O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 42
Capítulo 42




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Enquanto colocava a pala sobre o cálice já no altar-mor, e abria o lecionário na página desejada, Franco viu a aproximação de dois homens, que fizeram sinal de que queriam lhe falar. Vestiam calças jeans e camisas polo de cor escura, e não pareciam ter vindo acompanhar o casamento. Com um gesto, pediu que os homens subissem os dois degraus que os separavam.

— Senhor Luiz Franco? – Perguntou o mais franzino, tirando um papel do bolso da camisa.

— Pois não, sou eu mesmo.

— Temos uma ordem de prisão contra o senhor.

Franco ficou olhando impassivo o rosto dos dois homens como se esperasse por aquele momento a vida inteira. Pigarreou para limpar a garganta e fazer soar a voz o mais natural possível.

— Não questiono o que lhes trouxe aqui, porém tenho um casamento a celebrar. Se não fosse pedir muito, gostaria de cumprir essa missão e depois podem me levar.

Gemima que espreitava tudo atrás da cortina que levava a sacristia, entrou em desespero. Tinha que falar com Diolindo o quanto antes. E saiu pela porta lateral do templo, dirigindo-se a frente da igreja, no momento exato em que chegava a noiva de carro, e o noivo, a pé.

 

Os homens se entreolharam como a conferenciar, olharam a igreja lotada e observaram o rosto alquebrado do velho padre. Assentiram e sentaram-se próximo ao altar, nos lugares reservados aos padrinhos, que seriam apenas Almeida e Florinda, para ambos os noivos. Franco sabia fazia pouco que o seu caso fora reaberto, mas não imaginava que um mandado chegaria no seu colo tão rápido. De toda maneira seu filho tinha lhe conseguido um habeas corpus preventivo. Precisava de tempo apenas para localizar o papel no meio da bagunça da reforma da casa. No entanto, uma terceira via já lhe sucedia na cabeça.

 

— Diolindo, a polícia tá lá no altar querendo levar meu coroa! – Falava num volume alto demais devido ao seu estado de histeria.

— Calma Gemima, nós temos um salvo conduto, eu mesmo entreguei em mãos dele. Ele não pode ser preso. Acalme-se.

— Meu Deus, vou ter que ir pra casa procurar o papelzinho. Com a reforma lá em casa, tá tudo virado de perna pro ar!

— Faça isso rápido se não quisermos ir buscá-lo na delegacia – Sentenciou, enquanto testemunhava a sua noiva sair do carro como uma ninfa que acaba de aterrissar direto do paraíso das deusas.

Enquanto Gemima corria pra soltar o seu homem, Selma estava ali para prender o dela para sempre.

 

Fredson segurava a cestinha de vime com o seu bebê e, com um leque, abanava-o devido ao calor que fazia na igreja. Ao seu lado estava sentado um homem bem apessoado que lhe incomodava com seguidas olhadelas para ele e João. Tinha a impressão de conhecê-lo de algum lugar, o que o incomodava ainda mais.

— Nós nos conhecemos? – Por fim perguntou.

— Não creio. Saí daqui da comunidade ainda pequeno. Soube da paróquia por amigos em comum e decidi vir conhecê-la. Para minha surpresa será realizado um casamento e resolvi ficar. Muito prazer, David – Apresentou-se esticando a mão.

 

Ao ouvir aquele nome e tocar a mão do homem, não sabia como, mas teve certeza que se tratava da mesma mão, agora em dimensões maiores, a que tinha eletrizado o seu corpo há trinta anos atrás, também num banco de igreja. O neto da amiga da sua avó, protagonista da cena mais marcante da sua infância.

— Você não é neto da Dona Carminha?

O homem aprumou-se no banco de uma maneira que o fez recordar também do outro, mas desta feita pela voz. Lembrava dos seus sussurros quase inaudíveis enquanto pousava as suas mãos no próprio pênis.

— Meu Deus, você é o Fredson, de Dona Geruza! – Afirmou num sussurro de espanto.

