Diuna Trunk - Chronicles escrita por Cahxx


Capítulo 3
Capítulo 3




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/673393/chapter/3

 

Bebo um gole da cerveja. Observo a movimentação das ruas pela sacada do meu estúdio. Cães brigam por um pedaço de carne jogado a eles pelo açougueiro daqui debaixo do prédio. Uma mulher caminha pelo beco sujo, seus saltos aparentemente caros com certa dificuldade de desviar do paralelepípedo irregular. O açougueiro joga sacos de lixo na caçamba do beco e encara a mulher de salto e guarda-chuva preto:

— Está perdida, gracinha? - ela comumente o ignora e este espera que ela desapareça pela rua antes de entrar de volta para o açougue.

Bebo mais um gole de cerveja e avisto, do outro lado do quarteirão, dois caras brigarem porque um acaba de bater no carro no outro. É mais um dia comum. Ouço o celular tocar: uma mensagem de Howard, me informa a tela.

“St. Piemont IV, 155”, um endereço. Do que? Respondendo à minha pergunta, Simon me liga.

— Que foi agora?

— Olha como fala... Tem uma tarefa pra você. É pra encontrar um cara no endereço que te mandei. O encontro tá marcado pras 14 horas. Não se atrase.

— Perfeito. E quem é ele?

— Você vai descobrir.

— Óbvio, merda... - desligo.

Me espreguiço: o chão gelado sentido por meus pés descalços. Não sei se gosto muito desses momentos de solidão, pés nus, regata preta e short curto...

— Talvez eu precise de um gato. - comento em voz alta. Ouço um miado e avisto Thomas abanando o rabo amarelo em cima da minha mesa. - Não você, Tom. Você tem dono... Melhor sair que tá na minha hora, depois você volta.

Abro a janela e aguardo ele sair e saltar até sua sacada. Troco de roupa e pego uma das seringas no frigobar.

— Tá, ok. Preciso de comida... - tento me lembrar de passar no mercado enquanto monto na Celty e coloco o capacete. Acelero a moto e aceno para o açougueiro.

O dia está nublado. Óbvio. Mas está frio. Pessoas caminham agasalhadas pela rua, o céu cinza reflete no meu visor preto e percebo, não sei por que, que não sei mais o que é “almoçar”. O ponto de encontro é em frente a uma farmácia, totalmente bizarro. Paro no meio fio, tiro o capacete e dou uma olhada 360º pelo perímetro: nenhum sinal de alguém que tenha cara de ter sido contratado pelo Simon.

— Desculpe o atraso - ouço alguém dizer e percebo alguns metros a frente um cara parar sua moto, tirar o capacete e sorrir. Não, ele não parece ser contratado pelo Simon. Ele é jovem, não deve ter chegado aos 30. Cabelos meio amendoados, barba rala, pele branca.

— Quem é você?

— Direta, hum? Sou da polícia.

Meus olhos piscam e num ato de reflexo puxo a pistola da cintura:

— Não, calma! - ele ergue as mãos e dá risada. Aquele cara começava a me irritar. - Simon sabe disso. Ele que me chamou. Trabalho num setor diferente: investigamos contratados de agências pela metrópole. Acontece que a policia nacional está tentando prender membros de um cartel ilegal que estão pra se reunir sexta-feira, à noite. Eles trabalham em conjunto a pesar de terem a liderança de Nando Petuti.

Esse nome me lembra algo... Mas me dá ainda mais fome.

— Sei... Tão querendo ajuda pra pegar esse cara, é isso?

O sujeito ri e me dá anda mais raiva dele:

— É... mais ou menos.

— Vocês não conseguem por quê?

— Na verdade nós não podemos... Nando é da Itália... Não pode ser preso pela nossa constituição.

— Certo, vocês querem que outra pessoa faça o trabalho sujo que vocês, por pura preguiça, não podem.

— Você me ofende... - ele parou de rir, mas ainda sorria.

— Certo. Seguinte cara: eu não sei por que Simon aceitou isso, e porque deixou você ver minha identidade... Mas daí EU aceitar isso é diferente. Não me envolvo com a polícia.

— Não se envolve desde 2028... antes disso, você era membro honorária da academia civil...

— E como sabe disso?!

— Simon me contou.

Engoli seco. Havia um contrato. Eu não libertaria nenhum dado da agência 27 e eles protegeriam minha identidade. Que merda de contrato foi esse?!

