Primaveras escrita por Melli


Capítulo 24
Capítulo 24




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Quando eu tinha dez anos, coloquei na cabeça que queria ter um cachorro. Na minha imaginação, ele tinha o pelo bem branco e macio cheio de manchinhas pretas. Ah, além disso tinha o focinho em formato de coração, sem deixar também de relatar que ele tinha um rabo beeeem comprido que chocalhava toda vez que estava feliz. Era como os cachorrinhos do 101 dálmatas e tão felizes e saltitantes quanto. Com a esperança de que o meu "Max" chegasse (sim, eu amava o nome do meu pai, tanto que iria colocar no cachorro), eu o desenhava milhares de vezes e colava nas paredes do meu quaro. Á cada desenho novo, eu corria mostrar para meus pais, que sempre respondiam a mesma coisa.

— Ah, que bonito, um cachorro. Legal, agora pode deixar o papai um pouco sozinho? Estou editando algumas fotos aqui no computador. - Me dava um empurrãozinho para que eu saísse dali.

Tudo era constantemente do mesmo jeito. Sempre que eu ia mostrar um desenho para o meu pai, ele dizia "Filha estou ocupado agora" ou "Agora não, depois o papai vê." Mas nunca ele via. Eu começava a sentir que com o passar dos anos, as coisas pareciam piorar. Ele já não brincava mais comigo, já não me levava pra andar de bicicleta no parque e nem fazia batata frita nos domingos em que ele estava aqui. Toda a  atenção dele era voltada para suas fotografias e as suas edições bobas. Mas ao contrário dele, mamãe sempre apreciou os meus desenhos, mesmo que eles não fossem dos mais bonitos. As vezes, os meus desenhos a fazia chorar, principalmente os cartõezinhos de dia das mães. Mesmo sabendo da coisa toda entre meu pai e eu, acho que ela não chorava com pena da minha situação. Pois é gente, por mais que as mamães pareçam ser duronas, não são. Ela via meus desenhos e sempre os elogiava dizendo "Oh, que lindo minha filha!" e nessa hora, o instinto de mamãe que vê a sua criança crescendo fala mais alto, e os olhinhos enchem de lágrimas. Saber que ela gostava dos meus desenhos me confortava, mas ao ver os meus desenhos do tão desejado cachorrinho, ela exprimiu uma reação um pouco diferente:

— Está maravilhoso filha, como todos os seus desenhos! Mas... Você quer um cachorrinho?

— Sim! Eu quero um cachorrinho igual esse do desenho. Ele vai se chamar Max, e eu vou dar uma casinha pra ele e comida gostosa e...

— Não podemos ter um cachorro minha filha... Eu sinto muito.

— Porque não podemos? Todo mundo tem cachorrinho em casa...

— Você não é todo mundo.

— Mas porque mãe? Eu juro que vou cuidar dele. Dar comida, banho, limpar a caquinha dele...

— Moramos em um apartamento, Melli... Os cachorros precisam de um ambiente que possam crescer fortes e saudáveis, e aqui no apartamento não teria espaço para ele correr, além do mais, faria  um barulho danado, e incomodaria os vizinhos.

— Vai mãe, deeeeixa... Ele pode correr lá na varanda!

— Por mim é não. Do mesmo modo que você não gosta de ficar trancada sozinha aqui, o cachorro também não gostaria de ficar enquanto eu estiver trabalhando e você na escola.

— Aaaaah manhêê...

— Para de manha, hein Melli! Porque você não vai lá na quadra brincar com suas colegas? Leve as bonecas, sentem em uma sombra gostooosa...  Assim você esquece essa ideia de cachorro aqui dentro de casa.

— Eu não quero brincar.

— Vá, estou mandando! Elas passaram daqui de frente e perguntaram por você, mas estava ocupada, então eu disse pra elas que logo desceria. Elas devem estar te esperando até agora!

— Ah... Eu vou então.

