Desgraçada escrita por Aluada


Capítulo 1
Capítulo único.


Notas iniciais do capítulo

Baseado em um programa independente de um canal regional da televisão aberta.



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            Tocou uma, duas, três vezes até Bebel atender.

            — Alô?

            — Ai, Bebel!

            — Que que foi, Ci?

            — Descobri, Bebel. O maldito me trai.

            — Nããão! Tem certeza, o Adílson?

            — O próprio, mulher, o próprio. Lembra que ontem ele disse que ia jogar futebol, que era pra ficar em casa? Foi jogar coisa nenhuma, foi se encontrar com a vaca da firma dele!

            — Qual delas?

            — Aquela loira oxigenada lá, a tal de Vivi. Tô com uma foto dela na minha mão! Ele ainda tem a cara-de-pau de pôr uma foto dela na carteira dele! SEM-VERGONHA!        

            — Sssh, mulher, fala baixo, vai que o homem ouve!

            — Que nada, ele tá no banho — mas abaixou o tom da voz — Eu vou matar aquela desgraçada, Bebel, juro que vou.

            — Cruzes, não fala isso, não! Larga ele de uma vez, e só!

            — Acha que é fácil, é? E quem é que paga as conta?

            — Você, ora! Té parece que cai a mão trabalhar.

            — Ih, é ruim, hein? Eu não vou perder o programa da Palmeirinha por causa de homem, não. Se tem mulher querendo roubar o homem que é meu... ah, vai pagar, e caro!

            — Ai, Ci...‘Cê tá mesmo certa disso?

            — Não acredita em mim, não? Eu vou matar aquela desgraçada, juro que vou.

            No outro lado da linha, a amiga mordeu o lábio inferior.

            — Então escuta, Ci, escuta. Tem uma mulher aí perto da sua casa, acho que uns três quarteirão pra baixo. Ela chama Cléa Odim.

            — E que que tem?

            — Ela é Mãe de Encosto, vê gente no seu caso toda hora.

            — Macumba, Bebel?!

            — Sei lá que que é, Ci, sei lá. Mas sabe — e agora a outra teve de apertar mais o ouvido contra o telefone, a fim de escutar o sussurro gemido —, a minha vizinha foi despedida e foi falar com a mulher. No dia seguinte, a patroa dela apareceu mortinha!

            Não precisou ouvir mais.

            — ‘Cê sabe o endereço certinho?

 

*****

 

            Cibelly – dois ‘eles’ e um ‘ipslon’, com muito orgulho – era uma dona de casa de uma tímida cidade no interior do estado de São Paulo. Carregava nas costas 46 anos de sacrifício e um marido domingueiro preguiçoso, operador de empilhadeiras e, mais recentemente descoberto, traidor. Gostava dele mesmo assim – afinal, era ele o responsável pelos armários novos da cozinha e suas unhas pintadas em florzinhas. Gostava tanto, aliás, dele (e da mobília embutida), que agora se via completamente disposta a fazer-se de ignorante perante a nova situação, só para mantê-lo feliz (e a cozinha intacta).

            Também estava convencida de que a felicidade do marido poderia independer da vida de Vivi. Iria se assegurar disto.

            No dia que se seguiu ao comentário de Bebel, esperou dar três horas da tarde, pendurou o avental e desceu os benditos – malditos – três quarteirões. Não teve dificuldade de encontrar o 402 da rua, uma modesta construção com a pintura descascando e telhas quebradas. Passou pelo portão aberto sem conseguir evitar fazer barulho, e desceu pela rampa que guiava à verdadeira casa pela qual procurava: a do terreno dos fundos.

            Viu somente uma porta azul nas mesmas condições, e foi nela em que bateu.

            — É aqui que a Mãe Odim atende? — gritou.

            Com um súbito puxar de madeira emperrada, um rosto de mulher surgiu diante de seus olhos. Pertencia a um corpo gordo e quadrado, escondido por cortinas floridas, e era envolto por mechas cinzentas em um coque apertado.

            — A própria — seu sorriso esticava mais do que aparentaria — Entra, querida.