— Ele não tem esse direito.

— Eu sei... E sinto muito por isso. Mas se os seus chefes estão quebrando contratos é porque têm algum bom motivo pra isso.

— Nem imagino qual seja... - reviro os olhos de forma irônica.

— Mas não está nem um pouquinho curiosa pra saber?

Eu o encaro e ele sorri como se já soubesse de sua própria vitória. Ele me irrita. Viro o rosto, observo as pessoas caminharem pela rua, a luz do céu acinzentando, porém claro, me pesar nos olhos. Passo a língua pelo lábio inferir, medindo as opções que eu tinha naquele momento. Maldita hora em que mudei de carreira.

— Vamos nessa.

 

— Eu ainda não sei o seu nome!!! - gritei enquanto ambos cortávamos os carros pela ponte estiada até o centro.

— Me chamo Erick! - ele gritou de volta, me cortando à frente com sua moto modelo antigo DL281.

— Sou Diuna!!!

— É um prazer conhecê-la, Diuna - ele gritou, sorrindo como se tudo aquilo fosse divertido. Não era!

— Pena que eu não possa dizer o mesmo... - comento para mim mesma acelerando a Celty e deixando-o para trás. Não pude ver seu rosto, mas imagino que ele deva ter sorrido e acelerado sua DL281 também.

Entramos na delegacia do 18º distrito, aquele lugar me causando um misto de nostalgia e medo: não saí da polícia porque não gostava de lá. Foi, de certa forma, uma necessidade, apesar de ainda ter sido uma escolha. Mas tinha medo de que minha identidade atual fosse comprometida. Não por mim, eu sei me cuidar muito bem. Mas pela minha família... o motivo de todos os meus esforços diários.

— É um prazer conhece-la, senhorita...?

— Trunk... Diuna Trunk. - apertei a mão do policial que nos recebera e olhei de forma tensa para Erick que, apesar de mais sério, ainda tinha um sorriso nos olhos. O delegado tinha cara desses funcionários públicos engomadinhos que seguem as regras e leva a família pra jantar aos finais de semana. Lembro que na minha época de servidora do país, meu chefe era o general George Church, um sujeito com 1.90 de altura e expressão de quem tá sempre comendo merda e por isso vai descontar em todo mundo.

— Sou o delegado John Stacy. Estou surpreso que ela tenha aceitado vir com você, Manfred. Sabe, a maioria das garotas fogem quando percebem que ele tem a língua presa.

Foi a primeira vez que eu dei risada e o encarei a tempo de ver seu sorriso sumir de vez.

— Vamos, sente-se. Aceita uma água, um café?

— Uma cerveja?

O delegado pareceu pego de surpresa com meu pedido e encarou Erick, que soltou uma risada contida.

— É brincadeira. Café está bom.

— Ah, certo - e ele ajeitou o terno, tentando se recompor - Bem, vamos ao que interessa. A essa altura o Erick já deve ter contado nossos planos de intervenção na reunião de sexta-feira.

— Intervenção é um belo eufemismo... - comentei com ironia.

— Como disse?

— Nada. Continue.

— Certo. Bom, não temos exatamente um plano, mas acreditamos que o trabalho em conjunto com uma das melhores agências da metrópole possa tornar o nosso objetivo um sucesso, eu acredito.

— Melhor - eu o corrigi.

— Como?

— A 27 é a melhor agência da metrópole.

— Ah, desculpe, mas ainda não. Mas com a nossa ajuda, pode ser.

Franzi o cenho e finalmente entendi:

— Então é isso. Simon e Howard aceitaram a aliança em troca de títulos! Babacas... Uma agência não se faz de títulos, mas de...

— Pela qualidade de seus trabalhos - John completou minha frase. Eu o encarei surpresa. - Está certa, senhorita Trunk. E a sua agência eliminando os membros do maior e mais sondado cartel ilegal do país, não acha mais do que suficiente?

— Por que a 27? - eu quis saber - Existem dezenas de agências pela cidade. Algumas delas com mais membros do que a nossa. Simon e Howard só têm a mim.

— Ninguém quer se comprometer, senhorita Trunk. Caso esta operação dê errado, o pessoal do cartel vai cair em cima de vocês. Irão perseguir cada membro da agência. E como...

