A Dança dos Condenados escrita por Dama dos Mundos


Capítulo 4
Destino Incerto


Notas iniciais do capítulo

Focado no mundo de Kuro



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Foi-lhes difícil encontrar o que buscavam, no fim das contas… mas o trabalho incansável, através dos meses, somando quase um ano depois que o contrato entre Kuro e Akira tinha sido firmado, deu resultado. Eles foram capazes de encontrar aquele portal, aquela dobra que, com toda a certeza – era o que o demônio dizia – daria para levá-los a seu mundo.

— Tem certeza disso, Kuro?

— Está duvidando das minhas capacidades mentais, humano?

— Poderia me chamar pelo nome uma vez, para variar… — ele suspirou, enquanto matraqueava a ponta dos dedos sobre o cabo de sua katana. Havia acabado de fumar um cigarro, e percebia com certa indignação que poderia ser o último. Mas era sempre prudente não abusar do vício, afinal se sobrevivesse àquela aventura, não queria herdar um câncer de pulmão. Se fosse para morrer, que fosse pelas mãos de um inimigo mais forte.

Talvez Akira fosse irritantemente honrado em certos aspectos, no entanto, para alguém que não tinha propósito além do que dividia com o demônio, aquele era o melhor final possível. Nem sempre ele fora assim, é claro… houve a época em que era uma criança inocente, um garotinho que brincava de ser herói, como qualquer outro.

Ele não sabia dizer se seu passado ficaria orgulhoso ou não da decisão que tomara.

Afinal, por que não poderia ser o herói de um demônio perdido? Heróis eram heróis, independente de por quem lutavam. E aquela história de “bem” e “mal” nunca passou de palavras vazias. Porque ninguém era completamente bom, e mesmo eles dois, o par de monstros desgraçados, não podiam afirmar que eram cem por cento ruins.

— Não o chamarei… — ela silvou, projetando o corpo para frente. — Até que eu tenha os três tronos sob meu controle, e o trato perca seu valor.

— Nesse caso eu estarei morto, não é mesmo?

Kuro sorriu, desdenhando-o profundamente, e não se dando ao trabalho de responder. Segurou-o pela gravata, como da primeira vez que se encontraram, e foi andando adiante, como se puxasse-o por uma coleira. — Ei, humano…

— O que foi, demônio?

— Quando tudo isso terminar, o transformarei em meu servo pessoal.

— Tens plena noção de como isso soa, não é mesmo?

Ela voltou a ignorar sua afirmação. — Não importa… dificilmente irás sobreviver…

— Tsc… que maneira desagradável de consolar alguém que está indo para a guerra em seu nome.

— Não precisas de consolo, realmente… agora, atente-se, pois vamos entrar, e a partir daqui não haverá mais tempo para palavras ou ações fúteis. Tem algo mais a dizer? Outro cigarro para fumar?

Akira deu de ombros, emparelhando com ela e dando leves tapinhas em suas costas para que seguisse em frente. O portal era como um rasgo no mundo, uma fina camada partida por algo cortante, como uma adaga. Só era possível de se notar olhando de certo ângulo, pois do seu outro lado estava o mundo bizarro de Kuro, com seu sol moribundo e tons escuros. Como deste lado a noite também havia descido, a diferença era quase mínima.

Ele deu mais um cutucão para que o demônio seguisse, e ambos fizeram suas pernas cruzarem o espaço distorcido ao mesmo tempo. Ainda assim, Kuro foi capaz de ouvi-lo dizer, exatamente no último instante possível:

— Não vejo problema em ser seu servo, Majestade…

— Veremos o que nos espera, então, humano…

 

 

Eu poderia levar horas e mais horas narrando as peripécias que Kuro e Akira enfrentaram em seu reino. De como ambos, unidos, conseguiram enlaçar os dois primeiros Reis em uma armadilha que terminou pondo um fim na vida de ambos, deixando seus respectivos territórios para a Rainha que um dia fora Deposta, cujo nome real era difícil de definir em língua humana. O Rei alado e o Rei serpenteante caíram, esse foi o fato. A vingança de Kuro estava quase completa. E não me demorarei suficientemente sobre essas situações, pois já fazem parte do passado, e apesar de não terem sido vitórias fáceis, não há muito o que dizer delas.

Mas o último Rei… a parte final deste relato que lhes faço, este sim, merece ao menos uma pequena nota.