            Foi convidada a se sentar em um sofá que em muito combinava com o vestido da senhora, exceto pelo tom bege sujo de poeira. Serviu-se, depois, de um pouco de chá de uma garrafa térmica trazida, e fez força para não se afundar completamente na espuma velha. Para isso tudo depreendeu muita atenção, e por isso até mesmo esqueceu, por um momento, o que tinha vindo fazer em um lugar tão... típico.

            — ‘Cê não marcou horário não, né, querida?

            A voz feminina a pegou de surpresa, e se o assento não fosse tão fofo, teria pulado.

            — Ahn, o quê? Não, não – precisava, dona?

            — Na verdade, eu não costumo atender sem horário, não; mas hoje eu tô livre, ‘cê deu sorte. Da próxima vez, é melhor ‘cê ligar — e lhe estendeu um cartão que tirava do bolso dos seios, alargando, ainda mais, a linha da boca.

            Cibelly se deteve a observar a apresentação da Mãe por muito tempo, segurando o pedaço de papel com os dedos trêmulos:

MÃE CLÉA ODIM
Joga-se cartas, búzios e tarô
Magia p/ o Amor – resultado 12 horas
Tens dúvida? Tens problema no amor? Casamento em decadência? Inveja no teu caminho? Sofre com problema com o patrão? Teus vizinhos te incomodam? Não encontra teu lugar na família? Não importa o teu problema. Com apenas uma consulta você encontrará à solução.
HORÁRIO DE ATENDIMENTO: das 8:00 às 20:00hs, todos os dias, inclusive domingos e feriados.
ATENDIMENTO COM HORA MARCADA.
Fone: (19) 3452 —
 

            — Isso tudo é medo, querida?

            Não deu tempo de ler o resto. Amassou um pouco o panfleto com o susto e logo já se pôs a guardá-lo no bolso da saia, respirando de modo ofegante.

            — Eu? — seu tom era despropositalmente irônico — Magina!

— Ora, ora... Tem que ter medo não, querida. Eu sou profissional, faço isso há 20 anos. Te garanto que você tá bem.   

— Escuta — e agora se aproximou da senhora, quase sussurrando em seu ouvido —, o que exatamente a senhora faz?

Cléa Odim escancarou a boca de um modo assustador, revelando perfeitamente o conjunto de seus dentes mal-cuidados, ao mesmo tempo em que deixava escapar o som ardido de algo que raspava – na verdade, gargalhava.

— Minha filha, minha filha... quando a gente morre, pra onde você acha que a gente vai?

— Pra... Deus.

— E se a pessoa tiver medo? E se ela for muito ligada ao material? E se ela for baixa demais pra se elevar, pra subir, pra continuar? Que que ‘cê acha que acontece?

O coração de Cibelly palpitava demais para que ela pudesse formular qualquer resposta inteligível.

— Quem não se desliga da Terra, filha, na Terra fica.  Esses espírito fica vagando por aí, olhando a gente, tentando falar. Às vezes eles apronta. Eles gosta de se divertir às nossas custa, gosta de nos enganar. Gente boa eles não são, senão não tava aqui. Eles fica aqui procurando diversão... e o meu trabalho, filha, é dá essa diversão pra eles.

— A senhora... fala com eles?

— A gente, Mães de Encosto, temos nosso meio de comunicação, dependendo do que a gente quiser fazer. E o espírito, filha, vira o encosto. ‘Cê nunca viu gente que, de repente, começa a brigar a família à toa, começa a esquecer às coisas, fica doente de uma doença sem cura? Gente assim, filha, tá com encosto: tá com um espírito encostado nela, e fazendo as coisa ruim acontecer.

— Isso não é perigoso, não?

— Só pra quem leva o encosto, filha — abriu aquele sorrisos assustador mais uma vez — Eu já faço isso há 20 ano, sou profissional.

Por um momento, começou a repassar em sua mente todos os casos estranhos que já tinha visto por aí – as doenças, as brigas, as separações – e considerou fortemente se aquilo tinha mesmo sido obra de um espírito mal – será que essas coisas andam aqui?, arrepiou-se. Não poderia saber. A única certeza no momento era a de que, por mais terrível que a conversa parecesse, não conseguia deixar de considerá-la tentadora.