— Eu tenho os chefes mais malucos da cidade, eles aceitaram - eu continuei a frase.

— Exato - o policial deu uma crispada de lábios rápida e contida.

— Além disso - eu completei - eles não têm nada a perder.

John abriu um sorriso e cruzou as mãos na altura do queixo:

— Você é esperta, senhorita Trunk.

Percebo Erick remexer na cadeira e olho de canto pra ele, percebendo que ele tem uma expressão de desconforto pelo final da conversa.

— Então estamos de acordo?

— É, acho que sim... Só quero saber uma coisa: o que a polícia pode me oferecer de diferente?

— Essa é a melhor parte.

Experimento uma espécie de óculos intercerebral no qual todas as informações nervosas que eu transmito são explicitadas numa mini tela atrelada ao meu olho.

— Faça o teste. - me sugere um dos técnicos que trabalhou nessa coisa. Tento pensar em qualquer coisa que pareça interessante, mas a única ideia que se passa pela minha cabeça é que estou com fome. E atendendo a isso, uma lista dos restaurantes mais próximos da delegacia surge em frente aos meus olhos.

— Funciona mesmo - Erick comenta rindo. Me irrito com sua atitude e logo a imagem no visor muda e o perfil histórico de Erick Manfred surge na tela, fazendo-o parar de rir.

— Aqui diz que você tem 29 anos, gosta de carros velozes, comida apimentada e tem alergia a maionese. - começo a ler seu perfil.

— Desliga isso. Não tem graça.

— Também diz que é propenso a entrar em relacionamentos que não duram mais de três meses. Em média.

Erick puxa os óculos do meu rosto e é minha vez de rir:

— Sim, funciona mesmo - comento totalmente satisfeita por tê-lo feito parar de rir.

Mais spy gadgets, como gostei de chamá-los, me são apresentados: luvas super aderentes, cabos de aço retráteis e tudo que um espião “legal” do governo pode utilizar em prol da nação.

— Ah, isso aqui dá muito trabalho pra fazer? - eu quis saber.

— Não exatamente. Leva cerca de três dias em média pra cada um ficar pronto.

— Entendi... Mas eles são de propriedade ilegal se um cidadão comum tiver?

— Bom, não exatamente. Nenhum deles é considerado arma branca.

— Legal, legal. Mas tipo assim... E vocês têm direitos autorais sobre essas coisas?

— Não exatamente. Não podemos restringir a fabricação somente para um lado da equipe, por exemplo.

— Certo, certo... Depois que essa missão bizarra terminar eu vou ter que devolver tudo isso? - questionei.

— Não, pode ficar se quiser.

— Ah, tá, legal.

— Podia ter só perguntado isso desde o começo - Erick disse revirando os olhos com impaciência.

— E como é que eu ia saber que podia?! - me defendi ofendida com a minha falta de “cara de pau”.

Erick e eu passamos a tarde inteira estudando os nomes dos membros do cartel, repassando coordenadas e testando equipamentos. Tentei decorar o nome de todos os agentes que me acompanhariam na missão. Difícil... Mas terminado o dia, ainda sentia fome extrema.

— Vem comigo. - Erick me chamou assim que retirei todos os itens de teste do meu uniforme.

— O que? Onde?

— Vem, ué.

Seguimos para uma lanchonete conhecida dele:

— Traz o de sempre, Mick.

— Mick... - repeti em voz baixa - é o nome do treinador do Rocky.

— Rocky?

— Rocky Balboa. Nunca ouviu falar?

— Ah, já... Esse filme é de tipo... 1900 e guaraná com rolha?

— Década de 70’’, cara!

— Nossa, quase preto e branco! Nessa época ainda assistiam as coisas em televisões...

— Para... - dei risada inconformada pela falta de cultura daquele sujeito.

Dois sanduíches chegam à mesa e mordo um deles como se fosse morrer em seguida. Erick ri de mim:

— Qual é? Por que você tá sempre rindo de tudo?

— Eu não rio de tudo.

— Ri sim!

— Não... - e ele dá risada.

— Aí, viu?!

— Sei lá... - e ele apoia os braços na mesa, ficando mais próximo - Acho que eu não gosto de ficar sério.

— Bom, eu gosto.

— Sério? O tempo todo?

— Sei lá, acho que me acostumei. Tô sozinha o tempo todo. Não tenho porque rir. Além disso, o mundo é triste demais pra isso.

