, mais do que em qualquer outro, percebeu que Jorge, acima de tudo, era um Cavalieri, assim como ele.

— A sua mãe me trocou por aquele tal de Scott, o arquiteto, e foi embora…

As palavras de Alberto doeram mais do que todos os chutes que ele havia levado no estômago. Além disso, dava pra sentir um cheiro de cachaça vindo da boca do pai, algo que até então era inadmissível para um "Cavalieri de respeito".

— Eu sei… - disse Jorge, limpando o sangue que escorria da sua boca - Eu vi os dois juntos hoje à tarde… Foi horrível, pai.

— Eu imagino… - Alberto parou um segundo, antes de entrar em casa - Você andou bebendo, Jorge?

— Sim... E você também, pelo visto.

Os dois riram um pro outro.

— Parece que agora somos só nós dois - disse Alberto, abrindo a porta com cuidado.

— Nós e essa bagunça maldita que a gente vai ter que limpar, sozinhos- falou Jorge, surpreso com a destruição que ele mesmo causou.

Abrindo caminho entre os destroços, os passos dos dois pareciam um só. Pai e filho. Ambos abandonados e machucados. Talvez o tempo os fizesse esquecer aquela noite. E talvez o amor voltasse a aparecer por aquelas bandas, mais cedo ou mais tarde. Mas o laço que se formava ali, em meio a cacos de vidro e móveis despedaçados, entre os dois e ninguém mais… Esse não se romperia jamais.


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Notas finais do capítulo

tô achando vcs tão calados... enfim, mais um cap. pra vcs

me digam se querem a continuação, pfvr!

bjssss!



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