— Era isso mesmo que ‘cê tava procurando, querida? — pela primeira vez, a Mãe se dirigiu a ela sob um tom sério.

— Era, sim, senhora.

— Então, antes de mais nada, eu preciso saber o seu nome.

— Cibelly Fernanda da Costa Ferreira Pinto. Dois ‘eles’ e um ‘ipslon’.

— Agora — falava enquanto rabiscava em um bloco de papel, provindo também do bolso do seio do vestido —, qual é o seu problema?

            — Meu marido me trai, dona.

            — Ai, eu já até desconfiava. Deve ser o quinto caso esse mês. A coisa tá feia. Qual é o nome do infeliz?

            — Adílson Adalberto Ferreira Pinto.

            — E da sem-vergonha?

            — Viviane Regina da Graça.

            — Hum — pareceu ponderar por um momento —‘Cê já veio aqui com idéia do que ‘cê queria fazer com ele?

            — Com ela, dona, com ela. E eu quero matar a desgraçada.

            Cléa Odim tirou os óculos do apoio do nariz e permitiu-os ficarem apenas segurados pelo apoio do pescoço. Assim, os olhos nus de qualquer lente, Cibelly tinha a impressão de que podiam lhe perfurar o rosto somente com o olhar.

            — Esse é o meu serviço mais caro — disse, por fim.

            — Eu pago qualquer coisa, eu dou um jeito depois. A senhora parcela?

            — Não, filha.

            — Ai, não, tudo bem, então. Eu falo com uma amiga minha, eu sei que ela me ajuda. Eu não posso mais agüentar aquela desgraçada na minha vida, dona. Não dá. Ou ela morre, ou eu não tenho mais paz.

            — Você vai ter que fazer algumas coisa pra mim.

            — É só falar, dona, eu faço qualquer coisa.

            — Então vem.

            Não esperava que tamanha massa corporal pudesse se levantar tão rápido. Empurrou-se para fora do sofá com mais força do que poderia prever e saiu correndo a seu encalço, somente alcançando-a muito longe dali, já fora da casa, cinco quarteirões mais abaixo, à beira do riozinho que cortava o fim do bairro. Um mato espesso e muito alto se espalhava por todos os cantos.

            — ‘Cê vai catar um sapo.

            — Que que você disse?!

            — Um sapo, filha, um sapo. O único jeito de fazer o que ‘cê quer é com um sapo. Vai, cata ele e me traz lá em cima. Eu vou tá te esperando.

            E deu as costas.

            Cibelly soltou um palavrão bem sujo. Não havia escolha, de qualquer forma; o trabalho era feio, precisava de coisas feias. Procurou não prestar muita atenção na vegetação que lhe roçava os joelhos, ou nos mosquitos estúpidos sugados por seu nariz. Chegou o mais perto do rio Jauzinho que pôde, e depois de correr, gritar, xingar, parar para prender o cabelo e escorregar diversas vezes, conseguiu agarrar o “danadinho de bicho nojento”.

            Quando voltou à casa, a Mãe Odim lhe aguardava sentava novamente no sofá, segurando uma agulha e uma linha preta. Do seu lado, tinha um vaso pequeno, muito velho e trincado nas bordas, coberto por uma tampa improvisada de lixeira de plástico.

            — ‘Cê tá com a foto dela aí? — a mais gorda perguntou, os olhos fixos ao relógio amarelado da parede.

            — Tô, sim, senhora – mas será que eu não podia largar esse negócio logo?

            — Põe ele no vaso e fecha a tampa pra ele não escapar. Pega a foto dela. Rápido, que a gente não tem muito tempo.

            Obedeceu. Foi com mãos trêmulas que estendeu a foto três por quatro de uma moça muito bronzeada, loira, cabelos escorridos de alisamento e sobrancelhas castanho-escuras.