— O mundo é triste pra quem o vê assim.

— Como assim?

— Nos anos 2000 as pessoas morriam mais do que hoje e ninguém ficava dizendo que o mundo era triste. O Rocky apanhava o tempo todo e não reclamava do mundo.

— Eles não viveram a destruição da espécie humana.

— Então você e eu somos o que?

— Ah, você é otimista demais.

— E você pessimista demais... Vem cá, foi seu “trabalho” que te deixou assim?

Nos encaramos. Ele me fez parar pra pensar sobre mim mesma... Se me orgulho do meu trabalho? Bem, não exatamente. Mas eu pago minhas contas com isso.

— Tá, ok. Você venceu. Pra não dizer que sou pessimista o tempo todo, vou te mostrar uma coisa.

— O que?

— Vem comigo, ué.

Ele ri e me segue. Corremos em nossas motos pela cidade já mais deserta sob a noite fria. Atravessamos a ponte de volta e seguimos para o subúrbio. Por lá, ainda mais deserto. Silêncio. Alguma vegetação rasteira... Até me esqueço que existem outros bichos além de gatos e cachorros.

Estacionamos na frente de uma casa pequena, de madeira, luzes acesas:

— Mãe? Pai? - questiono abrindo a porta da sala.

— Filha! - ambos vêm me receber com abraços e carinhos. Sinto-me criança de novo, precisando daquele cuidado todo de quem não sabe comer com as próprias mãos. Eles recebem a nós dois: minha mãe lançando um olhar sobre Erick e eu com total malícia. Penso em desfazer seu engano, mas seria a primeira boa notícia que trago pra casa desde que larguei meu emprego casual.

— Venham! Sentem-se! Acabamos de jantar, mas ainda está quente.

— Não pai, acabamos de comer também.

— Ora filha, vai realmente recusar a comida da sua mãe?!

Me rendo às exigências e sentamos todos a mesa da cozinha: pão, manteiga, bolo de milho, café... Penso no que estou fazendo: trazendo um cara que conheci hoje pra dentro da casa da minha família. Mas não consigo me arrepender disso... não ainda.

— Você também é da polícia, Erick? - meu pai pergunta.

— Sim, senhor Trunk. 18º distrito.

— Olha só! Tenho um amigo de infância por lá. Já tiveram recessões como as do ano passado?

— Não, senhor, ainda não. O atual delegado está tentando contornar o caminho. Talvez dê certo.

— Compreendo... E quais são as suas intenções com a minha filha?

Quase me engasgo com o bolo:

— Pai!!! Mas o que...

Erick apenas dá risada e parece ficar vermelho:

— Tudo bem... Afirmo que são as melhores possíveis, senhor Trunk.

— Mas que coisa!

— O que fiz de errado? - meu pai realmente se fazia de desentendido. Minha mãe dava risada acompanhando Erick que realmente parecia se divertir com tudo aquilo. Eu só tentava não demonstrar minhas atuais habilidades de assassina.

Após um jantar tranquilo e perceber o quanto iria sentir falta deles dois, Erick e eu nos despedimos para a noite fria do subúrbio:

— Voltem sempre! - minha mãe gritou da porta.

— Adorei isso - Erick comentou, terminando de arrumar o capacete.

— Foi mal por tudo... Não estava nos planos o que meu pai disse.

— Não, tudo bem... Você leu aquilo sobre eu não ter relacionamentos duradouros, mas você deve ser muito solitária! Sua mãe realmente não acreditava que você pudesse estar comigo.

— Cala a boca! - dei um soco em seu braço e ele riu.

— Brincadeira... Mas agora falando sério... Por que me trouxe aqui?

Encarei o capacete em minhas mãos e ergui a cabeça para observar a rua pacata onde ralei o joelho por diversas vezes; aquele vento que sentia todas as manhãs nos meus cabelos compridos agora balançava meus fios curtos.

— Porque eles são tudo que tenho. E se algo acontecer comigo... Bom. É tudo que quero em troca, da polícia. Que protejam eles. - e encarei Erick pra que ele pudesse ver em meus olhos toda a seriedade daquele pedido, ou melhor, daquela súplica. E bem, ele realmente não quis rir dessa vez.

XxxxxxXxxxxxX


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Diuna Trunk - Chronicles" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.