A Loucura dos Liddell escrita por Imagine


Capítulo 4
Capítulo 3. "Rise"


Notas iniciais do capítulo

AVISO! Esse capítulo possui uma parte que pode ser sensível para quem tem Aracnofobia, por isso vou estar deixando uma marcação para as pessoas que sofrem disso, então prestem atenção para não ultrapassar caso houver necessidade.
Abraços!



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 Lacie não sabia se tinha desmaiado no porão, se estava tendo uma convulsão no chão daquele lugar horrível, se este era mais um de seus pesadelos ou pior, se tudo aquilo realmente estava acontecendo. Tudo que ela sabia era que estava caindo.

 Seus cabelos revoltos batiam em seu rosto e suas roupas gritavam contra o vento daquele funil. Lacie optou por não raciocinar, pois achava que tentar achar uma explicação lógica somente a deixaria pior.

 Agora que descia num caminho sem volta, direto para morte certa, afinal... quem poderia sobreviver a uma queda tão alta? Ela sabia que o certo a se fazer era rezar, pedir por clemência e confessar seus pecados, como se ela não tivesse feito isso sua vida inteira. Como o certo não lhe era o favorável, ela tentou fazer o que os romances refletiam em situações como aquela e procurou se recordar dos momentos mais felizes, porém a ideia de esperar para ter seu crânio despedaçado como um copo de vidro, seus olhos sendo projetados para fora de sua cabeça e de suas costelas e demais ossos penetrando, rasgando e furando seus órgãos enquanto seu sangue pintava uma obra-prima ao final daquele poço, não pareceu ajudar na construção de imagem que um "pensamento feliz" era suposto ter.

 Então ela esperou, silenciosamente, pelo impacto... um impacto que nunca vinha. Por algum motivo, Lacie continuava viva, consciente, caindo para todo um sempre para a morte.

 Talvez seja este o meu castigo, pensou consigo.

 Subitamente, um lampejo lhe veio a mente, o sorriso de um adorável homem, com covinhas e pés de galinha ao redor dos olhos muito azuis. Lacie pensou que se fosse para morrer como um corpo desconstruído que outrora fora vivo, ao menos que pudesse manter um sorriso torto no rosto.

 

*

 

 Ela pode sentir sem ao menos visualizar, o chão se aproximava e sua boca de repente se abriu para os santos e santas que conhecia, despejou orações de súplica como nunca fizera antes, nem mesmo quando morou na casa de Deus, mas antes que pudesse selar tudo com um "amém", sentiu ser tomada.

 Pensou que toda a pressão que a comprimia era finalmente seu corpo sendo esmagado pela força da queda, se quebrando, rasgando, tornando-se irreconhecível, mas não foi bem assim. Não era uma pressão esmagadora, por mais que o impacto tenha a deixado zonza, mas era algo reconfortante de certa maneira. Seus cabelos tornaram-se mansos e a roupa flutuava ao redor de seus braços e pernas, sentia-se estranhamente purificada e, imaginou por um último segundo, se não teria sido perdoada e salva misericordiosamente.

 Porém, quando abriu os olhos, viu que o Paraíso era demasiado escuro e esverdeado para seu gosto, foi com alguns segundos de atraso que viu estar, na verdade, debaixo d’água.

 Mas... como?!

 Lacie se encontrava numa espécie de basílica submersa, um lugar que em outros tempos deve ter sido muito rico em detalhes, mas que, tenha sido pela água ou por outros motivos, encontrava-se agora limpo de qualquer vestígio artístico. Contudo, ela não se questionava do porquê daquele lugar estar inundado, mas lhe incomodava de certo modo a quantidade de portas que havia ali.

 Eram pares e mais pares de portas em cada parede, umas sobre as outras, algumas fileiras se estendendo até o teto, e cada uma mais diferente que a outra, havia algumas simples e outras bem rebuscadas, velhas e as que pareciam ter sido postas há pouquíssimo tempo. Também tinha um grande arco esculpido na construção, que supostamente daria para a saída, mas estava interditado por uma imensa pedra.

 Lacie recobrou a noção de tempo quando sentiu as bochechas inflarem, estava ali a poucos segundos, mas sabia que precisaria sair depressa por para obter ar. Desesperada, ela olhou para cima, de onde viera, encontrou apenas um buraco escuro e estreito, mas o suficiente para emergir. Ela respirou profundamente algumas vezes e sentiu imediatamente aliviada por ter pulmões, se permitiu um momento de descanso, mas sabia que o mesmo não duraria muito, pois antes que se assustasse previu que algo mais caía pelo buraco... e estava chegando rápido.