Discretamente os dois seguraram novamente as mãos, mas desta feita com um carinho insuspeito e demorando-se mais do que o normal. Passariam por toda a cerimônia com as mãos dadas embaixo do cestinho onde João dormia a sono solto, trocando olhares ternos que faziam planos pelos dois.

 

Diolindo prostrou-se ao lado do altar, querendo acalmar o seu pai. Olhava fixamente para os dois policiais que estavam sentados do lado oposto ao dele. Quando iria dar o primeiro passo para ir ter com eles e explicar que o velho estava amparado pelo salvo conduto, ouviu-se as primeiras notas da marcha nupcial e, ele voltou para o seu lugar. Todos os problemas do mundo foram ignorados, numa espécie de amnésia momentânea, quando, no seu transe particular, vislumbrou a entrada de Selma na igreja de braços dados ao pai. Como um homem de meia idade e sem qualquer beleza ou riqueza poderia encantar uma criatura de beleza ímpar como aquela mulher? Ele era afortunado como ninguém.

 

Dorotéia que estava sentada próximo a nave central da igreja, trocou olhares com Selma quando da sua passagem em direção ao altar. Plínio era só sorrisos. Finalmente estavam na casa de Santa Meredite. A primeira vez que olharam para a imagem da santa sentiram um certo incômodo. Talvez por sua beleza platinada exuberante e suas formas mais arredondadas que as outras santas que conheciam. Mas depois de falarem entre si, concluíram que aquilo significava fertilidade, amor, paixão pela vida e pelas coisas humanas. Ao mesmo tempo que a imagem pendia para pensamentos impróprios, ela também servia de consolo para aqueles que sabiam das suas fraquezas e, que podiam ser perdoadas.

 

Ela se desdobrava na busca pelo papel que manteria o seu coroa fora das grades. Já revirara metade das gavetas contendo documentos e nada. Ele temia que ele não pudesse aguentar nem um dia na cadeia e viesse a acontecer o pior. Não perderia a batalha assim tão facilmente. Passou a levantar os móveis para ver embaixo. Até o lixo que pusera pra fora pela manhã, ela buscou de volta para dentro de casa. Entre garrafas de bourbon vazias, papel higiênico usado e cascas de banana, fruta essa que usaram numa brincadeirinha de cunho sexual na noite anterior, encontrou o bendito documento, amarfanhado e um pouco sujo.Não se fez de rogada e ligou o ferro de passar roupa, dando-lhe uma bela esticada. Abriu um envelope velho e o guardou. Saiu às pressas de casa esquecendo de desligar o ferro da tomada.

 

Ainda hipnotizada pela beleza da sua sereia, recebeu a noiva dos braços do pai e, prostraram-se frente ao altar, onde Franco parecia mais sóbrio do que nunca. Não sabia se era um bom ou mal sinal. Às vezes preferia vê-lo com ar de chacota, mas realizou que o momento pedia sobriedade. Claro que mesmo a distância dava para sentir resquícios de eflúvios alcoólicos vindos dele, mas parecia que a coisa já tinha entranhado no seu sangue.

 

— A graça e a paz de Deus nosso Pai, e de Jesus Cristo nosso Senhor, estejam convosco – Iniciou num tom monocórdico, porém impostado.

— Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo – A igreja respondeu em uníssono.

— Irmãos caríssimos, reunimo-nos com alegria na casa do Senhor para participarmos nesta celebração, acompanhando Selma Almeida e Diolindo Espírito Santo no dia em que se propõem constituir o seu lar. Esta hora é para eles de singular importância. Acompanhemo-los com o nosso afeto e amizade, e com a nossa oração. Juntamente com eles, escutemos a Palavra que Deus hoje nos vai dirigir. Depois, em união com a santa Igreja, por Jesus Cristo, nosso Senhor, supliquemos a Deus Pai que acolha benignamente estes seus servos que desejam contrair matrimônio, os abençoe e os una para sempre.

Gemima chega banhada de suor pela lateral da igreja, em tempo de presenciar o início da celebração pela cortina da sacristia, segurando o habeas corpus como se fosse ouro em pó.

