A Arca de Pandora escrita por Danilo Alex


Capítulo 8
Navio Fantasma


Notas iniciais do capítulo

Ahoy, marujos!

Como sempre, glossário náutico disponibilizado ao fim do capítulo. Pintou uma dúvida? Não tenha receio de recorrer ao glossário.
Comentários e críticas construtivas são sempre bem vindos.

Uma última coisa antes de levantarmos âncora:
Gostaria de dedicar esse capítulo ao meu amigo Matheus Braga, um escritor muito talentoso que tive a honra de conhecer aqui, que também é apaixonado em navios e tem me acompanhado e incentivado nessa minha história insana. rsrs
Estou acompanhando as histórias do Matheus postadas aqui no Nyah! e preciso dizer que fico lisonjeado a cada comentário que ele deixa.

Ao Matheus e a todos os marujos que me acompanham nessa empreitada eu desejo agora uma ótima leitura!



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Hope e seus homens, tomados por verdadeiro assombro mesclado ao desespero, observavam a cena macabra sem ousar dizer nada. O som se recusava a sair de suas gargantas secas. Apenas seus olhos esbugalhados se moviam de um lado para outro nervosamente, fixos na embarcação que estava agora bem próxima, navegando ao lado do Pandora, o qual continuava totalmente parado no meio do oceano. O barco que agora contemplavam definitivamente não pertencia a esse mundo, não fazia parte desta realidade.

Bem diante de seus olhos um navio fantasma singrava o Atlântico naturalmente, como se sua existência fosse tão aceitável quanto à do barco perante o qual a aparição se apresentava.

Como se já não bastasse o navio que vissem ser uma projeção sobrenatural, havia algo ainda pior: os corsários foram gradativamente percebendo que o conheciam, e isso triplicou seu pânico.

O barco que agora estava ao lado do Pandora também navegava sob as cores da Espanha. Era imenso: possuía cerca de três andares, o que totalizava quatro conveses (três de porões e da artilharia, dispondo de mais de oitenta canhões para enfrentar os inimigos em alto mar). Duas âncoras colossais equipavam o costado titânico. As velas enfunadas garbosamente na mastreação imponente e reforçada proporcionavam um ar ainda mais majestoso à elegante embarcação. Um galeão espanhol muito bem construído, próprio para confrontar tempestades e piratas. Um opulento gigante dos mares.

Uma neblina fantasmagórica envolvia o sinistro barco, ocultando seu nome escrito no costado, bem como a figura de proa. Mas os piratas não precisavam olhar isso para que soubessem de qual embarcação se tratava. Aquelas velas e aquela mastreação eram inconfundíveis... Uma grossa camada de musgo recobria a espessa amarra que sustentava as âncoras. O pano das velas parecia puído e exibia rasgos em algumas partes. A madeira que estruturava o navio, embora forte e poderosa, aparentava estar velha e rangia além do normal.

Mais do que nunca, o som do vento incomum assobiando no cordame era espectral, e assemelhava-se ao gemido doloroso das almas condenadas. Indiferente aos pasmos espectadores, a tripulação do sinistro navio se movia com agilidade pelo convés do barco preternatural.

Piratas. Homens musculosos e tatuados, o suor escorrendo em seus corpos repletos de cicatrizes de combate, brilhando sob a luz argêntea da lua cheia.

Porém, os tripulantes não eram pessoas normais.

A bordo do outro navio, os corsários eram todos mortos-vivos.

Seres sem alma, que trabalhavam mecanicamente, de modo resignado, cuja repetição enfadonha do serviço haveria de se desenvolver eternidade adentro.

Quando se voltavam para fitar o pessoal a bordo do Pandora, o faziam com seus olhos mortos, sem brilho. Alguns tinham ossos expostos, em outros se podiam ver, por crateras abertas no corpo, órgãos funcionando. Marujos em decomposição; faces esqueléticas voltadas para a lua, e dedos descarnados cumprindo meticulosamente todos os serviços de bordo, os quais seriam bem mais apropriados aos vivos.

De seu posto junto da amurada, Hope assistia à cena com os olhos esbugalhados de um louco. Marinheiros fantasma tripulavam o outro descomunal galeão, que naquele momento descrevia uma curva para emparelhar com o Pandora. Viu então, cheio de perplexidade, o comandante da embarcação fantasmagórica.

O homem, se é que se podia chamar assim aquela criatura horripilante, estava de pé na ponte de comando, observando enquanto seus marujos piratas mortos-vivos trabalhavam arduamente a fim de que o navio realizasse corretamente a manobra que traria o barco fantasma para junto do navio dos vivos.