 Abaixou-se a tempo de ver objetos brilhantes rasgarem a água ao seu redor, pelo som do mergulho, só podia supor que não eram tão pesados. Quando o barulho cessou, viu que tinha razão, dançavam a sua volta, como fadas pontudas feitas de vidro, refletindo o pouco de luz que captavam e parecendo particularmente atraídas pelo seu rosto, Lacie podia ver os olhos em cada pequeno cantinho do fragmento do espelho partido. Eles continuaram nos movimentos delicados e aparentemente planejados, até que se dobraram ritmicamente para mais perto do corpo da menina, se formando em algo mais complexo, material e tátil.

 Quando deu-se por si, Lacie se viu diante de uma lâmina brilhante e muito bem ornamentada, com quase os mesmos desenhos da moldura do espelho no porão, porém mais sutis, seu cabo era negro e cintilante. Lacie foi guiada até ele, esticando os dedos, tocou o cabo gelado, automaticamente sentindo-o como uma extensão de seu braço.

 Os pulmões pulsaram e uma bolha de ar escapou da respiração, a urgência de sair daquele lugar voltou a prioridade. Ela nadou pelas portas e encontrou uma toda de vidro, quando aproximou-se para ver o que podia enxergar além de sua superfície, percebeu que o vidro tinha se partido há muito tempo, não pensou duas vezes, Lacie atravessou a porta fantasma até a superfície.

 

 

 Lacie chegou até a margem incrédula, pois fora sair das água do lago que percebeu o quão cansada estava. Todo o seu corpo doía, e por mais que a sujeira e o sangue tivessem sido lavados de seus ferimentos, os roxos começaram a aparecer pela sua pele quase translúcida. Ela deitou sem pestanejar, sentindo o sol quente lhe tocar a face como um anjo, aquecendo-a e a curando dos males restantes.

 Deixou os cabelos secarem assim, do mesmo modo as roupas, não se moveu até que sentiu a necessidade de se fazer. Sentando ainda na grama molhada, voltou atenção para o lago, não havia sequer sombra da construção que abrigava em seu leito, ou sequer do túnel que a trouxe ali. Tudo que tinha era uma garota ensopada, sentada ás margens da superfície refletora de um lago calmo enquanto a tarde corria num bosque tranquilo.

 Isto a fez recordar de uma vaga lembrança da infância, tinha por volta dos sete anos de idade, estava há um bom tempo importunando Charles para levá-la num passeio de barco, foi então que este dia chegou e eles alugaram uma pequena canoa. No começo foi realmente divertido, ver todo o esforço desengonçado do professor em querer agradá-la, mas quando subiram na canoa e se afastaram da terra, foi quando ela percebeu que foi uma má ideia, o barco sacolejava demais, ela não sabia em quê se concentrar, havia as ondas, a fala nervosa do professor, os pássaros voando e o nadar dos peixes. Ela caiu no lago e afundou, como uma pedra, quase tocando o fundo, se não fosse pelo professor... ela duvidaria muito do que teria acontecido. Desde então, nutriu um terrível medo por velejar e se afogar.

 O choro foi inevitável, lágrimas brotaram e escorreram quentes pelo rosto.

 De novo não... de novo não...

 Lacie perdeu as contas de quantas vezes fora atormentada por aqueles pesadelos, todo o desespero que sentia, noite após noite, acordando suada e com a garganta rouca. O pior era encarar o professor, seus olhos eram tão expressivos, era impossível não ler seu medo, cada vez que ela os via, era como se destruir por dentro.

 Podia sentia a bile subir até a boca e os lábios voltarem a tremer, fogo que não podia ser visto queimava-a de dentro para fora e logo todo seu corpo se contorcia, a tristeza veio, alta e sufocante, fechando sua garganta, selando-a mais e mais forte. As lágrimas caíam como gotas de chuva, escapavam por entre seus dedos que fechavam por sobre seu rosto. Lacie só pedia por isso, chorar mais um pouco, ela se forçara a entrar numa maturidade precoce, desde que soube que não havia mais quem pudesse a proteger do mundo, foi uma consequência terrível ter sua infância roubada pelo trabalho estressante de dez horas por dia, mas era isso ou morrer de fome, era isso ou viver nas ruas, era isso ou... o professor.