            — Escuta com atenção, que eu só vou falar uma vez só. ‘Cê vai pegar essa foto, pôr ela na boca do sapo e costurar a boca do sapo com essa linha e com essa agulha. Costurar, é, com ele vivinho mesmo, e costurar bem forte pra não soltar. Enquanto ‘cê costura, ‘cê tem que ir pensando no quê ‘cê quer que aconteça com a moça da foto. Forte, bem forte, com vontade. Vai lá, filha. Faz.

            Longos segundos se passaram até que Cibelly percebesse que aquelas palavras foram ditas para ela. Costurar a boca de um sapo vivo? Quem, eu?

            Jesus, o que eu não faço pela minha cozinha!                       
           Abriu a tampa do vaso com cuidado e segurou o animal o mais rápido e firme que pôde. Prendeu a respiração e foi. Morre, Vivi, enfiou a mínima fotografia contra a vontade do outro, você vai pagar por pegar o meu homem, deu o primeiro ponto, você vai morrer, deu o segundo, vai morrer, o bicho tentou escapar, mas ela o apertou com mais força, vai morrer, vai morrer, deu o quarto, o quinto, o sexto... MORRE, DESGRAÇADA!

            Por último, deu um nó.

            O animal ainda lutava. Deu um tapa na cabeça dele.

            — Pronto — sentia-se cansada.

            — Ótimo. Agora, filha, guarda ele lá dentro de volta, que a gente vai sair de novo.

            Mal teve tempo de considerar a afirmação. Mais uma vez, a Mãe de Encosto deixava a casa sem sinal algum de preocupação ou cortesia. Cibelly respirou fundo e saiu correndo, uma mão em cima, outra embaixo do vaso, os músculos gritando da dor do esforço de andar pela ladeira por muito tempo. Pois, sim, agora iam pelo lado oposto ao de Jauzinho: subiram o declive até muito depois da casa dos Ferreira Pinto, até depois da casa de Bebel, quase perto do centro da cidade. Contornaram o quarteirão envolto por muros altos, acharam um portão de ferro no que parecia ser a parte dos fundos e o empurraram.

            Chegaram ao cemitério.

            Mãe Odim a segurou forte pelo pulso.

            — Ali atrás, quietinha, vem! — sussurrou.

            Agacharam-se atrás de um sepulcro grande, alto, verde de umidade. Estavam no canto mais afastado; de lá, circundando-o com a cabeça, tinha-se o mais completo panorama do lugar, cinza de túmulos e colorido de flores.

            — Tó — Cibelly recebeu uma colher de sopa — Enterra.

            Não questionou, nem mesmo em pensamentos. Morte, morte, morte. Tudo o que passava em sua mente eram flashes de Viviane: primeiro uma Viviane pálida, depois uma Viviane ensangüentada, uma baleada, os olhos escorrendo pelo rosto, a pele se desgrudando dos ossos, os membros apodrecendo até caírem – um grito de horror, uma risada, apavorantes.

Não poderia saber qual era o seu.

Enfiou o sapo vivo no buracoe jogou a terra maldita por cima; marcou o local com um X, pagou a mulher com duas notas de cinqüenta novinhas da venda de coxinha do mês e foi embora para casa, esperar o marido.

 

*****

 

Às cinco horas da tarde do dia seguinte, estava colada ao relógio do videocassete. Vinte e quatro horas tinha sido o prazo que Mãe Cléa Odim tinha lhe prometido para o trabalho se cumprisse. Supunha que tivesse deixado o cemitério em torno das quatro e meia; portanto, àquela altura, Vivi tinha que estar mais do que morta. Nem precisou fazer as contas na calculadora. Tinha os dedos presos em figa e os olhos fixos à porta de entrada.

Finalmente, Adílson chegou.

— Oi, homem — atirou-se em seus braços e lhe deu um beijo estalado nos lábios. O marido recuou com o comportamento incomum.

— Tá tudo bem, Ci? Que que ‘cê tá fazeno?

— Ih, não se pode mais mimar o nosso homem, não, é? — emburrou, mas logo sorriu de novo — É que sabe, bem, eu tava com um mau pressentimento... tava preocupada...

— Com o quê?

— Eu tava com uma sensação de que... sei lá, de que alguém da firma tivesse morrido.