O Colosso do Norte… o Rei do clã que contava com seus absurdos três metros de altura, cuja pele era grossa como o melhor aço temperado, e a força era suficiente para esmagar montanhas, se este fosse seu desejo. Esse era o último dos inimigos que esperavam nossa dupla condenada.

Para dar-lhes crédito, é necessário dizer que mesmo se Kuro tivesse carregado consigo os dois clãs que já havia conquistado, pouca diferença teria sido feita sobre essa cena a que chegamos. E como eu já fiz questão de mencionar inúmeras vezes, Akira era, em certos pontos, muito honrado. De maneira que, para a batalha que se seguiu, ficou decidido que apenas lutariam os Reis. E isso haveria de incorrer em uma cansativa e longa disputa, estendendo-se até que um dos dois desistisse.

Normalmente, era o que todos esperavam.

Mas um certo Rei quebrou o código de duelo, atacando o protegido do segundo Rei…

 

Foi preciso um golpe certeiro, que nem mesmo a própria Kuro conseguiu evitar totalmente.

E ainda que Akira fosse um humano excepcional, por si só, não seria nunca capaz de sobreviver a um golpe daquele gigante esmagador.

Era um fato conveniente aos demônios que não mantivessem sentimentos fortes entre si, principalmente quando se era um Rei. Se houvesse uma criatura que pudesse ser amada ou idolatrada por ele, esta sem sombra de dúvida tornar-se-ia um alvo fácil, uma adorável vítima a ser devorada, um ponto fraco ideal para carregar o soberano junto.

Eis que afirmo, apesar do tamanho e força bruta, o Colosso do Norte não era tão estúpido a ponto de ignorar a dupla que havia derrubado com tanta facilidade os seus antigos aliados. Ainda que não fosse capaz de ter certeza sobre uma possível afeição envolvendo ambos, ninguém se importaria se um humano invasor acabasse morto por “acidente”, não é mesmo?

De maneira que, depois de forçar a sua rival demoníaca a recuar em uma certa direção, ele aumentou a potência dos ataques, tornando-se ainda mais agressivo que o costume. O tal golpe fulminante que viria a deixar Akira à beira da morte e Kuro bastante ferida, foi um soco cruzado, mudado de posição no último momento.

Se Akira fosse mais que um humano, possivelmente, teria sobrevivido. Diga-se de passagem, a espada que pôs a frente, na tentativa de parar o golpe – já que não era capaz de desviar do mesmo – fez um talho grotesco no membro do gigante, a despeito de sua pele grossa. Ele, contudo, foi catapultado para trás junto de sua parceira, rolando pelo chão e caindo bem distante do local onde o duelo estava sendo travado.

Seus ossos haviam sido esmigalhados, em sua maioria. Sua coluna havia sido partida, e mesmo que conseguisse com algum milagre viver, teria ficado paraplégico. A hemorragia interna causada pelos órgãos danificados fazia com que sangue escorresse constantemente de sua boca. E Kuro não parecia num estado muito melhor, já que recebera o golpe do lado direito do corpo, quase esmagando-o.

Ela podia regenerar-se, contudo. De maneira que deixou a dor violenta para depois e se esforçou para arrastar-se até Akira. Não precisaria ser uma especialista, nem bater os olhos uma segunda vez sobre ele, para saber o que viria a seguir. — Ei… humano…?

— O… que foi…? — era-lhe bem difícil falar, sendo incapaz de usar seu tom jocoso característico, ao chamá-la por sua raça, e não pelo nome.

— Você está morrendo…

— S… sim… é o que… parece.

— Certo… — ela fechou seus olhos tão diferentes, puxando o ar sofregamente. Era possível ver seus músculos e ossos se religando, a pele começando a se fechar. — Está arrependido de algo?

— Não… estou satisfeito…

— Humano tolo… o mais estúpido de todos… você deveria ao menos ter se tornado meu servo.

— E eu… não era, no fim das contas?

O demônio abriu um sorriso tipicamente abusado, sentando atrás da cabeça dele e apoiando as mãos no chão, podendo observar seu rosto de ponta cabeça. — Eu agradeço, Akira. — palavras que nunca usaria, em qualquer outra ocasião — Graças a ti, minha vingança está completa.

O Colosso não parecia vir atrás deles. Talvez por mera preguiça, orgulho ou sabendo que a antiga Rainha, se estivesse viva, retornaria em breve para a batalha. Só havia os dois, sem um demônio que fosse em volta. Que estranho, levando em consideração o tumulto que eles causaram ao invadir os outros reinos…

— Ah… fico feliz… em saber. — Ele abriu um meio sorriso, fechando os olhos, depois de ter gravado o rosto dela em sua mente. — Você vai me devorar?