 Ela perdeu o controle das lágrimas, da voz e até mesmo do diafragma, soluçava como um bebê, no fundo ela sabia que tinha que respirar fundo e continuar, mas não conseguia, ou não queria? Debruçou-se no chão e juntou os joelhos no peito, só mais alguns minutos.

 Ouviu, não muito longe, um som delicado aliviar sua tensão. Ergueu a cabeça, que doía como nunca, com muito esforço e procurou a origem do barulho. Viu que não próxima de si encontrava-se um fio que esticava para dentro da floresta, por ele suas lágrimas caminhavam e produziam aquela música harmoniosa que acariciavam seus ouvidos. Seu choro imediatamente cessou pelo som da sua tristeza tocada nas cordas. Levantou sem mais conseguir soluçar, observou o resto das lágrimas que caíam do queixo se enrolarem no fios e seguirem o caminho.

 Lacie foi tomada por uma energia que não sabia que seu corpo ainda tinha, mas que somente em seus pesadelos tinham a capacidade de trazer, ela se agarrou a lâmina com afinco, seus pés se moveram contra sua vontade, um passo atrás do outro era um estímulo que enviava para seu cérebro, dizendo: “Não! Não! NÃO!”. Contudo, a mensagem era sempre em vão, ela ainda corria atrás daquela última lágrima, como corria atrás do coelho branco.

 

*

 

 Não soube por quanto tempo e nem ao menos a distância que percorreu, mas quando chegou ao destino, não pode evitar um soluço.

Todos os fios se uniam em uma cúpula pouco maior que uma casa de campo, as linhas se enrolavam umas nas outras, dando a impressão de um imenso novelo de lã branca, não tinham janelas ou portas visíveis, a cúpula de fios encontrava aos pés de um pequeno morro por entre as árvores tortas que encurralavam Lacie. Imediatamente uma sensação desgostosa lhe arrebatou a mente, aquele não era um lugar para se estar.

 Ela encarou o lugar ao seu redor, era escuro e quase o oposto da paz que se encontrava no lago. Uma certeza lhe invadiu, ela não sabia como voltar para o lago, sabia menos ainda onde estava, com as escolhas escassas Lacie reconheceu que tinha de ver o que se encontrava dentro da cúpula, talvez algo ou alguém poderia a ajudar.

 Procurou uma fresta que fosse ao redor, mas não encontrou nada, os fios separados pareciam delicados e quebradiços feito açúcar, mas juntos naquela construção, eram como gesso. Lacie decidiu subir no morro adiante para ter uma vista de cima e se empolgou com pesar ao ver que a única entrada era um pequeno buraco no meio da construção. Infelizmente, ou felizmente, longe demais para alcançar num salto. O que fazer então?

 Lacie certamente não queria escalar, apesar de aparentemente resistente, ela não tinha certeza da procedência daquele material, e se fosse algo escorregadio? Ou grudento? E se não fosse realmente forte o suficiente para aguentar o seu peso? Ela começou a pensar, olhou para o pouco que encontrou do céu e viu com certo alarde que estava entardecendo, ela tinha que pensar rápido. Então logo sua cabeça começou a trabalhar, Lacie encontrou um tronco próximo dali e o rolou até uma árvore alta, conseguindo ter altura para escalar. Logo ela procurou por cipós ou fibras de plantas que servissem de corda, encontrou alguns e os amarrou com força, quatro metros teriam de ser suficientes.

 Por mais que tivesse escalado poucas árvores na infância, ela conseguiu com uma proeza inacreditável subir até o topo, ela a corda improvisada na cintura e outro no galho abaixo de si, engatinhando até a ponta da abertura. Um tanto hesitante, ela inclinou-se um pouco, num ângulo seguro para testar sua real resistência, vendo que não houve protesto algum, Lacie decidiu descer aos poucos, até que tocasse com a ponta dos pés descalços, a cúpula.

 O pouco de tato que obteve fora o suficiente para perceber que o material não era rígido como deduziu, e se sentiu aliviada por não ter decidido escalar, porém assim como a cúpula, o galho em que amarrara a corda também não se demonstrou forte o bastante, Lacie caiu ali mesmo.

 Foi uma queda rápida, diferente do túnel no lago, mas não menos dolorida, após uns segundos de gritos internos furiosos consigo mesma, Lacie só pensou por quanto tempo sentiria essas dores na manhã seguinte.

 Se houvesse uma manhã seguinte.