No meu quarto, peguei algumas Barbies e ursinhos de pelúcia e desci para a quadra. Não discuti muito com a minha mãe sobre o cachorro, porque percebi que se eu ficasse mais um pouco falando na cabeça dela, ela iria dar com o chinelo no meu bumbum. Ai que dor! Além do mais, eu estava crescendo, e já começava a entender que nem tudo é possível, e que as vezes é preciso ficar sem algumas coisas que gostamos. Lá em baixo, as meninas realmente me esperavam, mas estranhei, porque ao invés de brinquedos, elas estavam com alimentos e uma toalha xadrez imensa. Quando a iam colocar no chão, perguntei:

— Vamos brincar de pic nic? - Coloquei as bonecas no chão, aliviando a dor chata de carrega-las.

— Não, nós vamos fazer um de verdade! - Disse Gabi, estendendo a toalha no chão .

— Foi ideia da Grazi! - Bany apareceu.

— É, minha mãe fez algumas bolachinhas de maçã com canela e como fez a mais, eu pedi para ela as bolachinhas pra repartir com vocês. - Disse Gabi.

Elas truxeram um pouco de tudo: Bolachinhas, doces, salgados... Mas e eu? Não poderia participar do pic nic de mãos abanando.

— Gente, eu vou lá em casa buscar alguma coisa, tá?

Rapidinho fui lá pra cima, e pra ficar mais rápido ainda, tomei o elevador. Entrei "voando" em casa e logo fui pedindo pra minha mãe alguma coisa pra levar. Por sorte, no dia anterior ela tinha feito um montão de pão de queijo, então ela  forrou uma cestinha de palha com um guardanapo,  colocou uma porção de pãezinhos lá dentro e os cobriu com um guardanapo de  xadrez vermelho.

— Pode levar! Façam bom proveito deles. - Mamãe me entregava a cesta.

— Iremos comer todos!

— Ah! Estão sentadas na sombra? Eu acho bom que estejam, porque não quero ver a senhorita como um camarão depois, hein!

— Estamos na sombra, mãe. Ahh, está tão gostoso lá... Vem com a gente, mãe!

— Hahahaha, tenho coisas para fazer filha. Sem contar que é coisa de vocês, seria chato se eu aparecesse por lá, não é?

— Tá. Vou lá!

Voltei junto das meninas, deixei a cestinha no chão, e então o tão comentado assunto do cachorrinho voltou:

— Vocês sentem vontade de ter um cachorrinho?

— Eu tenho vontade de ter um, mas a minha mãe disse que não podemos. - Disse Gabi, cabisbaixa.

— É, a minha mãe também diz que não. Ela diz : " Onde já se viu criar cachorro em apartamento, Graziele? Você está louca?" - Grazi imitava a mãe a bronqueando.

— Vocês sempre moraram aqui? - Perguntei.

— Antes eu morava em uma casa, mas ela era pequena demais. Nem lá eu pude ter um cachorrinho. - Grazi respondeu.

— Eu sempre morei aqui.

— Eu também! - Bany entrou na conversa. - Mas e você, onde morou?

— Em uma fazenda, e lá eu tinha um cachorrinho que se chamava farinha. Era muito legal morar lá...

Ao mesmo tempo em que conversávamos, iamos comendo salgadinhos e outras coisas que estavam ali, entretanto ouvi a voz de minha mãe me chamando um pouco longe.

— Acho que ouvi minha mãe me chamar... - Me levantei do chão.

E mais uma vez, só que agora mais de perto, a minha impressão se concretizou: Ela estava mesmo me chamando.

— Venha, vamos! Iremos para a fazenda de sua avó.

— Aaah, mas não podemos ir outro dia?

— Não, ela está nos esperando! Vamos, se despeça de suas amigas.

— Tá... - Resmungou em voz baixa - Até mais gente, eu preciso ir.

— Ah, mais já?

— Sim...

— Tudo bem então.

— Tchaaau! - Disseram todas em uma só vez.

Algumas horas depois, pegamos o longo caminho até a fazenda da vovó Savannah. Eu confesso que não gostei de ter que deixar a brincadeira com minhas amigas, mas a ideia de visitar a minha avó para mim era muito legal, porque eu adorava a fazenda,  rever o lugar que passei parte de minha infância, adoro minha avó,  além de gostar muito observar as coisas por fora da janela no caminho até lá. Por incrível que pareça, eu ainda me lembrava do amigo que deixei por lá quando me mudei, e na metade do caminho, tentava me lembrar mais sobre ele, de suas características físicas, do que brincávamos, e talvez por isso eu tenha ficado um pouco triste. Será que ele ainda morava por lá? Mal tínhamos chegado, e mais que depressa eu quis saber notícias dele.