— Atendei, Senhor, as nossas súplicas, derramai, benignamente, a vossa graça sobre os vossos servos Selma e Diolindo, que hoje se unem em matrimônio junto do vosso altar, e confirmai-os no amor fiel e santo. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.

— Amém.

Depois da liturgia da palavra e da homilia, escutada atentamente pelo público que adorava o seu jeito popularesco de falar, Franco deu início aos ritos do casamento. Diolindo percebera que de vez em quando ele passava a mão no baixo ventre como se sentindo algo lhe incomodar.

— Eu Selma, recebo-te por meu esposo a ti Diolindo, e prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida.

Gemima, vendo o seu coroa de costas, também o via incomodado com algo, alisando a lateral da barriga com frequência.

— Confirme o Senhor, benignamente, o consentimento que manifestastes perante a sua Igreja, e Se digne enriquecer-vos com a sua bênção. Não separe o homem o que Deus uniu.

Franco deu uma pausa, abaixou-se e pegou uma taça de prata grande onde deveria conter água e sorveu um gole como para matar a sede. Era o vinho batizado. Estava criando coragem.

— Derramai, Senhor, a vossa bênção sobre estas alianças que abençoamos em vosso nome, para que os esposos que as vão usar, guardando íntegra fidelidade um ao outro, permaneçam na vossa paz, obedeçam à vossa vontade e vivam sempre em mútua caridade. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.

— Amém.

Os dois policiais bocejavam discretamente, talvez pelo calor ou pela noite mal dormida, quando foram participar de uma despedida de solteiro de um colega numa boate. Pensavam que a despedida de solteiro era mais animada do que consumar a união. Se um dia pensavam em casa, já não estavam tão empolgados assim. A igreja era uma fornalha e o padre que ia em cana, parecia um animador de circo falando em câmera lenta. Não dava pra apressar aquilo? Mesmo assim era melhor respeitar a casa de Deus. Vai que...

 

Franco aspergiu as alianças que logo encontraram os seus dedos anelares respectivos. Terminada a celebração, Almeida e Florinda assinaram junto com  o padre a ata do matrimônio, que, em seguida, proferiu a bênção final, cumprimentou efusivamente os noivos, segurando o seu olhar nos olhos do filho por mais tempo que o normal. Deu-se início ao cortejo de saída. Quando já iam pelo meio da nave central da igreja e, para espanto geral, Franco gritou na presença de todos.

— Não tema meu filho, eu vou estar bem!

 

Em seguida ouve-se dois estampidos de bala. Ele levantara a batina, sacara o revólver que Gemima atirara em Godô, e acertou os dois policiais. Os homens surpresos pela cena, não tiveram qualquer reação, caindo mortos cada qual com uma azeitona na cabeça.

Quando a pequena multidão apavorada achava que não aconteceria mais nada. Um terceiro tiro foi dado.

 

Gemima quando assistiu os policiais serem abatidos correu para o seu homem sacudindo o envelope na mão como um escudo contra desgraças, mas não chegou a tempo de impedir que o padre enfiasse o cano da arma na própria boca e apertasse o gatilho. Pedaços de massa cinzenta foram espirrados na imagem de Santa Meredite atrás do altar, enquanto a gordinha o segurava no chão, tentando de forma inconsciente fechar o buraco da bala que saíra por cima do crânio, com pedaços do habeas corpus.

 

O público se engalfinhava para alcançar a saída da igreja atropelando uns aos outros. Plínio e Dorotéia que assistiram tudo em uma das primeiras fileiras não conseguiam se mover, paralisados com a cena terror que presenciaram. Fredson e David, na tentativa de proteger João, foram para a frente da igreja esperar o povo sair. Diolindo e Selma deram a volta pela lateral da igreja e entraram pela porta que dava na sacristia para se ver no meio da trágica cena. Florinda, num acesso de lucidez, tomou a cabeça de Almeida no seu peito e o acalmava como a ninar uma criança.

 

Ouvia-se sirenes ao longe, e logo pensaram que a polícia estava chegando para investigar e isolar a cena do crime. Estavam equivocados. Eram bombeiros chegando para apagar um incêndio de grandes proporções ali perto, causado por um ferro elétrico.


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