 — Por mil moscas, mas o quê é isso?!

 Uma imagem duplicada de alguém incomodou sua visão por uns instantes, Lacie não respondeu imediatamente, mas assim que conseguiu ajustar-se viu uma mulher estonteante na flor de sua idade, seja lá qual for, de cabelos negros presos num coque elegante, a pele era pálida como arroz e usava um vestido encorpado roxo escuro, desviando a atenção de seus profundos olhos escuros.

 — A pobrezinha!

 — Eu... estou bem, juro.

 — Está sangrando! Ó, venha comigo, consegue se levantar?

 — Sim, consigo.

 Mesmo que não pudesse, aquela mulher tinha força nos braços, e conseguiu a levantar com enorme facilidade, a levando para uma mesa com o chá servido. A mulher elegante lhe pôs numa das cadeira e disse para beber um pouco até que buscasse os curativos. Lacie tomou a xícara trêmula, era bem doce, na verdade extremamente doce, ela não conseguiu dar mais que dois goles no chá.

 — Não se preocupe senhorita, eu estou bem!

 A outra não pareceu escutar, e se a fez optou por ignorar. Lacie não conseguia ver o que ela preparava, mas ela também não conseguia ficar preocupada com a situação, Lacie por algum motivo sentiu-se... anestesiada. Tendo ficado sem reação, ela procurou matar o pouco de curiosidade restante observando o interior da cúpula.

 Se provou um lugar bem arrumado, cheio de tapeçarias encantadoras por todas as paredes, não haviam divisórias fixas, apenas biombos muito bem decorados, onde estava servia como uma espécie de sala do chá e ela conseguia enxergar uma cozinha minimalista de bambu no lugar que a mulher ainda arrumava algo para os machucados de Lacie. Num canto oposto havia duas cortinas de seda que caíam do teto, cobrindo duas áreas restritas.

 Novamente a sensação de Lacie não era bem-vinda naquele lugar, retornou, com urgência.

 A madame aproximou-se sorrateiramente, com um sorriso tímido perguntou:

 — Gostou?

 Lacie, que no susto perdeu as palavras, procurou se acalmar rápido para responder.

 — Sim, suas tapeçarias são muito bonitas, você que as fez?

 Ela não respondeu na hora, apenas pôs uma caixa de metal polido sobre a mesa, sentando-se com um olhar distante.

 — Sou tecelã.

 — A! Então deve ser uma especialista.

 A mulher exibiu um sorriso enigmático.

 — Eu não trabalho para a Rainha por acaso.

 Rainha? Lacie se questionou enquanto a mulher abria a caixa para si, deixando o conteúdo misteriosamente oculto pela tampa.

 — Me perdoe, senhora...

 — Madame -ela corrigiu- Madame Black, por favor.

 — Perdão Madame Black.

 — Não se preocupe, tenho certeza que a Rainha não teria me mencionado a você mesmo.

 Muitas perguntas surgiram na mente de Lacie com isto, mas ela se sentia lenta demais para processar, talvez fosse o cansaço chegando, porém ela tinha que se manter firma, não estava gostando para onde a conversa estava indo, mas sabia que deveria continuar conversando para ganhar tempo. 

 — É... eu não fui... advertida.

 A Madame Black pareceu penetrá-la com os olhos, eram tão negros que doíam encará-los, Lacie sentia algo frio vindo deles.

 — Sabe, não vejo muitos jovens curiosos hoje em dia...

 — Hã... já me disseram isso, perdão.

 — Mas é interessante, sabe –continuou sem dar importância- os outros nunca demonstraram tanto interesse.

 — Espere... outros?

 Os olhos negros da outra ficaram cada vez mais frios e sem vida, Lacie ainda não havia feito um plano de fuga, não conseguia, sentia seu corpo formigar e a cabeça tombar para os lados, ela encarou a xícara com o chá doce demais... talvez não fosse chá afinal.

 — De todos os meus visitantes, você foi a única a elogiar minhas tapeçarias, muitos, é claro, já conheciam minha reputação e por isso não duraram cinco minutos ou mais que isso.

 Com um sorriso constrangido e o estômago ainda agindo estranho, Lacie levantou devagar, tentando domar a tontura. A lâmina espelhada aquecia-se ao lado direito da sua lombar, mas ela não tinha certeza se seria capaz de lutar contra a Madame Black, que parecia esconder uma força muito maior que a de Turph.

 — Não... compreendo.