Ela passou a língua pelos lábios, ao ouvir aquela pergunta. Depois entreabriu-os, deixando a mostra as presas e dentes afiados, próprios para rasgar a carne. Suas mãos, delicadas apenas em sua aparência, seguraram sua cabeça dos dois lados, num gesto quase carinhoso — Sim, eu vou. Você me ajudaria a finalizar essa campanha?

— Com todo o prazer… majestade…

 

Aqueles que assistiam o duelo não esperaram muito para ver o pequeno vulto retornando ao campo de batalha, o corpo já regenerado. A área em volta de sua boca estava toda lambuzada de vermelho, assim como suas vestes, as mesmas que usava no nosso mundo. Carregava uma espada, a katana de Akira, que displicentemente riscava o chão atrás dela. Do corpo de seu parceiro, nem o mínimo sinal.

— Vejo que retornas-te, demônio arrogante. Ainda queres continuar com isso? — O Colosso deitou os olhos sobre a rival, abrindo um sorriso maldoso. — Devoras-te aquele que lhe jurou obediência? Não é melhor que qualquer um de nós, no fim das contas.

Kuro abriu um sorriso. E depois riu. Sua risada causava ecos e doía os ouvidos, fazia o ar vibrar. Como uma onda supersônica. Quando conseguiu se recompor, voltou a sorrir, balançando com tranquilidade a espada. — Nós tínhamos um pacto, sabia? Ele cumpriu-o até o fim. Até os últimos instantes, cedendo sua força a mim. — uma aura poderosa a envolvia, o suficiente para que o chão quebrasse sobre seus pés e os demônios que estivessem mais próximos fossem atirados longe. Ela empunhou a espada, e só então seu rosto se deformou numa expressão de pura fúria, enquanto sua voz tornava-se mais diabólica que o normal. — Matou meu subordinado, seu bastardo miserável! Irei obliterá-lo, até não sobrar nem um único pedaço que possa usar para se regenerar!

Ela tornou-se sombra, como na noite do beco em que matara um inimigo de Akira, a tantos meses atrás. A massa negra cortou a distância que havia entre ela e o Rei dos Colossos, como se fosse uma foice de vento, e a única coisa que foi possível discernir era o brilho da lâmina japonesa, descendo na vertical e partindo o ser gigantesco em dois. Ela voltou a encorporar-se atrás dele, girando em pleno ar e movendo mais uma vez a lâmina. O que parecia ser um simples movimento não era nada menos que vários deles, feitos tão rápido que até mesmo os olhos demoníacos eram incapazes de acompanhar. Sua aura era tão forte que parecia queimar os pedaços, tornando-os cinzas em seguida.

E, do Rei dos Colossos do Norte, como ela havia prometido, não sobrou absolutamente nada.

O silêncio engoliu tudo a sua volta, como se o tempo tivesse parado apenas por causa daquela cena. A primeira vez, em éons, em que um Rei demônio havia derrotado outro. A primeira vez que um Rei Deposto conseguia reaver não apenas o território que havia lhe sido tomado, mas muito além disso.

E então o silêncio foi quebrado. Por gritos de júbilo, de choque, de aceitação. O boato que a Rainha havia conquistado dois reinos e não devastara-os por motivos vis se espalhara. Parecia aos novos conquistados que ela não teria motivos para exterminá-los – e poderia fazê-lo, se bem quisesse, com facilidade. — Salve a nova Rainha! Saúdem a Retalhadora, Raven…!

O som mais aproximado da língua humana, feito para produzir o começo de seu nome, embora este fosse muito mais complicado do que parecia… Kuro, ou Raven, era capaz de ouvi-lo, e lembrou-se que nunca mencionara-o para Akira. Ainda que seu rosto fosse uma máscara de vencedora, exibindo um sorriso sarcástico e superior que era-lhe comum, conseguiu sentir uma única e solitária lágrima vermelha escapar de seu olho esquerdo.

Se um herói podia proteger um demônio, o demônio podia ao menos derramar uma lágrima que fosse pela perda de um herói.

Raven passou a ponta das unhas pelo rosto, limpando o caminho rubro que descia até o queixo, e passou a língua pelos lábios uma última vez, tentando limpar o sangue que os rodeava. No fim, voltou-se para seus novos súditos, e ergueu a voz, num grito que fez o mundo estremecer, um misto de orgulho e êxtase. No fim, havia cumprido seu objetivo. E o de Akira junto…


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