Hope pousou seus olhos na silhueta do outro capitão. Era um homem alto e magro, empertigado, um ar levemente arrogante e postura digna. Um inglês! O que estaria um britânico fazendo a bordo de um navio espanhol? A pele asquerosa do homem, repleta de chagas purulentas, estava tomada por uma palidez mortal e seus olhos opacos tinham um brilho vulpino. Do alto da ponte de comando, ajeitando seu amarfanhado chapéu de três pontas, o abominável capitão espreitava sua tripulação e gritava com uma voz inumana:

— Ao trabalho, bastardos imundos! Mais rápido! Pensam que tenho todo o tempo do mundo, energúmenos? É longa a viagem até o Inferno, e o bojo de nosso barco está cheio de almas a ser entregues no reino maldito das chamas. O Príncipe Caído se orgulhará de nós, já que é em nome dele que pilhamos e matamos. Vamos, condenados! Apressem-se, cães! O tempo urge, e há muito trabalho a fazer!

E sob os gritos enérgicos do capitão sombrio, os piratas cadavéricos trabalhavam mais e mais, como se as palavras de seu superior estalassem, soando tal qual um chicote em seus ouvidos apodrecidos. Das gargantas mortas, onde jaziam cordas vocais entrando em processo de decomposição, escapava um grunhido sobrenatural, seguido por um cântico próprio para aquelas ocasiões. Os mortos entoavam um canto aprendido em vida, antes de se tornarem aquelas criaturas repulsivas e pútridas, cujos pedaços iam ficando caídos no convés à medida que eles se esforçavam no trabalho de bordo.

Hope tinha certeza que havia algo de peculiar naquela cena. Captara certa familiaridade no timbre do capitão fantasma. O modo como o mesmo se expressara, o ritmo em que os homens labutavam, a canção que se elevava no ar estagnado... De repente, sentindo o ar faltar nos pulmões, Hope exclamou:

— Só posso estar maluco! Que os cães do inferno me mordam se isso for verdade!

Como se pudesse ouvir as palavras do pirata inglês, a bordo do galeão fantasma o capitão espectral voltou a cabeça e notou o olhar abismado de Hope. Sim, exatamente como Jason Hope havia imaginado: aquele comandante cadavérico era... ele próprio!

Jason Hope também, mas uma versão erguida da escuridão do sepulcro, onde deveria permanecer em seu repouso eterno, aguardando o dia do Juízo, do qual nenhum homem pode escapar. Sentindo a cabeça girar, Hope imaginou estar fitando um personagem arrancado de seu pior pesadelo, um ser que surgisse especialmente para atormentá-lo. O capitão fantasma mirou Hope e sorriu com escárnio.

O galeão fantasma estava tão perto agora que os tripulantes do Pandora podiam divisar com riqueza de detalhes o outro navio e seus horrendos tripulantes. E então, assim como Hope, os outros marujos identificaram sua réplica macabra na tripulação a bordo da outra nave e grunhiram angustiados. O Hope cadavérico fitava o capitão do Pandora intensamente, como num desafio. Era, com certeza, a mais aterradora figura a bordo daquele navio fantasma.

 Os globos oculares estavam apodrecendo e, enquanto giravam nas órbitas, moscas imensas teimavam em pousar sobre eles. Grande parte do rosto jazia em carne viva, o que resultava numa massa infecciosa por onde passeavam vermes necrófagos.  

Os ossos do maxilar tinham perfurado a carne e estavam expostos, de modo que, quando o infernal capitão sorria, o que se via era uma boca horrenda com poucos dentes tortos e apodrecidos, parcialmente recoberta de carne. As roupas de capitão, embora bem feitas, estavam puídas, e, envolvendo-lhe o corpo magricela, davam a impressão de estar cobrindo um espantalho ao invés de algo que um dia fora um homem. De onde estava Hope conseguiu sentir o mau cheiro que seu sósia repugnante emanava.

Ciente do asco e pavor que sua imagem causava, o comandante fantasma esboçava seu sorriso tenebroso. Erguendo a mão esquelética, coberta de pele necrosada, moveu os compridos dedos descarnados e acenou zombeteiramente para Jason Hope, o qual estremeceu e cobriu a boca com as mãos, achando que ia vomitar.  Um vento repentino varreu por instantes a névoa mística que envolvia o navio fantasma e então, os viventes que a tudo assistiam, enxergaram o costado e a proa do galeão sobrenatural. Se até aquele ponto tinham alguma dúvida, ela se dissipou naquele momento.

A figura de proa do temível navio era uma ameaçadora e bela jovem grega, de olhar sombrio e cabelos revoltos, segurando uma caixa ornada. No costado corroído por cupins e castigado pelas intempéries estava gravado o nome do barco. Um nome que, ao ser lido, fez falhar o coração pulsante de cada pirata sob as ordens de Jason Hope. Como já podem imaginar, meus amigos e leitores, o galeão espanhol fantasma não poderia ter sido batizado de outra forma.

Sim, aquele barco adiante era o Pandora.

 A despeito dos inúmeros rasgões no velame encardido pelo tempo, o musgo nas amarras, a deterioração nas cordas que compunham o cordame e na madeira que alicerçava a imensa mastreação, bem como as manchas de sangue na figura de proa e no costado apodrecido pelo tempo e pelo mar, assim como os diversos esqueletos de enforcados pendentes das traves do mastro principal. Apesar de tudo isso e da perniciosa tripulação, o que inclui o vulto repulsivo de seu capitão, aquele navio era o Pandora.