 — Percebo que não, mas depois de alguns incidentes eu esperava que a Rainha mantivesse em maior sigilo, afinal, trazer crianças para cá não é uma tarefa fácil.

 — Crianças...? -sua voz saiu rouca, aquilo estava se tornando mais sério a cada segundo.

Entretida, Black sorriu novamente, finalmente abaixando a tampa que escondia o interior de sua caixa de metal, revelando uma seringa ameaçadora com um conteúdo amarelo viscoso, Lacie não precisava testar para saber que era algum tipo de veneno.

 — A senhorita está se tornando cada vez mais interessante, sabia? Sim, minha querida, crianças... pequenas, gorduchas e deliciosas crianças.

 Madame Black se levantou, apontando a seringa como se fosse uma varinha de condão, mas todos ali sabiam que não havia magia vindo daquilo, apenas morte. Lacie se distanciou dela, a tontura voltou com marteladas impiedosas, tropeçando em meio aos biombos, alcançou a lâmina tremendo. Black exibiu um sorriso sinistro em seus lábios escuros.

 — Sabe, se estivesse com paciência, esperaria o paralisante surtir efeito e então a engordaria, mas meus filhos e minhas filhas estão para nascer e precisam de algo para a primeira refeição.

 Filhos... e filhas? Onde?

. . . 

Rapidamente Lacie voltou para a área das cortinas, uma delas estava aberta e preferia nunca ter visto o que esta ocultava. Haviam dezenas de ovos do tamanho de cães Yorkshire, verde-musgo com manchas castanhas, suas cascas agitavam-se e pareciam macilentas. Lacie sentiu uma vontade inadiável de vomitar, não era só a visão mas o cheiro também era horrível, ela suava fria, a única força que ainda exauria de seu corpo era gasta para segurar a arma e amaldiçoar-se mentalmente.

 — Eu lamento menina, você realmente parecia ser alguém interessante.

 Ela olhou de um lado para outro, se corresse rápido suficiente ela teria peso para romper a rede de teias de uma das paredes, mas era muito arriscado, poderia ficar presa ou pior, Black a alcançar primeiro. A mulher aproximava-se sadicamente, fingindo sentir pena.

 Isso a deixou súbita e extremamente enfurecida. Lacie estava cansada disso, cansada de ter perdido os pais, sua infância, sua vida e o professor, se fosse para morrer nas mãos de uma bruxa assassina de crianças, que então fosse para morrer com honra.

 Ao se encontrar poucos metros de si, Lacie pulou sobre Black com a lâmina em punho, surpresa pelo ataque não premeditado, Black não pode recuar. Lacie avançou determinada, mas todo o cansaço físico e o efeito do paralisante eram demais para seu corpo sozinho aguentar, ela errou por alguns centímetros e acabou apenas rasgando a lateral do vestido.

 A mulher chutou-a para longe, fazendo cara de desgosto, aproximou-se violentamente para cima dela com a seringa, Lacie rolou para o lado antes que a agulha cravasse em si, levantou as pernas e chutou o rosto da outra. Black gritou com raiva, apesar da careta de diversão.

 — Muito MUITO interessante, senhorita! Eu realmente GOSTO DE DESAFIOS!

 Suas pernas cederam, ouviu barulhos ao longe, ao voltar sua atenção para os ovos viu que alguns eclodiam, destes saíam criaturas de oito patas, negras, magricelas e com os pequenos pelos cobertos de uma substância pegajosa que fez ela perder o controle do estômago de vez, Lacie vomitou nos próprios pés.

 A Madame exibia um sorriso digno de muitos pesadelos, de orelha a orelha, dentes despontavam para fora da boca, seu coque se desfez, deixando fios negros e rebeldes caírem por sobre seus oito olhos. Seu corpo parecia mais alongado, e com um atraso horrível, Lacie percebeu que do ventre de Black se projetavam duas outras pernas humanas, muitas magras e pequenas demais para serem úteis, assim como das costas, saíam um par de braços, longos e com unhas afiadas feito garras.

 — Por Deus.

 — Não adianta rezar agora -uma voz gutural e rouca respondeu.

 Aranhas, do tamanho de filhotes de cães, rastejavam-se pra fora de seus ovos, mostrando suas presas e grunhindo em busca de comida. Oito deles correram para cima de Lacie. Ela gritou e tentou correr, conseguindo forçar suas pernas o bastante para subir numa cristaleira, Lacie agarrou um prato numa das mãos e atirou na direção daquelas criaturas, atingindo em cheio um deles, não o matou, mas pareceu machucar, ela pegou todos os cristais que pode alcançar e os atirou com incrível desespero.