— Vó, e o menino que mora aqui, cadê ele? Eu quero ver ele! Ele era meu amigo e...

— Ah minha filha... Já não sabemos o paradeiro da família dele por um bom tempo. - Minha vó olhava pra mim, com um semblante de pena.

— Quer dizer que ele não mora mais por aqui?

— Não...

— Mas porque?

— É sério mesmo que não estão mais morando aqui do lado, mãe? - Minha mãe também entrou na conversa.

—É verdade sim. Tudo o que eu soube é que tiveram que vender a propriedade ás pressas...

— E agora mãe, como é que vou brincar com o Lysandre? Quando vou vê-lo de novo? E se eu nunca mais o ver? Temos que brincar mais...

Saber que o Lysandre não estaria mais ali para brincarmos me deixou muito chateada, e ao saber disso, minha mãe me disse algo que acabou me fazendo ficar mais magoada ainda. Parecia que diante de uma situação desta, ela permanecia fria, insensível, como se nunca tivesse por alguma circunstância, um amigo com o qual conviveu muitos anos agora longe dela.

— É a vida minha filha... Por vezes ela acaba levando pessoas queridas embora. - Ela dizia isso ao mesmo tempo que olhava para o horizonte, com seu olhar carregado de tristeza.

Algum tempo depois, quando minha mãe não estava por perto, decidi conversar com a minha avó e saber porque minha mãe ficara tão triste. Acho que também acabei deixando a vovó um pouco triste também, mas acabei descobrindo o porque da frieza de minha mãe. Minha avó me contou em meio a lágrimas as quais ela segurava, que um pouco antes de eu nascer, o meu avó faleceu quando levou um tiro acidental enquanto caçava na floresta, e como minha mãe estava grávida na época, ela não ficou sabendo da notícia, porque com certeza poderia ficar nervosa demais, afetando assim a gestação. Tempos depois ela ficou sabendo de tudo, e foi como se o mundo acabasse para ela. Até então, eu também não sabia dessa história, e quando soube, fiquei admirada. Meia tristonha, minha vó entrou pelos fundos de sua casa, e eu fiquei por ali, sentada na mureta da porta da cozinha observando o campo de margaridas que havia a poucos metros dali.

* Melli's flashback *

— Vem! - Lysandre estendia a sua mão para fora do canteiro de flores.

— Eu estou com medo... Tem bichinhos aí...

— Ah, mas eles não fazem nada, são amiguinhos!

— Mas...

— Vem! -Puxou a amiga pela mão.

— Quantas flores! Muitas margaridas!

— É mesmo! Ei, podemos brincar!... Está com você! - Relou no braço de Melli, e começou a correr para longe da mesma.

— Ah seu sapeca, você vai ver só! - Correu atrás do amigo.

— Hahaha não me pega, não me pega! - Corria.

— Pegueeeeei! - Sem querer, acaba empurrando o empurrando, e nós dois caímos no chão.

— Hahahahaha 

— Foi sem querer... Eu tropecei.

— Ah, mas foi divertido.  Ei... -Ele virou-se para o lado e apanhou uma margarida.

— Eu também gostei de brincar de pega-pega!

— Toma, é pra você. - Me entregou a flor com toda a delicadeza.

— Mas que bonitinha... Eu adoro margaridas!

— Que legal! Eu te dei esta margarida porque você é minha melhor amiga.

— Você também é o meu melhor amigo! - Apanhei uma margarida e de maneira serena ajustei-a no cabelo dele.

*fim do flashback*

Bem, ao final do dia eu já não tinha mais a cabeça no meu cachorrinho Max, mas pensava agora no meu amigo de infância, o Lysandre. Ainda quero reencontra-lo depois desse tempo que ficamos longe, e mesmo com vergonha, gostaria de dar um abraço bem apertado nele.


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