Hope percebeu que aquela visão aterradora tratava-se de um espelho dantesco de sua embarcação. Um reflexo terrível do que viria a ser aquele galeão espanhol tão imponente, e de todos aqueles que o tripulassem. Cadáveres reanimados e sem vontade, seres sem almas, escravizados pelo Diabo e condenados a vagar pelos mares por todo o sempre, ceifando almas de modo a profanar a plena beleza divina da paisagem marítima.

Um vislumbre assustador do futuro, era isso a visão tétrica do Pandora infernal diante do Pandora comandado pelo Jason Hope vivente.

O navio espectral se achava agora lado a lado com o galeão espanhol desde então amaldiçoado. Como foi dito no princípio, navios fantasma são interpretados como presságio de morte. Logo, aquela aparição era uma mensagem macabra, um recado impiedoso do Anjo Ceifador, mostrando que ninguém a bordo daquele galeão espanhol escaparia com vida.

Aquele era o destino de cada um de seus tripulantes; morrer e se tornar um servo das trevas por toda a eternidade.

Não havia outro caminho.

 Não havia chance ou esperança de salvação. Escuridão era o que vivenciavam, e escuridão era o que os aguardava no futuro.

Hope teve total consciência disso no momento em que colocou seus olhos naquele barco assombrado a navegar paralelamente ao seu. Os piratas vivos olhavam para suas cópias cadavéricas e permaneciam mudos de espanto.

A bordo do navio fantasma, obedecendo ao seu abominável capitão, os piratas mortos-vivos fitaram seus correspondentes viventes, ergueram as armas numa saudação sinistra e, como se tivessem ensaiado, cantaram a uma só voz, de modo grave e amedrontador:

— “Ahoy, marinheiros! Aproveitem cada gota de rum, e embebedem sua espada com sangue inimigo! Amem as donzelas e desprezem o perigo. Sejam devotados ao mar, pois seu tempo é escasso. A canção foi entoada, e seu caminho já foi traçado. Quando selar-se o vosso destino, nenhum de vocês poderá escapar! Yo-ho-yo-ho! Hurra!"

Então, embalado por essa canção agourenta, o Pandora fantasmagórico guinou vivamente mais uma vez e a cortina de névoa sobrenatural, erguendo-se do oceano, se adensou, envolvendo o barco quase inteiramente ao passo em que ele se distanciava.

Durante algum tempo ainda foi possível avistar a claridade avermelhada das grandes lanternas de popa que oscilavam dentro da noite, enquanto o navio fantasma se afastava empurrado pelo vento antinatural que beneficiava apenas a ele, pois o restante do mar continuava parado, silencioso, morto.

Para aflição dos homens de Hope, também foi possível escutar a canção sinistra dos piratas cadavéricos por um bom tempo, embora, em dado momento, ela tenha sido superada por uma gargalhada mortal e escabrosa, que só podia ter escapado da garganta do capitão fantasma.

E então, tão silenciosamente quanto chegara, o Pandora pertencente ao reino dos mortos sumiu-se na escuridão e na distância marítima, navegando a toda vela, envolvido em neblinas que pareciam nunca haver existido.


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Notas finais do capítulo

Aviso aos navegantes: (Palavras em ordem de aparecimento no texto):

Costado: Revestimento ou forro exterior do casco, numa embarcação.
Enfunar: 1 - Retesar (vela de embarcação) com cordas, para que o vento a encha. 2 – Encher, inflar. 3 – Tornar-se (a vela bojuda com o vento.
Mastreação: Os mastros de uma embarcação.
Galeão: Antigo navio de guerra, com popa arredondada e bojuda, e quatro mastros.
Acrostólio, Carranca ou Figura de proa: Figura de madeira, em geral disforme, que orna a proa de certas embarcações, a fim de afugentar os maus espíritos.
Amarra: Corrente especial, que segura a âncora à embarcação.
Cordame: Conjunto de cordas e cabos de uma embarcação, sobretudo no conjunto das velas.
Convés ou Deque: Qualquer um dos pavimentos da embarcação; piso da mesma.
Amurada: Prolongamento do costado da embarcação, acima do convés descoberto.
Ponte de Comando: Compartimento do navio a partir do qual o mesmo é comandado.
Nave: Navio, embarcação.
Proa: A parte anterior (ou dianteira) da embarcação.
Velame: Conjunto de velas de um navio.
Popa: A parte posterior (ou traseira) da embarcação
À toda vela: Navegar na velocidade máxima.

Espero que tenham curtido esse capítulo; particularmente gosto muito dele e foi um prazer revisá-lo para postar aqui para vocês.
Os dissabores de Hope e sua tripulação continuam amanhã, se não houver ventos contrários.
Obrigado por navegarem comigo!!!



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