 Um ou outro acertava os filhotes, porém só dois deles podia-se dizer que estavam mortos, pois Black resmungou quando eles pararam de se mexer. Dois a alcançaram e começaram o móvel, armada, Lacie agitou a lâmina, conseguindo cortar algumas pernas de um que caiu sobre outro, o segundo passou bem perto, mas a lâmina passara só de raspão o que só o deixou mais irritado. O filhote pulou para o seu rosto, com um movimento de reflexo, ela fincou a lâmina no ventre do aracnídeo, sangue translúcido porém fedorento escorreu e esguichou da criatura para Lacie.

 Um pouco atordoada, Lacie percebeu que a lâmina exibiu um leve brilho em seus entalhes ao ser retirada da aranha, como se absorvendo o sangue da batalha. Em um movimento não programado, ela girou levantando a lâmina e cortando ao meio uma terceira aranha que viera sorrateira ás suas costas. A arma brilhou suavemente.

 É como nas histórias bárbaras, Lacie lembrou vagamente de algumas, a lâmina tem vontade própria... fome por batalha!

 A lâmina pareceu vibrar contente, ela só podia estar tendo o pior de seus pesadelos.

 Mas se for para sairmos dessa, que assim seja, me guie!

 Ela desceu da cristaleira, três filhotes ainda a cercavam enquanto outros saíam dos ovos, mas como prometido, Lacie deixou a lâmina guiá-la em movimentos suaves e certeiros, ela desferiu golpes dignos de uma espadachim, matando os três filhotes restantes em segundos e se preparando para os outros. Quanto mais calma procurava ficar, deixando a lâmina fazer o que bem entendia, mais parecia ter êxito nas finalizações dos ataques, durante todo este período ela sequer foi tocada pelos filhotes, enquanto Black encarava tudo de longe, estranhamente impassível para a chacina que se formava de seus filhos e filhas. Ela mal viu as horas passarem ou a contagem dos mortos, quando tudo terminou, a cúpula pareceu estranhamente quieta.

 Ela respirou com pesar, mesmo deixando a arma fazer o trabalho, era Lacie o "usuário" desta magia estranha e desconhecida, seus nervos porém não relaxaram e se exaltaram ao ouvir um aplauso á sua direita. Era Madame Black, que exibia manchas negras como o vazio pela sua tez antes pálida, era quase um aracnídeo completo, um monstro de dois metros e meio com quatro membro de cada lado.

 — Tive minhas suspeitas, admito –disse com uma voz adorável- mas agora, tenho certeza que é você.

 Ela se movia devagar, afinal só duas pernas realmente funcionavam, seus braços que se projetavam das costas se arrastavam de cada lado, as garras estalando, um sorriso grotesco em um rosto não-humano, mas que ainda exibia traços sinistros de um.

. . .

 — Posso ter perdido TODOS os meus filhos nesse joguinho, porém a Rainha me recompensará! Que sorte a sua! Terá uma MORTE muito mais dolorosa do que eu poderia tramar, tenha certeza disso senhorita, pois ELES O FARÃO SOFRER.

 O grito de ódio que aquela criatura deu foi descomunal, não foram somente as pernas, todo o corpo de Lacie parou de funcionar. A lâmina não mais vibrava em suas mãos e seu brilho tornou-se nulo. Ela ia morrer e seria agora. A Madame Black avançou com uma velocidade guardada, seu sorriso asqueroso seria a última visão que aquela menina humana teria. Lacie sentiu ser capturada por aqueles braços longos e ter sua pele perfurada pelas garras e pela agulha venenosa. Finalmente...

 Um clarão inundou a cúpula, vindo não se sabe de onde, mas era uma luz forte do tipo que queima, Lacie imaginou anjos. A Madame Black se retesou, caindo de joelhos, ouviu-se gritar coisas inteligíveis, mas os sentimentos compreendidos foram de pedidos por misericórdia. Lacie piscou lentamente, tão lentamente que ao abrir não viu mais nada que remetia a cena anterior, tudo que ela sentia era o próprio corpo, flácido, suado e sujo, no chão.

 Foi bom..., ela se reconfortou. Enquanto partia, aceitando o que lhe aguardava do outro lado, nos braços de seu anjo protetor dos olhos azuis-esverdeados.


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