Observou-o atentamente, mas não encontrou sinal de tristeza em sua expressão. Era só susto:

— Cruzes, mulher, fala isso não!

— Quer dizer então que tá todo mundo bem lá?

— Tá, sim, graças a Deus.

— Todo mundo vivinho?

— Vivinho da silva — empurrou-a levemente para um canto — Agora dá licença dessas sua conversa estranha, que eu vou tomar um banho.

Cibelly voltou a cabeça novamente para o relógio digital: 17h17. Muito passado das quatro e meia.

— Desgraçada! — xingou e foi para a cozinha planejada.

 

*****

            Eu devia ter pegado a calculadora do Ro, lamentava-se, eu fiz conta errada. Não era pra acontecer ontem. É pra hoje. E de hoje não passa!

Arranjou-se na mesma posição estratégica do dia anterior, colada às cinco horas marcadas e à porta. Quando o marido entrou, nem ao menos conseguiu esconder a expectativa:

— E aí, morreu?

— Quem, Ci, quem?!

— Alguém da sua firma! Tenho certeza que hoje morria!

— Pára com essas coisa, mulher! Morreu ninguém não!

Ela bufou. Pegou a bolsa que estava em cima do sofá e passou por Adílson grosseiramente, enfurecida.

— Onde ‘cê vai?

— Cabou os ovo — foi áspera, e bateu a porta.

 

*****

 

Quando deu por si, esmurrava a porta azul dos fundos da casa desmantelada.

— TRATANTE, MENTIROSA! ABRE A PORTA, MÃE ODIM!

Gritou a meia dúzia de palavras bem umas três vezes, até não ter mais superfície onde bater. Tomou fôlego para berrar alguns outros muitos desaforos ensaiados, mas parou no meio do caminho: esperava ter a sua frente a mulher gorda e velha, em seu sorriso esticado de cremalheira; todavia, em seu lugar encontrou um par de sobrancelhas grossas e escuras, frisadas, assustadoramente destoantes do pálido das mechas loiras oxigenadas.

Era Vivi.

— Dona Cibelly, a gente tava te esperando. Pode entrar.

Não saía voz da garganta, não conseguia mover um músculo. Manteve-se estátua à soleira da porta, até ouvir passos ligeiros vindos do corredor ligado à sala.

— Chegou a tempo, filha, que bom! — a gorda ficou ao alcance da vista — Acho que nem preciso apresentar as duas, né? ‘Cê já conhece a Vivi. Ela é minha sobrinha.

            Sobrinha.

Não, aquilo era mentira, ela não poderia realmente ser a tia justamente daquela quem ela mais odiava... não poderia contratado justamente a parente... Mãe Odim jamais poderia matar Vivi...

Não, não poderia. Por isso lá estava ela, loiríssima, rindo da sua cara com os mesmo dentes tortos e amarelos da família.

            Você chegou a tempo.

Num único instante, entendeu tudo. Não precisou da calculadora. Deixou as cascavéis afundarem-se em suas gargalhadas e saiu correndo.

A ladeira era infinita. Milênios decorreram até que enfim ela alcançasse a entrada principal do cemitério municipal, empurrasse o pesado portão de ferro e encontrasse o sepulcro de dois dias atrás. Sua espinha congelou. O X não estava no mesmo lugar.

Cavou a terra suja com as próprias mãos, sentindo os olhos arderem com as gotas de suor da testa. Não parou até achar o que queria. Na realidade, não queria achar; desejava que tudo aquilo fosse um sonho, um pesadelo horrível, que logo acordasse nos braços de Adílson, afundando num cochilo de domingo à tarde...

Mas não. Seus dedos encostaram em algo mole. Afundou-os ainda mais e puxou o animal para fora.

Ouviu os próprios soluços de desespero apenas uma vez. Cravou as unhas entre os lábios gosmentos, arrancando a linha preta num único movimento. Então, não houve mais tempo: pareceu perder a sensação do braço esquerdo, uma dor fulminante invadiu-lhe o peito e subiu-lhe até a garganta, e depois morreu.

Na boca do sapo, sua foto três por quatro.


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